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«Obrigado, Mãe» ... «Obrigada, filhos»

3 de Maio de 2025
Postado por FamiliaComDireitos

«Obrigado, Mãe» - abraçou-me o meu filho mais novo, o único ainda em casa, com a notícia da reviravolta profissional, muito além das suas melhores expetativas. E continuou o abraço, reconhecido por eu «nunca ter desistido dele, durante os seus difíceis anos de questões e indecisões. Pela firmeza da minha presença. Por acreditar nele. Pela minha paciência», insistiu.

Senti que podia morrer feliz! Como se estas suas palavras selassem uma missão de vida cumprida. Nunca contaria escutá-las. Nenhuma mãe conta. Apenas faz por ser mãe. E disse-lho. Ao que ele acrescentou que também o mano, apesar de «de poucas falas e mais distante», agradecia com a primeira neta a caminho. E que com o tempo, também as manas sentiriam «gratidão, pela dureza que eu enfrentei». Ou eu «já esquecera o toque à campainha de casa em código?» - que durante anos nos defendeu de abrir a solicitadores de execução, por conta das peripécias financeiras, a que o pai se tinha evadido para bem longe.

Sinceramente, já não lembrava. Como se tivesse sido noutra vida… uma outra vida em que até o salário me era penhorado. Lembrei a épica viagem que precedeu essa dureza de que ele falava. O meu regresso com eles pequenos, de volta a Portugal, e em que somos retirados da fila de embarque para procurarem possíveis “pedras” (vulgo diamantes) traficados na minha bagagem. Quiçá, denunciados por quem antes me danificara o telemóvel, impedindo-me de contactar ou ser contactada. Libertaram-nos a tempo de corrermos (a pé - já sem autocarro) pela própria pista do aeroporto, a longa distância até ao avião. Lembro bem os seus passinhos apressados a ecoarem no asfalto negro daquela noite. A aflição ao subirmos ofegantes, os degraus altos para a entrada do avião, que fechou a porta em seguida. Já a salvo, dentro do avião, deparamo-nos com todos os nossos lugares separados e distantes. Contrariada, a hospedeira lá conseguiu trocas que juntaram os meus filhos dois a dois, permitindo que ao menos, se acompanhassem mutuamente, por entre as minhas visitas aos seus lugares. Só de manhã, quando escuto a ordem de apertar os cintos para a aterragem, é que me apercebo do perigo de eles seguirem as ordens, saindo cada dois pelo seu corredor distinto, em momentos e autocarros diferentes, para a escala em Heathrow!! Nunca mais os veria!! Desobedeci à ordem do cinto, enfrentando uma vez mais a arrogância daquelas hospedeiras, enquanto percorria as enormes distâncias dos corredores daquele jumbo, a avisar os meus filhos para que permanecessem quietos nos lugares e nada fizessem, até que eu os fosse finalmente buscar, após todos os passageiros saírem.

Já em terra, os gravíssimos atentados na antevéspera em Londres, naquele julho de 2005, ditavam medidas de segurança excecionais que atrasaram em muitas horas o embarque para Lisboa. E eu, sem telemóvel com que pudesse avisar as minhas irmãs à minha espera.

As tribulações desta viagem apenas preconizavam a montanha-russa de acontecimentos que se sucederiam - próprios de muitos divórcios – e de que o código da campainha seria apenas um sinal. A tal dureza de que falava o meu filho. E que naquela época, eu acreditava que combateria pela espada da razão e da justiça. Como se às crianças aproveitasse razão ou justiça alguma? Pelo fio dessa mesma espada acabei por ferir os meus filhos.

Tanto que eu quisera demarcar-me do ressentimento e mágoa que guardava da minha mãe, e acabei gerando ressentimentos e mágoas outras nos meus filhos. Apesar de cheia de razão. Apesar de me desdobrar em consultas de rotina no pediatra, vacinas, dentista, fardas e lancheiras, sacos de ginástica e de natação. Apesar do meu horário de trabalho de feição com levá-los às atividades, festas de anos, espetáculos e museus…

Retomando a viagem de regresso a Portugal com eles, e sem conseguir prevenir as minhas irmãs do enorme atraso do voo: só quando elas me abraçaram em lágrimas, à chegada, é que eu percebi a dimensão da gravidade do que eu tinha deixado para trás - mais fácil de perceber por quem está de fora. A agonia em que a demora do voo as tinha deixado. Não era vão o seu receio de que eu não tivesse conseguido, afinal, regressar. Os episódios do telemóvel danificado e da denúncia dos diamantes (entre outros…) confirmavam-nas. No final daquele verão - distribuído por casas de férias de avós e tias - instalámo-nos numa casa, antigo projeto de família, cujas obras há muito tinham sido deixadas a meio.

Preparámo-nos para enfrentar o ano letivo e o inverno, nesta casa inacabada e com despojos de móveis de outras vidas. Era preciso arranjar roupas para todos. Na bagagem, apenas tínhamos trazido T-shirts, toalhas de praia e fatos de banho, para despistar a suspeita do regresso definitivo. Para trás tinham ficado, para nunca mais, lençóis e bordados, louças e cristais, espelhos e móveis, legados desde as bisavós. Eletrodomésticos. O piano. Molduras com as fotografias de uma vida. Um lar construído com tanto gosto, ao longo dos anos.

Bem aplicada pelo meu filho, a expressão dureza, a este recomeço, partindo de tábua rasa.

Mas voltando ao seu abraço e às suas palavras reconhecidas, devolvi-lhe que estas falavam mais de si e do seu coração do que das minhas qualidades de mãe. Assim como o ressentimento das irmãs falava mais do seu modo de olhar do que das minhas falhas. Qualidades e falhas são condição de todos. E cada um de nós, depois, vê aquilo que consegue ver. Tal como eu vejo as falhas que foram as da minha mãe.

E o que é que isso diz de mim? – que devo aprender com o coração e o olhar reconhecido deste meu filho. Olhar e acolher a imensa generosidade da vida. A maravilha de ser mãe de filhos criados. A sua valentia, por entre a tal dureza, que já nem o toque da campainha lembra. Esse toque – que mantemos – significa agora, que toca à porta um de nós. Daqui por um tempo, com a neta ao colo de uma nora tão querida. Como tão querida eu fui, aos olhos da minha sogra – mãe de tantos e avó de tantos mais. Assim, me aguarda a vida.

 Missão longe de estar cumprida. «Obrigada, filhos».

Carmo da Cruz, Mãe

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