Direito de Família vs Direito das Famílias

Direito de Família vs Direito das Famílias

Rafael Calmon Juiz de Família  (Estado do Espírito Santo - Brasil)

António José Fialho Juiz de Direito (Barreiro – Portugal)

Em pleno século XXI, o ramo da Ciência do Direito destinado a disciplinar as relações jurídicas familiares poderia continuar sendo denominado de “Direito de Família” ou seria melhor alterar seu nome para “Direito das Famílias”?

Obviamente respeitando quem pense diferente, a segunda alternativa nos parece a melhor.

Nas breves linhas que se seguem, expomos as razões que nos levam a pensar assim.

Como se sabe, o conjunto de todas as espécies normativas vigentes em um determinado país, em certo momento da história, incluindo desde a Constituição Federal até a mais simples das leis locais, representa seu “Sistema de Direito”, o qual, para fins didáticos, pode ser subdividido em agrupamentos menores, isto é, em “Subsistemas”, voltados ao tratamento específico e detalhado de determinadas matérias, como o Direito Civil, por exemplo, ou ainda de subtemas a ele pertencentes, como o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas e o Direito das Sucessões, apenas para citar alguns. Nesse contexto, o “Subsistema de Direito das Sucessões”, por exemplo, comporia o conglomerado de todas as Emendas Constitucionais, Leis Complementares, Leis Ordinárias, Medidas Provisórias, Decretos, Portarias e demais tipos legais que, de alguma forma, se destinassem ao regramento da transmissão dos bens e obrigações da pessoa em consequência de seu falecimento, ao passo que o “Subsistema de Direito das Obrigações” representaria o amontoado de textos reguladores das relações jurídicas de ordem patrimonial que tenham por objeto prestações devidas entre sujeitos, e assim por diante.

Até aí tudo bem. A coisa começa a ganhar em importância quando se pára para pensar que texto normativo não se confunde com norma jurídica. Sim, o texto é o mero suporte físico que introduz a norma no ordenamento. A verdadeira norma jurídica é o produto da interpretação feita pelo indivíduo a partir de sua leitura. E, por óbvio, essa interpretação não é feita de forma descontextualizada. Pelo contrário. Decorre da percepção de cada um sobre o material histórico, político, econômico e social instaurado em determinado local e momento da história. Logo, existindo diferentes sujeitos interpretantes inseridos em contextos tão diferenciados quanto, a probabilidade de que sejam construídos diversos significados dos termos empregados pelo legislador em cada uma das espécies normativas antes citadas é gigantesca.

E, convenhamos: tudo que não precisamos é de mais caos no meio jurídico.

Daí a importância da “Ciência do Direito”. Tendo por objetivo facilitar o desenvolvimento da atividade interpretativa, ela reúne um emaranhado de conhecimentos teóricos voltados à descrição e à explicação ao intérprete de tudo o que os diversos Sistemas e Subsistemas de Direito prescrevem. Isso torna possível que se fale em “Ciência do Direito Civil”, em “Ciência do Direito Penal”, e, conforme se esmiúce ainda mais a análise, em “Ciência do Direito das Coisas”, em “Ciência do Direito das Obrigações”, em “Ciência do Direito das Sucessões” etc.

Nem sempre, contudo, a legislação, isto é, o texto das leis que compõem o Sistema de Direito Positivo, consegue acompanhar as transformações dos padrões vigentes na sociedade.  Aliás, raras são as vezes em que isso acontece. Via de consequência, o discurso jurídico pode permanecer atrelado a concepções, ideais e valores absolutamente ultrapassados, que não mais exprimem o verdadeiro e atual sentido da norma jurídica, muito embora possam expressar leituras fiéis do texto normativo.

Apegados à dogmática e ao positivismo puro, alguns intérpretes insistem em atribuir ao texto de lei o sentido mais literal possível, meio que se recusando a acreditar que ele serve de mero suporte físico para a construção da norma jurídica, esta sim o elemento que realmente importa para a regulação de condutas intersubjetivas.

            No caso específico das relações jurídicas contraídas pelos membros das entidades familiares algo bastante curioso e um tanto alarmante acontece. O legislador do Código Civil brasileiro de 2002 epigrafou o Livro IV de sua Parte Especial com a nomenclatura “Do Direito de Família”, repetindo, de certa forma, a mesma denominação que o legislador de 1916 havia utilizado para epigrafar o Livro I da Parte Especial do Código Civil de seu tempo.

            Também o Código Civil português de 1966 designa o Livro IV da Parte Especial com a mesma nomenclatura “Direito da Família”, mesmo apesar das sucessivas alterações que foram ocorrendo ao longo destes anos.

            Meio que seguindo essa tendência, a Ciência Jurídica encarregada de estudar e explicar a estrutura e função dessas normas acabou também sendo denominada de “Direito de Família”.

Acontece que, sob os influxos dessa Ciência, uma enorme gama de direitos das famílias foi sonegada no Brasil. E o que é pior: pode continuar sendo.

Basta ver que, apesar de a Constituição Federal brasileira de 1988 ter declarado expressamente que a “família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput), e que todas as “entidades familiares” merecem essa proteção (art. 226, §§ 3º e 4º)[1], o cotidiano das Varas de Família revelava e continua revelando algo bastante diferente. Esse cenário, infelizmente, não apresentou modificação digna de nota nem mesmo com o advento do Código Civil de 2002 e de suas normas de “Direito de Família”. Tanto é assim que temas como o reconhecimento jurídico da multiparentalidade, da socioafetividade, das uniões estáveis familiares homoafetivas, da adoção por ascendentes, do poliamor, da adoção por casais homoafetivos, da custódia e convivência com animais não humanos por ocasião do rompimento das uniões celebradas entre os animais humanos, são muitas vezes taxados de “polêmicos”, chegando mesmo a representar verdadeiros “não-temas” para alguns círculos.

Definitivamente, isso não pode continuar acontecendo.

Atualmente, as famílias são complexas, plurais e dinâmicas. Já faz bastante tempo que deixou de existir a figura do chefe de família, personificada no homem. A mulher deixou de ser tratada como mera auxiliar nos encargos da família, para se tornar responsável por eles, ao lado de quem quer que seja seu ou sua consorte. Aliás, as representações de gênero e sexo sequer podem interferir na formatação das entidades familiares, contanto que exista afeto entre seus membros. Os filhos não podem mais ser tratados de forma discriminatória, simplesmente por terem nascido de uniões não matrimonializadas. Os animais de estimação vêm cada vez mais sendo aceitos e tendo seus direitos reconhecidos em função de sua condição de seres sencientes e amados pelos animais humanos. Os valores, conjunturas e ideais contemporâneos a respeito do que venha a ser família se modificaram completamente, desvinculando-se da biologia para se alinharem à cultura. O conflito atualmente não se confunde com o litígio. Pelo contrário. Aportes provenientes da psicanálise, da antropologia, da psiquiatria, da psicologia, de círculos da paz, da negociação, da economia, do direito sistêmico, do direito colaborativo e de uma série de domínios do conhecimento humano contribuíram para a melhor compreensão dos conflitos familiares e para a percepção de que o litígio deve ser desestimulado. Como resultado, as disputas familiares passaram a ser enxergadas sob um olhar clínico, muito mais humanizado.

Diante desse inteiramente novo panorama, os enunciados normativos do Código Civil e de toda a legislação que compõe o “Subsistema de Direito de Família” precisam ser lidos e compreendidos de forma contextualizada e em conformidade com esses axiomas e padrões comportamentais.

Isso desafia o intérprete a conhecer mais a fundo esse intrigante e em constante mutação domínio das ciências jurídicas, que, por isso, talvez precise ter sua nomenclatura alterada para “Direito das Famílias”.

E nem se diga que essa sugestão seja nova ou possa causar qualquer tipo de estranheza, pois expoentes da literatura jurídica brasileira como Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Paulo Lôbo, Rolf Madaleno, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald já empregam essa denominação há bastante tempo em suas obras e o Superior Tribunal de Justiça, ao que parece, a vem prestigiando em seus julgados (veja, por exemplo, o REsp n. 1.760.943/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 06/05/19)

Particularmente, acreditamos que o plural seja realmente necessário no caso, não para simplesmente diferenciar denominações, mas para deixar absolutamente claro que a base principiológica e valorativa que conferia fundamento à ciência outrora denominada de “Direito de Família”, embora possa ter bem servido aos propósitos de um tempo passado, não mais se mostra suficiente para servir de essência a um domínio do conhecimento humano capaz de compreender os fenômenos e formatações familiares da contemporaneidade.

Se as experiências, as configurações e as relações jurídicas contraídas pelas famílias são complexas e plurais, nada mais justo do que a ciência destinada a seu estudo também se pluralizar, inclusive em sua denominação.

Quem sabe um dia o próprio nome das unidades judiciárias dotadas de competência para processamento das ações de família também não se altere para “Varas das Famílias” ou, em Portugal, para “Juízos das Famílias e das Crianças”.

Vai saber, né?

            Até que isso aconteça, e, independentemente do fato de vir ou não a acontecer, o que realmente importa é ter em mente que a atividade de “fazer ciência” é um processo contínuo e, por isso, eternamente incompleto. Pesquisadores, estudiosos e os interessados nas relações jurídicas e existenciais contraídas pelas famílias talvez precisem defender com mais afinco os avanços conquistados pela literatura e consolidados pelas decisões dos tribunais, para que as normas jurídicas construídas a partir da leitura dos textos legais e os problemas práticos, surgidos na realidade vivida pelos indivíduos, possam ser solucionados não segundo os parâmetros ultrapassados e obsoletos de outrora, mas sim em conformidade com o pensamento contemporâneo, plural, disruptivo e desafiador inerente à “Ciência do Direito das Famílias”.

Mas, isso tudo é só questão de opinião.

            Até a próxima!


[1] Os artigos 36.º, 67.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa também expressam o dever do Estado de protecção da “família” e a protecção das crianças no seio da “família”, não obstante se considerar há muito que a Lei Fundamental portuguesa não consagra uma única forma de família

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Alimentos após os 18 anos do filho

Alimentos após os 18 anos do filho

Desde 1 de outubro de 2015, com a entrada em vigor da Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro, que a obrigação de pagamento de pensão de alimentos a filhos se mantém após os 18 anos e até que estes completem a sua formação profissional, sendo agora o limite de idade os 25 anos.

Com efeito, a referida Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro, aditou um número 2 ao artigo 1905.º do Código Civil, cuja redação é a seguinte:

Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.”.

O aditamento deste n.º 2 ao artigo 1905.º do Código Civil teve em conta a necessidade de adaptação à realidade atual, na medida em que, nos dias de hoje, se mostra necessária uma maior formação académica para que se possa obter colocação no mercado de trabalho, o que implica que se prolongue no tempo o período durante o qual os filhos se vêm, por regra, na dependência económica dos pais, apresentando-se como desajustado à realidade o anterior regime legal, em que a pensão de alimentos cessava aos 18 anos de idade.

Acresce ainda que a necessidade de ser o filho, entretanto maior, mas apenas com 18 anos, a intentar uma ação judicial contra o progenitor obrigado a alimentos, por forma a que ficasse judicialmente consagrada a obrigação deste continuar a pagar alimentos, representava um grande constrangimento, quando não um verdadeiro impedimento à efetivação do reconhecimento judicial da obrigação de pagamento de pensão de alimentos após os 18 anos.

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Com o aditamento do n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil, que acima transcrevemos, fica dispensada a necessidade desta ação, mantendo-se a obrigação de prestação de alimentos, fixada na menoridade, até aos 25 anos.

Esta alteração de regime, para além da inovação já mencionada, tem ainda reflexos processuais em matéria de ónus de prova, ou seja, anteriormente, cabia ao filho maior, que intentava a ação judicial contra o progenitor alegar e provar que continuava ainda a sua formação profissional, necessitando, por isso, de alimentos.

Atualmente, o filho maior fica desobrigado da propositura da ação e do ónus de prova, sendo agora o progenitor obrigado a alimentos que terá que intentar uma ação, alegando e provando, que não se encontram preenchidos os pressupostos para a manutenção da obrigação de alimentos.

Assim, o progenitor de filho maior de 18 anos, que não pretenda continuar a pagar pensão de alimentos, deverá alegar e provar que:

- o processo de educação ou formação profissional está concluído ou que,

- o processo de educação ou formação profissional foi, pelo filho, livremente interrompido ou que,

- independentemente da conclusão, ou não, do processo de formação profissional do filho, a exigência da continuação do pagamento da pensão de alimentos é irrazoável.

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A Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro previu ainda, que o progenitor que assume, a título principal, o pagamento das despesas de filhos maiores de 18 anos, que se encontram ainda em processo de formação profissional, não sendo, por isso, autónomos no que ao seu sustento respeita, pode exigir, ao outro progenitor, a contribuição para o pagamento das despesas de sustento e educação daqueles.

Em conclusão, se anteriormente à Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro, após os 18 anos do filho, a única forma de este manter a pensão de alimentos, seria através de uma ação judicial por si intentada contra o progenitor obrigado a alimentos, atualmente resulta da lei essa obrigação, ou seja, relativamente a todos aqueles que atingiam a maioridade, após 1 de outubro de 2015, continuará a ser devida pensão de alimentos, até que atinjam 25 anos ou completem ou interrompam o seu processo de formação profissional.

Para aqueles que perfizeram 18 anos antes de 1 de outubro de 2015, que continuam a sua formação profissional e não atingiram ainda os 25 anos de idade e o progenitor obrigado a alimentos durante a menoridade deixou de pagar pensão de alimentos, após o filho ter feito 18 anos, abrem-se dois caminhos:

- ou o progenitor que assume, a título principal, o pagamento das despesas do filho exige ao outro a contribuição para essas mesmas despesas, através de uma providência tutelar cível, a correr por apenso ao processo de regulação das responsabilidades parentais que tenha existido (ou que será distribuída autonomamente, se não tiver havido processo de regulação das responsabilidade parentais) ou,

- o filho, agora maior de 18 anos, intenta uma ação executiva especial por prestação de alimentos, sendo o título executivo o acordo homologado ou a sentença que fixou a pensão de alimentos na menoridade.

O direito ao convívio entre avós e netos

O direito ao convívio entre avós e netos

Celebra-se, no dia 26 de julho, o Dia Mundial dos Avós, os quais são muitas vezes esquecidos, sendo indiscutível que o convívio, entre avós e netos, é essencial para o desenvolvimento harmonioso dos menores.

Não é comum falar-se nas interferências de terceiros (leia-se, os pais das crianças), que justificam a intervenção do tribunal, quando a verdade é que estas existem.

São várias as situações em que, avós e netos, são atingidos por decisões dos pais, que têm como consequência a diminuição ou, mesmo, a privação do convívio entre ambos, com o consequente risco de perda de laços, no seio da família.

(mais…)

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