1.Todos sabemos que toda a criança precisa de um colo seguro a que se vincule e de uma parentalidade positiva, viva e militante, que alie doses de ternura, firmeza e bom trato.
Na promoção de direitos e na protecção da criança em perigo deve ser dada prevalência às medidas que a integram numa família - ou seja, na lei já não se fala «na sua família», mas apenas em «família», seja ela qual for, desde que enriquecedora e nutritiva do seu corpo e do seu espírito.
No fundo, o que se quer é dar o primado à vivência em família em detrimento da colocação de uma criança em acolhimento residencial.
O princípio da prevalência da família terá que ser entendido não no sentido da afirmação da prevalência da família biológica a todo o custo, mas sim como o assinalar do direito sagrado da criança à família, seja ela a natural (se for possível, devendo, neste campo, o Estado ser capaz de acompanhar as famílias biológicas, ajudando-as a superar o perigo em que vivem as suas crianças), seja a adoptiva, reconhecendo que é na família que a criança tem as ideais condições de crescimento e desenvolvimento e é aquela o centro primordial de desenvolvimento dos afectos.
2. Mas uma criança pode viajar para o colo de outras pessoas sem ser pela adopção – existem outros caminhos, menos radicais, que podem até coexistir com alguma parte do exercício das responsabilidades parentais ainda nas mãos da progenitura biológica.
E esses caminhos são trilhados pela legislação portuguesa – podemos estar a falar de limitações do exercício das responsabilidades parentais, de tutelas, de apadrinhamentos civis ou de medidas de promoção e protecção.
3. O acolhimento familiar de crianças está previsto como uma das medidas protectivas aplicáveis pelas Comissões de Protecção e pelos Tribunais aquando da constatação de que uma criança está em perigo.
E sabemos que este é um momento charneira neste país – a lei quer que as crianças até aos 6 anos vivam em famílias de acolhimento se tiverem de ser separadas de seus pais, de forma provisória.
Esta medida do acolhimento familiar apresenta imensas vantagens e benefícios em relação ao acolhimento residencial, como por exemplo, o permitir à criança/jovem a vivência numa família estruturada e equilibrada, em oposição ao acolhimento residencial onde, inevitavelmente, as relações individualizadas ficam seriamente comprometidas e onde não existe um modelo familiar que a criança/jovem possa vivenciar e modelar-se; mas sim um modelo institucional, com enorme rotatividade de cuidadores, rotinas e actividades (quase) sempre de carácter grupal e onde o espaço íntimo – pessoal e relacional – é bastante difícil de ser promovido.
Contudo, este último não deve ser diabolizado – vai, infelizmente, continuar a ser necessário para algumas situações, devendo ser apoiado a elevar a sua acção e capacidade de actuação cada vez mais especializada e orientada para objectivos terapêuticos, com equipas mais preparadas e apoio à supervisão e formação, alteração dos rácios criança/cuidador, tal se conseguindo também com a reformulação dos apoios e dos projectos de intervenção.
Já temos leis e portarias que regulamentam a lei, venham agora as manifestações de vontade dos cidadãos anónimos que densifiquem e multipliquem as bolsas de famílias de acolhimento – neste momento, com números muito baixos a rondar os 2,7% - que possam receber em suas casas as nossas crianças em perigo, fazendo delas a sombra dos seus dias e não apenas um lugar a mais nas suas mesas.
Há que louvar o esforço recente, neste particular, da SCML e do ISS.
Aguardamos melhores números.
4. Não nos esqueçamos de uma outra providência tutelar cível que pode albergar uma criança ao colo e à sombra da lei.
Falo do Apadrinhamento Civil, regulado, em termos substantivos e processuais, pela Lei n.º 103/2009, de 11 de Setembro (diploma já revisto pela Lei n.º 141/2015, de 8/9).
A lei em causa está regulamentada pelo DL n.º 121/2010, de 27/10, alterado pela Lei n.º 2/2016, de 29/2.
É um instituto para a vida, não cessando aos 18, 21 ou 25 anos, tal como uma medida de promoção e protecção, e é mais ampla que a tutela e menos ampla que a adopção, criando uma relação para-familiar apenas baseada no afecto e em qualquer remuneração.
A ideia é manter os pais que são minimamente capazes na vida dos seus filhos: só que essas crianças precisam de mais do que têm, carecendo de mais afecto e segurança. Não é um «em vez de» mas um «a mais».
E a criança, em vez de estar entregue a uma casa de acolhimento, pode ter uma família - os padrinhos – que fica com a parte maior do exercício das responsabilidades parentais. E os pais continuam a ser os pais, ainda com a titularidade dessas responsabilidades, mantendo um núcleo de direitos.
E também pode ser uma solução para prevenir a residencialização de crianças em casas de acolhimento, levando a que haja gente idónea que as receba no seu lar, embora não como «filhos legais», e que lhes proporcione um continuado e mais perpétuo acolhimento familiar que, já sabemos, é tão gratificante para o desenvolvimento de qualquer ser humano.
A providência tutelar cível em causa aí está – e desde há dez anos - no menu das respostas ao perigo em que pode viver uma criança, e quer ser bem aplicada.
Continuo a acreditar que o Apadrinhamento Civil veio para ficar – é mais um instrumento jurídico que atribui a confiança de crianças a terceiros, com vínculo afectivo e legal.
Mais um. De muitos.
Pode não ter até agora acolhido muitas crianças.
Contudo, existe e a ele pode ser lançada mão sempre que a situação do concreto João ou da concreta Maria assim o exigir.
Aguardemos também melhores números e estatísticas no futuro.
E passem palavra pois não duvido que nunca foi feito qualquer esforço estatal real para publicitar este instituto pensado e construído no «meu» saudoso Observatório Permanente da Adopção de Coimbra.
5. Vivemos o mês passado um tempo especialmente pensado para invocar a problemática dos maus tratos à infância.
A condição da Criança – assumindo-se numa cultura própria precisamente pelo facto de ser diferente em idade e desenvolvimento/maturidade - vive muito acima das ideias político-partidária da nossa polis. É um imperativo categórico que se impõe à nossa Civilização como parte integrante dela.
Assumamos de vez que:
6. Vamos continuar em clima de tolerância zero – pensar e agir futuramente como se estivéssemos sempre em estado de emergência, porque proteger crianças em perigo é, de facto, uma tarefa de emergência e como tal deve ser encarada (fazer menos piscinas e menos estradas e dedicar mais recursos financeiros para este desiderato).
Estando atentos todos os dias, todos os meses e todos os anos, agiremos com a noção clara e indesmentível de que as crianças não se importam com o quanto tu sabes até saberem o quanto tu te importas (com elas).
A sociedade saberá erguer-se e permanecer solidária - temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a nossa luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças no seu sono.
O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos (o caso das CPCJ).
Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.
Para fazer tudo o resto, muitas vezes, basta o AMOR (um outro nome para o afecto, um valor jurídico constitucional em Portugal).
Porque acolher uma criança em nossa casa, seja qual for a capa legal que usemos, é um passo de gigante para a nossa elevação civilizacional, ao som dos mecanismos dos afectos, aqueles que, como nos ensinou António Alçada Baptista, irão moldar o nosso devir e cimentar as âncoras de segurança de qualquer Criança.
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