Para onde vais, rio que eu canto?
Paulo Guerra, Juiz Desembargador e Director-Adjunto do CEJ
1. Hoje em dia, nestes tempos de ilhas naufragadas, de solidões no meio do caos, as nossas crianças encontram novos rostos no espelho da casa de banho, um bafo quente de irmãos e irmãs vivendo em casarios diferentes das delas, com meio apelido igual ao delas, com um sinal particular na pálpebra direita igual ao delas — é o novo quadro familiar dos «meus, dos teus e dos nossos» a dar cartas neste mundo, cada vez mais diversificado e menos ortodoxo.
De facto, o mundo complica-se e sofistica-se à velocidade da luz, as crianças deixaram de acreditar nas Fadas Sininhos e na eterna Terra do Nunca, já comungando doses maciças de morangos açucarados, de Flores mais ou menos belas e da pressa meteórica dos seus pais, entregues a edifícios de aço e nervos de tijolo e argamassa, capazes de lhes ocupar todo o tempo dos seus dias e das suas noites.
Mas o nosso conselho é que sorriam, por favor, porque, dizem, chegámos à era moderna.
Falar em modernidade, é também falar na Família, esse reduto sacrossanto dos afectos, primeiro impostos, depois sentidos, e da realização, desenvolvimento e consolidação da personalidade de qualquer ser humano.
Aqui chegados, há que dizer que se assiste ultimamente à desestruturação do modelo tradicional da Família, outrora assente num modelo social ordenado em que cada um sabia o seu lugar, ou como exemplarmente dizia Carneiro Pacheco, em que «havia um lugar para cada um e cada um no seu lugar», correspondendo a uma família-linhagem «mais sentida do que racionalmente avaliada».
Modernamente, evoluímos para uma família cada vez mais conjugal ou nuclear, fundada num casamento livremente consentido e secularizado, orientada para fins de completa realização individual e de crescente independência na igualdade e na confusão dos papéis dos seus actores principais.
Daí que se fale hoje em dia na perenidade ou instabilidade da instituição familiar, objecto, nas últimas décadas, de debates, controvérsias e inquietações.
Para tudo isto contribuem diversos factores, a saber:
— a quebra da fecundidade,
— o envelhecimento da população,
— a subida dos índices do divórcio,
— a crescente vulgarização das uniões de facto,
— a maior visibilidade e aceitação social dos casais homossexuais e das famílias reconstruídas,
— a participação de mulheres casadas e de mães no mercado de trabalho,
— a maior responsabilização e importância dada à figura do pai na pós-ruptura de uma união conjugal ou não,
— a crescente influência avoenga — tendo hoje os avós inegável legitimidade activa para, em tribunal, e ao abrigo do artigo 1887.º-A do CC, virem requerer a marcação de um espaço de convívio com seus netos, mesmo contra a vontade dos progenitores destes — na educação das nossas crianças, enredados que estão os seus pais na luta titânica do quotidiano, sem tempo para assistir aos tempos de vida daqueles,
— o incremento do fenómeno da toxicodependência como factor de alheamento parental, fonte inelutável de negligências e de diminuição de qualidade de vida das crianças que, desta forma, se vêem desligadas dos laços da sua progenitura, a braços com a graálica busca de outros heróis e de outras heroínas, e entregues a familiares próximos ou afastados, ou mesmo a instituições de assistência social onde, quer queiramos quer não, continuam em risco…
A regra do jogo é ser feliz, aqui e agora, sem concessões demasiadas ao colectivo, ao bem comum — Edgar Morin disserta mesmo no sentido de considerar que, nesta época pós-moderna, perdura um valor principal e intangível que consiste no direito cada vez mais proclamado do indivíduo se realizar à parte, de ser livre, num narcisismo de windsurf, própria de uma época do deslizar, em que a res publica já não tem qualquer elo sólido, qualquer ponto de ancoragem emocional estável.
2. Ora, o momento histórico é este, os dados culturais estão lançados no xadrez de uma comunidade que apresenta matizes multicolores, novos peões e novos reis e rainhas, em exercícios de poder e dominação, cada vez mais subtis e subentendidos.
Estes são muitos dos autênticos desafios postos à Família pelo mundo exterior sem o qual ela não vive e que, não raras vezes, acaba por influenciar a própria forma de a viver e de a encarar.
Não existe, na nossa opinião, uma crise da Família, mas antes várias formas de a viver.
A família, hoje, longe de corresponder «a uma função reprodutiva da espécie, à finalidade da educação das crianças ou apenas, ainda, à garantia de uma relação duradoura entre sexos diferentes, é multidimensional, plurilocal, multigeracional, transgressora das imposições do género, extremamente exigente do ponto de vista afectivo, e os laços que gera ou pode gerar estão longe de se poderem reduzir a uma determinação fixa ou conjunto de determinações».
Assim sendo, o que se torna relevante quando hodiernamente se fala em família é a principal e decisiva questão da determinação dos novos deveres familiares, tanto no plano privado como no público.
E aí estamos com Edmundo Balsemão — «Mas o problema mais decisivo a respeito da família, tanto no que respeita às políticas públicas como no que se refere à capacidade avaliativa do homem comum, consistirá sempre em saber como conjugar a individualidade, a autenticidade e o reconhecimento com a criação de instituições que possamos todos considerar valiosas. Afinal, este não é outro senão o problema filosófico clássico da relação entre a Liberdade e o Bem» (1)
3. De facto, mudam-se os tempos e mudam-se as vontades...
Ora, o nosso sistema legislativo também tende a acompanhar este fluxo de mudança.
Vejamos três exemplos desta mudança de mentalidades, própria de uma entrada num novo milénio, capaz de nos demonstrar como a comunidade e o seu pulsar acabaram por influenciar o labor do legislador português, no reino da Família, das Crianças e Jovens, entendendo que após a ruptura ainda pode haver lugar à família, já que o objectivo de qualquer casal em disputa emocional é obter um divórcio ou uma separação «decentes».
3.1. DIVÓRCIO
O artigo 1775.º, n.º 1, do CC, na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25-11, previa que o divórcio por mútuo consentimento só podia ser requerido quando os cônjuges fossem casados há mais de três anos.
Em 1998, pela Lei n.º 47/98, de 10-8, e posteriormente pelo Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13-10, o legislador veio estabelecer que tal divórcio consensual — o tal que embora com ela, não necessita que a sua causa seja revelada, agora de forma quase exclusiva, na Conservatória do Registo Civil — pode ser requerido pelos cônjuges a todo o tempo.
A exigência legal de um período mínimo de duração do casamento para a formação consciente e madura da decisão de dissolução do casamento deixou de contar nos propósitos do legislador.
Inscrevendo-se numa linha geral de revisão do sistema de valores, o sistema jurídico vem, por esta via, facilitar o divórcio por mútuo consentimento que, de acordo com as novas tendências sociológicas, como as estatísticas oficiais nos comprovam, tem vindo consistentemente a aumentar, desta forma se facilitando o procedimento legal de ruptura dos novos casamentos.
O casamento entendido como um contrato — como a nossa lei o define — parece corresponder às exigências das sociedades contemporâneas, marcadas por uma progressiva laicização, por uma acentuada mobilidade geográfica das pessoas, por um individualismo infrene, por uma maior liberalização dos costumes, pelo acesso generalizados dos dois sexos a graus cada vez mais elevados de escolaridade, pela entrada da mulher no mercado de trabalho, por um estatuto jurídico e sociológico de igualdade entre os sexos, pela procura dos dois sexos de uma carreira profissional, do sucesso e da felicidade.
Durante muito tempo, o homem encarregava-se de ganhar o pão de cada dia e à mulher cabia-lhe pôr a manteiga no pão, na sugestiva frase de Beck — eram dois numa só carne, mas a carne era do homem.
A partir dos anos setenta, o casamento passa a constituir cada vez mais um acto de escolha individual, com base em vínculos afectivos, tal conduzindo naturalmente a uma maior instabilidade matrimonial, instabilidade que se torna irremediável quando se constata que o desejo e a felicidade são impossíveis de alcançar com a pessoa com quem se casou.
Portanto, e de forma algo paradoxal, o casamento baseado no amor, torna esta forma de associação mais volátil, estando cada vez mais o divórcio implícito na própria ideia de casamento.
Neste particular, o legislador, pressionado pelas estatísticas da divorcialidade, cedeu tudo o que tinha a ceder (muito embora já haja quem opine que só falta a consagração do divórcio por «multibanco»).
Havendo acordo dos cônjuges, e terminada a experiência, o casamento pode ser rompido a todo o tempo, evitando uma espera artificial de 3 anos ou o recurso abusivo à figura do divórcio litigioso, usado de forma ficta e ocultando consensos então inconfessáveis.
A Lei n.º 61/2008, de 31/10, tal veio consolidar, afastando até a culpa da equação (2).
No fundo, com a alteração legislativa, o sistema jurídico, que não tem de ter credos, veio afinal reconhecer às pessoas direito ao desencantamento que não tem de ter prazo de validade.
No fundo, podemos dizer que o divórcio é a prova viva de que as pessoas querem ser felizes e acreditam na Família, procurando-a em outras esquinas, em outros rostos.
O divórcio que parecia, à primeira vista, o fechar de um livro, transforma-se apenas num voltar de página, que contando novas etapas de uma história, mantém os personagens do enredo inicial, para além de outras que possam ir aparecendo.
Os filhos constituem, em muitas situações, a «armadilha» com que não se esperava, depois do divórcio. Armadilha no sentido de obrigarem à manutenção de uma relação que não se deseja mais manter — nessa altura sim, os filhos representam a relação que se quer esquecer, mas não se consegue porque eles são a sua própria extensão.
Não será, seguramente, fácil para aqueles adultos que estão verdadeiramente zangados um com o outro, controlar os seus estados emocionais e racionalmente tratarem das questões dos filhos como se após a regulação do exercício das responsabilidades parentais, de repente, passassem a ser duas novas pessoas, pessoas diferentes, sem história comum, sem nada que as dessintonize do objectivo primordial que é «velar pela segurança e saúde dos filhos, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens», mesmo quando suportados pela melhor mediação do Mundo!
Que não se chegue ao ponto da sociedade norte-americana, por exemplo, que, na palavra de David Popenoe, vive esta situação bizarra: Algumas crianças americanas vão para cama à noite a pensar se o seu pai ou a sua mãe ainda estará lá no dia seguinte; algumas interrogam-se sobre o que lhes terá acontecido. E outras sonham com quem será o seu pai.
3.2. EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Em Portugal, este instituto sofreu uma evolução desde o direito romano, no qual, inicialmente, revestia a natureza de uma patria potestas que se exercia quer sobre os filhos, quer sobre a mulher (que estava também sob a manus do pater familias), quer sobre todos os que constituíam o agregado familiar, sendo, assim, um poder absoluto e perpétuo do homem pai e marido.
O Código de Seabra de 1867 estabelecia, no seu artigo 137.º, que competia aos pais reger as pessoas dos filhos menores, protegê-los e administrar os seus bens, determinando ainda que o complexo destes direitos constituía o poder paternal.
Por seu turno, o artigo 140.º estatuía que os pais deviam dar aos filhos os necessários alimentos e ocupação conveniente, conforme as suas posses e estado.
A lei estipulava então um regime de exercício manifestamente desigual, dando-se especial prevalência à autoridade paterna.
Com efeito, segundo o artigo 138.º do referido Código, as mães participavam do poder paternal e deviam ser ouvidas em tudo o que dizia respeito aos interesses dos filhos, mas era ao pai que especialmente competia, durante o matrimónio, como chefe da família, dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto em juízo, como fora dele. Só no caso de ausência ou de outro impedimento do pai é que a mãe faria as suas vezes (artigo 139.º).
O Código Civil de 1966, na sua versão original, consagrou orientação semelhante à acolhida pelo diploma de 1867, pese embora tivesse introduzido modificações ao nível da inserção sistemática do instituto, passando a configurá-lo como um dos efeitos da filiação, integrado, portanto, no Livro da Família.
A natureza e conteúdo do poder paternal vinham definidos no artigo 1879.º: compete a ambos os pais a guarda e a regência dos filhos menores não emancipados com o fim de os defender, educar e alimentar; pertencendo também aos pais representar os filhos, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
Mais uma vez, a repartição dos poderes de exercício do poder paternal assentava no modelo patriarcal, competindo especialmente ao pai, como chefe da família, a grande parte desses poderes e recaindo sobre a mãe poderes meramente consultivos e de substituição das funções parentais do marido, na impossibilidade de este as exercer.
A Reforma do Código Civil, levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 15-11, institucionalizou a faceta funcional do chamado «poder paternal», tendo passado de poder (direito) a função (dever) e de poder exclusivo do pai a autoridade conjunta do pai e da mãe.
Na parte que agora nos importa, ou seja, no que tange ao sistema que a lei institui para o exercício das responsabilidades parentais em caso de dissociação familiar (divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento e separação de facto), há que assinalar dois diplomas que vieram alterar alguns artigos do Código Civil, basilares nesta matéria
Falamos da Lei n.º 84/95, de 31-8, que permitiu a opção dos pais pelo exercício em comum do poder paternal (não confundível com a guarda conjunta), e da Lei n.º 59/99, de 30-6, que deu nova redacção ao artigo 1906.º, colocando como regime-regra o exercício conjunto do poder paternal e como regime subsidiário o exercício unilateral ou singular.
Finalmente, refira-se que foi entretanto publicada a Lei n.º 61/2008, de 31-10, que vem rever o regime jurídico do divórcio, procedendo também a alterações no regime do exercício das hoje responsabilidades parentais.
Na exposição de motivos do projecto que esteve na origem do diploma, lê-se:
«O projecto que se apresenta propõe o desaparecimento da designação “poder paternal” substituindo-a de forma sistemática pelo conceito de “responsabilidades parentais”. Na mudança de designação está obviamente implícita uma mudança conceptual que se considera relevante. Ao substituir uma designação por outra muda-se o centro da atenção: ele passa a estar não naquele que detém o “poder” — o adulto, neste caso — mas naqueles cujos direitos se querem salvaguardar, ou seja, as crianças.
Esta mudança pareceu essencial por vários motivos.
Em primeiro lugar, a designação anterior supõe um modelo implícito que aponta para o sentido de posse, manifestamente desadequado num tempo em que se reconhece cada vez mais a criança como sujeito de direitos.
É certo que em direito de família o poder paternal sempre foi considerado um poder/dever, mas esta é uma especificação técnica que desaparece no uso quotidiano, permitindo-se assim que na linguagem comum se façam entendimentos e conotações antigas e desajustadas.
Em segundo lugar, é vital que seja do ponto de vista das crianças e dos seus interesses, e portanto a partir da responsabilidade dos adultos, que se definam as consequências do divórcio.
Também assim se evidencia a separação entre relação conjugal e relação parental, assumindo-se que o fim da primeira não pode ser pretexto para a ruptura da segunda.
Por outras palavras, o divórcio dos pais não é o divórcio dos filhos e estes devem ser poupados a litígios que ferem os seus interesses, nomeadamente, se forem impedidos de manter as relações afectivas e as lealdades tanto com as suas mães como com os seus pais.
Vale a pena sublinhar, por último, que a designação agora proposta acompanha as legislações da maioria dos países europeus que já há muito a consagram.
Acresce ainda que neste projecto se introduz um novo artigo prevendo punição para o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais que passa a ser considerado crime de desobediência.
Novamente assim se pretende sublinhar que o Estado deve, através dos vários meios ao seu alcance, assegurar a defesa dos direitos das crianças, parte habitualmente silenciosa neste tipo de diferendos entre adultos, sempre que estes não cumpram o que ficar estipulado.
A imposição do exercício conjunto das responsabilidades parentais para as decisões de grande relevância da vida dos filhos decorre ainda do respeito pelo princípio do interesse da criança.
Também aqui se acompanha a experiência da jurisprudência e a legislação vigente em países que, por se terem há mais tempo confrontado com o aumento do divórcio, mudaram o regime de exercício das responsabilidades parentais da guarda única para a guarda conjunta.
Isso aconteceu por terem sido verificados os efeitos perversos da guarda única, nomeadamente pela tendência de maior afastamento dos pais homens do exercício das suas responsabilidades parentais e correlativa fragilização do relacionamento afectivo com os seus filhos.»
De facto, o diploma estabelece uma nova redacção do artigo 1906.º do CC, passando a dispor da forma seguinte:
«1. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores, nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
2. Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.
3. O exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do filho cabem ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente.
4. O progenitor a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente pode exercê-las por si ou delegar o seu exercício.
5. O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.
6. Ao progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida do filho.
7. O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.».
O interesse de cada criança cujos pais deixam de conviver como companheiros de vida é:
Há que ponderar assim a possibilidade da residência alternada que pode ser consensualizada pelos pais ou imposta pelo tribunal (legitimado pela letra do artigo 1906º, n.º 7 do CC).
Entendemos que tal regime pode ser o ajustado em situações cada vez menos excepcionais, a saber:
*
Edward Kruk, em «Arguments for an Equal Parental Responsibility Presumption in Contested Child Custody», publicado no The American Journal of Family Therapy, Volume 40, Issue 1, 2012, pp. 33-55, opina que existem 16 argumentos que sustentam a presunção de igualdade das responsabilidades parentais, assim se legitimando a imposição judiciária da residência alternada:
Esta é uma aposta cada vez mais jogada pelos pais, em prol do bem-estar do filho (mas há que ter a coragem de rejeitar este modelo quando ele não satisfaz os superiores interesses do filho menor).
3.3. OS ACOLHIMENTOS NA LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
A Lei em causa – aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9 - teve uma profunda alteração em 2015 (Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro).
Uma das medidas aplicadas a uma situação de criança em perigo é a do Acolhimento familiar.
O novo artigo reza assim:
Artigo 46.º
Definição e pressupostos
a) Quando a consideração da excecional e específica situação da criança ou jovem carecidos de proteção imponha a aplicação da medida de acolhimento residencial;
b) Quando se constate impossibilidade de facto.
5 - A aplicação da medida de acolhimento residencial nos casos previstos nas alíneas a) e b) do número anterior é devidamente fundamentada.
Esta uma das grandes novidades do regime de 2015 - até aos 6 anos da criança, prefere-se esta medida à do acolhimento residencial, devendo justificar-se sempre que a esta se recorre nesta faixa etária.
É o reconhecimento de que a criança se desenvolve melhor nos primeiros anos de vida em ambiente familiar e não institucional ou residencial.
Deixa de se pensar o acolhimento familiar como uma medida que deva ser necessariamente uma ante-câmara do regresso à família de origem.
E esta é uma grande conquista na luta contra a institucionalização de crianças de tenra idade em Portugal.
Haja mecenas, haja bolsas destas famílias…
4. De futuro, no Direito da Família, muito pode ser problematizado, ideias-força tidas por adquiridas podem deixar de ser consensuais(3).
4.1. Hoje em dia, qualquer que seja o sistema jurídico, a validade e eficácia do casamento dependem, normalmente, da intervenção legitimadora de instituições que tomem a seu cargo a formalização do mesmo — e de futuro, não será posta em causa esta necessidade de legitimação externa?
4.2. A igualdade dos cônjuges, hoje pedra de toque de qualquer sistema civilizado, pode levar ao aumento explosivo do número de mulheres divorciadas vivendo em famílias monoparentais com os filhos pequenos, naturalmente mais pobres (a chamada feminização da pobreza), em países onde cada vez mais existem sistemas incapazes de cobrar, de força coerciva, os alimentos devidos e não pagos.
4.3. A tendência será a de restringir a imposição de deveres conjugais ao mero dever de decidir em conjunto os actos da vida conjugal comum, levando o pluralismo e a privatização da família conjugal até um extremo quase inconcebível — as leis evitarão pormenorizar os deveres conjugais, refugiando-se na adopção de cláusulas gerais que os cônjuges — que querem ser os seus próprios legisladores — hão-de concretizar segundo o seu projecto individualizado.
Veja-se o exemplo paradigmático do caso alemão em que os próprios tribunais já discutiram se era compatível com a comunhão de vida a existência de uma segunda mulher em casa e a circunstância de duas pessoas casadas poderem viver em casas distintas.
A Lei n.º 61/2008, de 31-10, acabou com o conceito de culpa na dissolução do casamento, criando a nova figura do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (tal como já o fizeram países como a França, a Espanha, Suécia, Noruega e Alemanha) — agora com as motivações da separação de facto, violência doméstica e a violação genérica dos direitos fundamentais —, argumentando-se que deve prevalecer uma concepção da conjugalidade assente nos afectos e não nos deveres e que o divórcio-sanção só se torna uma fonte de agravamento de conflitos anteriores para os ex-cônjuges e filhos (4).
4.4. A tendência para a modificação das relações patrimoniais entre cônjuges, permitindo, cada vez mais, a confusão permanente dos patrimónios resultante de depósitos mistos, de aplicações e reaplicações, de transferências de propriedade entre cônjuges.
4.5. A facilitação dos divórcios e sua desformalização (o caso português que enviou para canais administrativos quase tudo o que concerne ao divórcio consensual.
4.6. A possível supressão da heterossexualidade como requisito do casamento (5) e a concessão de efeitos jurídicos plenos à união de facto homossexual, abandonada a finalidade da procriação como objectivo essencial do casamento — assistir-se-á, assim, à multiplicação de instrumentos jurídicos dirigidos à tutela da comunhão de vida entre duas pessoas do mesmo sexo, criando-se uns ou cimentando-se a implementação de outros, vistos como verdadeiros sucedâneos do casamento (6).
Entretanto, entrou em vigor em Portugal a Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
4.7. O incremento exponencial da monoparentalidade e das suas possíveis variações, assente que a biparentalidade tradicional não é sinónimo de exclusiva fonte de felicidade para os filhos — e o caminho pode ser este:
— a aceitação mais fácil das adopções singulares mesmo quando as plurais forem viáveis;
— a permissão de mulheres sós recorrerem à inseminação com esperma de dador; e
— a viabilização de adopções por casais homossexuais [veja-se o exemplo recente de um tribunal canadiano que decidiu a favor de um casal de lésbicas, reconhecendo o direito de uma criança chamar «mãe» a duas mulheres — à mãe biológica e à mulher que com ela vive maritalmente (7)].
4.8. As novas questões éticas e jurídicas associadas aos casos de procriação medicamente assistida (conjunto de técnicas destinadas à formação de um embrião humano sem intervenção do acto sexual), de recurso aos processos heterólogos (procriação com gâmetas de terceiros), de «maternidade de substituição» (entendida como o fenómeno da gestação por terceira pessoa) e de procriação assistida post mortem (8).
4.9. A possibilidade de se estabelecerem laços legais entre a criança e certos amigos mais próximos, padrastos ou madrastas (em caso de ruptura com a mãe ou o pai).
4.10. A tendência para se abandonar o chamado «panjurismo iluminista» que impunha a regulação de todos os aspectos da vida familiar, havendo agora a possibilidade de se adoptar um direito da família fragmentário, que apenas regule aspectos essenciais ou aqueles que forem considerados de interesse público e que sobrarão de uma privatização crescente da vida familiar (combate à existência generalizada no Direito da Família de normas imperativas, porque inderrogáveis por vontade das partes e à consideração deste ramo do direito como o terreno de eleição da reserva da ordem pública).
4.11. A criação de uma figura jurídica intermédia que esteja entre a adopção plena e o regresso da criança aos pais biológicos — aquela continua a manter o contacto com os pais biológicos, sendo limitados os direitos dos pais adoptivos (figura aparentada com a adopção restrita, tão caída em desuso e agora até eliminada do nosso quadro legislativo); será aquilo a que poderá chamar uma forma mais suave de adopção (não tão radical), que poderia contribuir para o decréscimo do número de crianças institucionalizadas (9), cogitando-se a construção de uma nova providência tutelar cível que fique situada entre a tutela e a adopção restrita (chame-se-lhe «apadrinhamento civil» (10) ou «acolhimento prolongado»).
4.12. A tendência para a assimilação da parentalidade sócio-afectiva à parentalidade biológica — pairará a ideia de que não basta a concepção e o registo para se inferir uma boa progenitura, exigindo-se que as melhores práticas estejam comprovadamente aliadas, no melhor interesse da criança, o tal «certificado de origem» que, tantas vezes, redunda em histórias de maltrato infantil e de vergonha parental (11).
4.13. No que concerne à parentalidade, abandonar-se-á de vez a expressão «Poder Paternal» para falar em «Responsabilidades Parentais» e a tendência quase generalizada de atribuição prioritária do exercício dessas RP às mães.
E aqui deixem-nos falar da importância do Pai-homem, peça essencial no crescimento harmonioso dos filhos, nem mais nem menos do que a Mãe.
É inegável que depois de obedecer à lei da natureza, um homem é chamado a ser sensato, gentil, paciente, amoroso, juiz, árbitro, pediatra, educador infantil, perito financeiro, consertador de brinquedos, fonte de toda a sabedoria, artista.
Enfim, a ser Pai.
Aos vinte anos vestiu o fato da paternidade, enchumaçou os ombros, cresceu em altura, ficou com a voz mais grave para se adequar ao papel.
Um dos maiores desafios feitos à Família, hoje em dia, é o repensar dos papéis dos dois progenitores e o relançar da figura do pai, assente que ternura e afectos são assuntos que não lhe são estranhos.
4.14. Finalmente, a ideia mais importante de todas — será o século da Criança, tida e lida como a peça mais importante, porque mais indefesa e vulnerável, deste xadrez que se optou por jogar entre peças brancas, pretas, cinzentas, rosas e azuis, seja qual for a cor da pele da nossa família e do nosso afecto…
Falamos da Criança (12) e já não do menor, epíteto que esperamos ser abolido de vez, mesmo dos próprios textos legais.
4.15. Uma nota final quanto aos desafios futuros em Portugal – quais serão os novos caminhos dos Tribunais de Família e das Crianças?
Daí que possa aconselhar a todos os Juízes e Magistrados do Ministério Público laborando nesta Área:
5. Italo Calvino define as seis categorias essenciais que irão marcar as nossas comunidades neste milénio que se delineia: a leveza, a rapidez, a exactidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência(13).
O Direito e os sistemas jurídicos tenderão a acompanhar as mentalidades, tentando diagnosticar as verdadeiras pulsões de mudança, distingui-las das tendências de moda sem capacidade para provocar alterações legislativas.
E aí, nas verdadeiras novidades, saberá identificar o alfabeto de uma ordem, de um fundo de Mundo constatado, vivido, sentido e, afinal, carente de letra de lei.
Está o Direito da Família e das Crianças aberto a novas realizadas familiares, a novas formas de viver o casamento ou a união de facto, em novos rumos para os casais e para as relações paterno-filiais, em abertura a supostas e possíveis utopias e a um, hoje tão convocado, Direito Humanitário.
6. «No seu regresso à cidade, Buda encontrou-se com um transeunte que, impressionado pela luz e energia que aquele irradiava, o questionou:
“- Você é um Deus? – Não, respondeu Buda . - Você é um santo? - Não, respondeu Buda novamente.
“Então, você é um príncipe? - Não, - respondeu Buda sem parar de andar. – Só estou acordado”».
Temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a sua luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças portuguesas ou aqui residentes no seu sono.
O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos.
Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.
E não esqueçam o principal - para fazer todo o resto, muitas vezes, basta o AMOR!
E como aprendi com os nossos irmãos brasileiros:
«As pessoas não se interessam com o quanto tu sabes, até saberem o quanto tu te importas…»
Pátio do Limoeiro, 19 de Fevereiro de 2016
NOTAS:
(1) Cf. Balsemão, Edmundo, «Família», in Marques, António, coord., Dicionário de Filosofia Moral e Política, disponível na Internet em <http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/familia.pdf> [Consult. 10 Dez. 2008]. Cf. ainda o sítio da associação Family Diversity Projects em <http://www.familydiv.org> [Consult. 10 Dez. 2008].
(2) Alegam-se culpas mas elas não podem ser declaradas pelo tribunal.
(3) Cf. Oliveira, Guilherme de, «Transformações do Direito da Família», in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 763-779 e Guerra, Paulo e Bolieiro, Helena, «A criança e a família – uma questão de direito(s)» – Coimbra Editora, 2ª edição, 2014.
(4) Este diploma foi já aqui mencionado.
(5) Há algum tempo, os dois projectos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda e pelo partido «Os Verdes», sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foram chumbados com os votos contra da maioria PS, PSD e CDS-PP. Durante o debate que antecedeu a votação, o deputado socialista Jorge Strecht assegurou a vontade do PS de consagrar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, mas não se comprometeu com datas, depois de desafiado a esclarecer se o fará na próxima legislatura. Acabou por vir à luz a permissão legal de casamento entre pessoas do mesmo sexo.
(6) Para além do exemplo português da Lei n.º 7/2001, de 11-5, refiram-se:
— o instituto da «pareja estable» ou «union de hecho» de algumas comunidades autónomas espanholas;
— o instituto da «cohabitation légale» da Bélgica;
— o instituto da «Lebensgemeinschaft» da Áustria;
— o instituto da «Lebenspartnerschaft» do Luxemburgo;
— o instituto do «pacte civil de solidarité» de França;
— o instituto das chamadas «parcerias registadas» — «registered partnerships» — dos países nórdicos (Finlândia, Suécia) e da Holanda.
(7) Também, recentemente, uma sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem voltou a colocar esta questão nos meios de comunicação social — uma mulher francesa, lésbica e vivendo em união de facto com outra, quis adoptar uma criança, tendo sido recusada esta pretensão nomeadamente porque ela não proporcionaria àquela criança uma família com uma «imagem parental de referência». O caso chegou a Estrasburgo que, em Janeiro de 2008, sentenciou no sentido de condenar o Estado francês a pagar uma indemnização de 10 mil euros à queixosa — no fundo, entenderam que, se a lei permite a adopção por uma pessoa singular como admite, não faz sentido questionar a ausência de uma figura masculina, assim concluindo que a candidata foi discriminada pela sua orientação sexual.
Diga-se ainda que os defensores da não admissibilidade de adopção conjunta por casais homossexuais alegam que num sistema de adopção há sempre alguém a quem cabe escolher os adoptantes.
As perguntas que estes colocam são estas: Que critérios se utilizariam na hora de escolher tais pais adoptivos? Com que base é que se poderia dizer que uma criança ficaria com uma família deste tipo (homossexual) e aquela outra com outra família (heterossexual) daquele tipo? Para esta tese, manter a lei como está não significa discriminar ninguém, significando antes não discriminar as crianças.
Neste momento em que se escreve, já temos lei que permite a adopção de crianças por parte de casais homossexuais (Lei n.º 2/2016, de 29/2).
(8) Ao longo dos anos, os cientistas têm conseguido ultrapassar situações de esterilidade conjugal (note-se que ninguém tem direito a um filho, mas apenas a legítima expectativa ou o desejo de ter um filho) até então considerados insolúveis, passando a separar-se a dimensão afectiva da componente biológica do acto procriativo, como forma (também) de resolver, em Portugal, a sua grave situação demográfica.
A PMA compreende o conjunto de técnicas destinadas à formação de um embrião humano sem a existência de um acto sexual (cópula), sendo usual fazer-se a distinção entre processos de procriação sexuada (onde há a intervenção de dois componentes — um de cada — de pessoas de sexo diferente) e não sexuada (onde há a intervenção apenas de um componente, quer masculino, quer feminino, destacando-se neles a clonagem).
(9) Sottomayor, Clara («Quem são os «verdadeiros» pais? Adopção plena de menor e oposição dos pais biológicos», in Direito e Justiça, Vol. XVI, Tomo I, pp. 234-241) fala numa «adopção aberta» que seria uma óptima alternativa à colocação de crianças em instituições pois permitiria a estas crianças gozarem de um cuidado personalizado e do afecto próprio de uma família, não perdendo o contacto com a família biológica, «nos casos em que tivessem uma memória positiva desta», tendo os pais naturais a possibilidade de obter informações sobre os seus filhos. A questão que se coloca é se em Portugal existem adultos que queiram adoptar nestas condições, ou seja, que aceitem esta partilha da vida de uma criança em vez de a «terem» em exclusivo para si. A este respeito, cf. ainda Gersão Eliana, «Adopção — mudar o quê?»…, pp. 844-848.
(10) Foi esta a proposta do Observatório Permanente da Adopção, hoje já com letra de lei - o apadrinhamento civil consiste na integração de uma criança ou jovem num ambiente familiar, confiando-os a uma pessoa singular ou uma família que exerçam os poderes e deveres próprios dos pais e com eles estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento; os seus propósitos são o de despromover a desinstitucionalização e o de evitar a institucionalização de crianças e jovens. Para tanto, procura-se um mecanismo que substitua as figuras que normalmente exercem as responsabilidades parentais — os pais — e que, por alguma razão, não estão em condições de as exercer. O apadrinhamento civil quer, sobretudo, promover a desinstitucionalização de crianças, através da constituição de uma relação para-familiar tendencialmente permanente, destinada às crianças e jovens que não são encaminhados para a adopção ou não são adoptados (apesar de poderem ter sido declarados em estado de adoptabilidade). A aguardar sedimentação e cimentação!
(11) Acabando-se de vez com essa inexistente — na letra da lei — distinção entre «pais biológicos» e «pais afectivos», hoje em dia tão veiculada pelos media.
(12) Duvidamos da necessidade de colocar em texto de lei uma maior densificação da noção de «interesse superior da criança», tal como parece pretende alguma doutrina e grupos de pressão, como forma de resposta face a alguns casos mediáticos envolvendo crianças.
(13) Calvino, Italo, Seis propostas para o próximo milénio, trad. Ivo Barroso, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.