Cada família torna-se mais unida na medida em que o apego recíproco e a liberdade constituem seus únicos laços.
J.J. Rousseau
Fernanda Molinari[1]
Através da análise jurídica Brasileira, que invoca a proteção da criança e do adolescente, é fundamental restar esclarecida a trilha percorrida, tanto pela ordem constitucional como pela legislação especial, a fim de se adequar às premissas instituídas pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança que deu novo contorno à legislação da criança e do adolescente, em nível internacional, definindo o objetivo de se estender a proteção integral à criança e ao adolescente, de forma completa, integral e com absoluta prevalência, pois:
A determinação de prioridade no atendimento aos direitos infanto-juvenis, inserida no texto da Convenção, é uma garantia e um vínculo normativo idôneo, para assegurar a efetividade aos direitos subjetivos; é um princípio jurídico-garantista na formulação pragmática, por situar-se como um limite à discriminação das autoridades[2].
A mudança de paradigmas[3] quanto aos direitos da criança ocorre, no Brasil, com a Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, ao estabelecer o princípio da prioridade absoluta[4], representado pela prevalência e especialidade dos direitos e garantias de crianças e adolescentes, impôs uma série de condutas ao Estado, com possibilidade de controle judicial na hipótese de sua omissão.
Eis aqui a grande responsabilidade do Poder Judiciário: dar efeito prático aos preceitos constitucionais, sobretudo quanto à obediência ao princípio da prioridade absoluta aos direitos das crianças e dos adolescentes.
Sobre a matéria, manifestou-se Maria Regina Azambuja, nos seguintes termos:
Pela primeira vez, um texto constitucional brasileiro apresenta disposições expressas e minuciosas sobre os direitos da criança e do adolescente: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. À família, à sociedade e ao poder público, foi atribuída a responsabilidade de assegurar, com absoluta prioridade, a todas as crianças e adolescentes, a efetivação dos direitos relacionados ao artigo 227 da Constituição Federal. Em 1988, o Brasil, adotando uma postura de vanguarda, projeta-se no cenário internacional, ao incorporar em seu texto constitucional, princípios que, à luz da mentalidade vigente no planeta, não tinham ainda sido suficientemente assimilados. Doravante, muda o enfoque jurídico: a situação irregular, antes atribuída à criança, passa a se voltar na direção da família, da sociedade e do poder público, sempre que forem desatendidos os direitos fundamentais aos menores de dezoito anos, valendo mencionar que a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro; tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados[5].
Os novos direitos, consagrados na proteção das crianças e dos adolescentes, reconhecem a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, bem como a necessidade de lhes serem atribuídos não apenas aqueles direitos já assegurados aos adultos, mas também outros decorrentes dessa situação especial.
Seguindo esse novo paradigma, é que deverão ser pautadas as decisões que envolvem questões concernentes às crianças e aos adolescentes. É nessa esteira de reconhecimento de direitos que o Tribunal de Justiça brasileiro vem-se firmando, conforme se depreende dos julgados abaixo transcritos:
O princípio da dignidade humana e a garantia de atendimento prioritário às crianças e adolescentes, além do exame da prova dos autos, conduz ao pronto atendimento do pedido da inicial. O fornecimento de tratamento médico à criança independe de previsão orçamentária, tendo em vista que a Constituição Federal, ao assentar, de forma cogente, que os direitos das crianças e adolescentes devem ser tratados com prioridade, afasta a alegação de carência de recursos financeiros como justificativa para a omissão do Poder Público. Existe solidariedade entre a União, os Estados e os Municípios, quando se trata de saúde pública, cabendo ao necessitado escolher quem deverá lhe fornecer o tratamento médico pleiteado[6].
ECA. DESTITUIÇÃO DE PÁTRIO PODER. A adoção da doutrina da proteção integral, por parte do Estatuto da Criança e do Adolescente (art.1º da Lei 8.069/90) fortaleceu o princípio do melhor interesse da criança, que deve ser observado em quaisquer circunstâncias, inclusive nas relações familiares e nos casos relativos à filiação. O presente caso trata de crianças vítimas de maus-tratos, cujos genitores fazem uso reiterado de bebidas alcoólicas, e não dispensam os cuidados mínimos necessários à prole. Cabível, pois, a destituição do pátrio poder. Apelo desprovido. Unânime[7].
eca. ação de adoção. FOro competente. De acordo com o princípio constitucional da prioridade absoluta e a doutrina da proteção integral, as regras insertas no Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser interpretadas de forma a preservar o melhor interesse da criança. Partindo-se de tal concepção, tem-se que em ações de adoção, o foro competente será o do domicílio de quem já exerce a guarda da criança, para que a sua estabilidade emocional seja preservada. Agravo provido[8].
A família e o sistema de estabelecimento da filiação tiveram seus conceitos alterados, juntamente, com a evolução da sociedade e dos princípios que a ela se aplicam, transformando, com o passar do tempo, valores e conceitos.
Patriarcal e hierarquizada, a família do início do século XX cumpria apenas uma função: assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes, não havendo muita preocupação e interesse com a pessoa dos filhos e seus sentimentos.
Com o passar dos anos, a família deixa de ser silenciosa, passando a existir um sentimento de preocupação e cuidado para com os seus membros. Tratando dos aspectos a serem considerados, no que concerne à visão contemporânea de família, Patrícia Pimentel de Oliveira Ramos aduz:
[...] o reconhecimento deste direito à felicidade individual, o princípio da dignidade da pessoa humana e a afirmação dos direitos fundamentais do infante vêm inspirando o legislador e orientando as interpretações dos múltiplos aspectos da regulamentação jurídica da vida familiar. A proteção da família e a preservação da dignidade da pessoa humana em cada um dos membros da família existe não só na família matrimonializada, como também na família matrimonial desfeita, e nas demais formas de entidade familiar. A criança e o adolescente, qualquer que seja a forma da família em que estejam inseridos, hão de sentir-se protegidos, confortados, respeitados, gozando de todos os direitos fundamentais. Tanto o pai quanto a mãe, querendo e tendo condições morais e psicológicas, devem estar presentes no processo de formação do filho, e estão em igualdade de condições para exercerem esse munus[9].
A realidade sociológica, hoje existente, encontrou respaldo jurídico com a Constituição Federal de 1988, face à posição ocupada pela pessoa humana, em detrimento de quaisquer instituições das quais a mesma seja integrante. Com o advento da Constituição Federal de 1998 e, posteriormente, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o papel dos pais e a convivência familiar passam a ser vistos como primordiais ao desenvolvimento natural da criança.
A família passa a ser considerada o lugar apropriado e indispensável ao desenvolvimento dos seus membros, ao passo que é ela quem propicia os aportes afetivos e materiais necessários ao crescimento e bem-estar de seus integrantes.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança destaca a importância de a criança conviver com seus pais, ao dispor nos seguintes termos:
Art.9
A família é a base para o desenvolvimento saudável e normal de uma criança, e a sua responsabilidade é reconhecida como sendo um dever moral, decorrente, via de regra, da consanguinidade e do fato de ser o primeiro lugar onde a criança externa os seus sentimentos, e tem contato com o mundo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente trata do tema em capítulo próprio, estabelecendo, a partir do artigo 19, que toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família natural e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
A convivência familiar é considerada fator essencial da personalidade infanto-juvenil, posto que a criança não cresce, sadiamente, sem a constituição de um vínculo afetivo estreito e verdadeiro com os adultos, preferencialmente, com seus pais naturais e família extensa, incluindo os avós.
O vínculo é de tamanha importância à condição humana, bem como essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança e do adolescente o consideram como convivência, ou seja, o viver junto. Não basta sobreviver: a criança possui o direito de participar de uma rede afetiva onde possa crescer e desenvolver-se de forma plena, tendo, ao seu redor, todos os meios e instrumentos necessários a um crescimento natural.
Dentro da família, a criança tem direito à vida, à saúde, ao reconhecimento de sua dignidade e, acima de tudo, o direito de crescer de forma natural, sem possíveis desvios que comprometam o seu desenvolvimento. Corrobora com o exposto, decisão proferida pelo egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
A convivência familiar em um ambiente sadio é direito fundamental das crianças e adolescentes e, como tal, deve ter tratamento prioritário e adequado pelo nosso ordenamento jurídico, sopesando a manutenção dos laços afetivos entre pais e filhos e a proteção da dignidade da pessoa em estado de desenvolvimento. Deram provimento ao apelo[10].
É a família que, em primeiro lugar, conhece as necessidades, as deficiências e as possibilidades da criança; por isso, pode-se dizer que está apta a garantir a primeira proteção. Nessa esteira, o artigo 227 da Constituição Federal elevou a convivência familiar à categoria de direito fundamental, sendo dever da família, da sociedade e do Estado, como um todo, garantir que essa convivência se efetue, oportunizando um desenvolvimento saudável.
Martha de Toledo Machado afirma que o direito à convivência familiar, previsto no artigo 227 da Constituição Federal, é direito essencial às crianças e aos adolescentes, sendo considerado direito próprio da personalidade infantil, pois diz só com a personalidade destes e não com a dos adultos. E conclui, afirmando:
Anote-se, também, que é em estrita obediência aos preceitos dos artigos 226 e 227 da Constituição Federal, calcados na noção fundante de dignidade da pessoa humana, e na positivação de que a convivência familiar é direito fundamental de crianças e adolescentes, porque ligado ao valor mais básico da personalidade infanto-juvenil, que vieram as disposições contidas nos artigos 19 e 25, da Lei nº 8.069/90.
Na esteira desses entendimentos, passa-se a considerar a relevância de se legitimarem direitos de convivência das crianças e adolescentes com os avós, e importante inovação legislativa sobre a matéria ocorreu com a promulgação da Lei nº 12.398/2011, que estende aos avós o direito à convivência com os netos. A Lei, de forma expressa, assegura: O direito de visitas estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente (artigo 1.589, parágrafo único, do Código Civil).
O Código de Processo Civil, artigo 888, inciso VII, também disciplina sobre a matéria, nos seguintes termos: A guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visitas que, no interesse da criança ou do adolescente, pode, a critério do juiz, ser extensivo a cada um dos avós.
É neste sentido que a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vêm se posicionando:
É sabido que a relação entre avós e netos é considerada saudável e até necessária para preservar os vínculos afetivos. Corroborando tal entendimento, dispõe o art. 1.589 do CC:
“Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente.” – grifei.
É certo que a formação dos vínculos afetivos entre a infante e os avós é essencial para o desenvolvimento sadio da menina, todavia, tal convívio deve ser estabelecido de forma a atender aos interesses e conveniências da criança.
Atenta-se, por oportuno, que em ações como a presente, que envolvem menores, são os interesses destes que devem preponderar em detrimento de qualquer outro. E são os interesses da menina que dizem que, por ora, enquanto ainda inexistente elementos seguros acerca da impossibilidade de os avós conviverem com a neta e de qualquer comportamento irresponsável do avô, as visitas avoengas devem ocorrer na forma em que estipuladas pelo juízo da origem.
(Agravo de Instrumento Nº 70074800657, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator Jorge Luís Dallágnol, Julgado em 12 de dezembro de 2017).
REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. PEDIDO DA AVÓ MATERNA. SUPREMACIA DO INTERESSE DA CRIANÇA. 1. O convívio da criança com os avós é, em regra, recomendável. 2. Justifica-se o indeferimento das visitas quando desaconselhada pelos laudos psicológicos e pela avaliação psiquiátrica da autora, pois prejudicial para a criança. 3. Comprovado que a criança enfrenta graves problemas de saúde e sendo insuperáveis dificuldades no relacionamento entre as litigantes, que são mãe e filha, e, especialmente, comprovado o transtorno de personalidade da própria autora, mãe da ré e avó da criança, mostra-se descabida a pretendida regulamentação de visitas. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70074757659, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 27/09/2017).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. VISITAS AVOENGAS. 1. O direito de visita dos avós aos netos está assegurado na esteira do disposto no artigo 1.589, parágrafo único, do Código Civil 2. Na hipótese, não há nos autos justificativa para impedir o convívio entre a avó materna e os netos, tratando-se meramente de animosidade entre a genitora dos menores e sua mãe. RECURSO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70074734559, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 27/09/2017).
O afeto emergiu dos lugares implícitos e tomou posições constitutivas de direitos e deveres, mas, sobretudo, passou a ecoar livremente entre os sujeitos familiares, abrindo espaço para novas formas de vinculação e convivência, como, por exemplo, entre avós e seus netos. Vínculo afetivo e vínculo familiar se fundem e se confundem, deixando emergir a essência das relações familiares!
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[1] PhD em Psicologia Forense pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Mediadora de Conflitos pela CLIP. Advogada. Psicanalista Clínica. Docente e Supervisora no Curso de Formação de Mediadores de Conflitos da CLIP. Especialista em Direito de Família pela PUC/RS. MBA em Direito Civil e Processo Civil pela FGV. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica e da Sociedade Sul-Brasileira de Psicanálise. Vice-Presidente da Associação Brasileira Criança Feliz. Diretora do IBDFAM/RS. Coordenadora do Núcleo de Mediação em contextos de Alienação Parental da CLIP. Sócia fundadora da AMARGS Associação de Mediadores, Árbitros e Conciliadores do Rio Grande do Sul. Membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança, na Universidade do Minho/Portugal. E-mail: fernanda.molinari@outlook.com
[2] LIBERATTI, Wilson Donizeti. Adolescente e ato infracional: Medida sócio-educativa é pena? São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 45.
[3] A expressão “paradigma”, utilizada ao longo do trabalho, refere-se à mudança de tratamento dispensado à criança, hoje, constitucionalmente, reconhecida como sujeito de direitos, merecedora de proteção integral.
[4] SCHREIBER, Elisabeth. Os direitos fundamentais da criança na violência intrafamiliar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001. p. 81.
[5] AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: É possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 52.
[6] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70019490846. Oitava Câmara Cível. Relator desembargador Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em 17/05/2007. Disponível em: <http:// www.tjrs.jus.br> Acesso em: 20 jul. 2018.
[7] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70005828959. Sétima Câmara Cível. Relator desembargadora Maria Berenice Dias. Julgado em 21 de maio de 2003. Disponível em: <http:// www.tjrs.jus.br> Acesso em: 20 jul. 2018.
[8] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70019171164. Sétima Câmara Cível. Relator desembargadora Maria Berenice Dias. Julgado em 03 de abril de 2007. Disponível em: <http:// www.tjrs.jus.br> Acesso em: 20 jul. 2018.
[9] RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. O poder familiar e a guarda compartilhada sob o enfoque dos novos paradigmas do Direito de Família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 18-9.
[10] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70022182372. Oitava Câmara Cível. Relator Desembargador Alzir Felippe Schmitz. Julgado em 12/06/08. Disponível em: <http:// www.tjrs.jus.br> Acesso em: 20 jul. 2018.