Paulo Guerra
Juiz Desembargador
De muito colo.
Mesmo contra a opinião de muitas avós que, do alto das suas experiências maternas e avoengas, vão opinando que colo a mais faz mal.
É da natureza humana a inevitabilidade da necessidade de vinculação segura.
A um outro.
A alguém que tem de ser capaz de amar e cuidar de uma criança como ela merece, de acordo com os cânones expostos nas Magnas Cartas da infância, todas iluminadas pelo espírito generoso e terno da Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989 e logo ratificada pelo Estado Português no ano seguinte, fazendo, assim, e por isso, parte do cotejo de legislação que pode e deve ser directamente aplicada a todas as crianças portuguesas ou residentes em Portugal.
Na promoção de direitos e na protecção da criança deve ser dada prevalência às medidas que a integram numa família - ou seja, na actual alínea h) do artigo 4º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP, doravante) já não se fala «na sua família», mas apenas em «família», seja ela qual for (dando-se aqui o primado de uma família em detrimento do acolhimento residencial).
O princípio da prevalência da família terá que ser entendido não no sentido da afirmação da prevalência da família biológica a todo o custo, mas sim como o assinalar do direito sagrado da criança à família, seja ela a natural (se for possível, devendo, neste campo, o Estado ser capaz de acompanhar as famílias biológicas, ajudando-as a superar o perigo em que vivem as suas crianças), seja a adoptiva, reconhecendo que é na família que a criança tem as ideais condições de crescimento e desenvolvimento e é aquela o centro primordial de desenvolvimento dos afectos.
De facto, nem sempre a biologia é sinónimo de vinculação. O sangue não é uma sina para a vida. E assim, por vezes, haverá que entregar uma criança ao laço adoptivo, completamente similar ao biológico, a partir do momento em que existe uma sentença judicial constitutiva da providência tutelar cível em causa – a adopção.
E quer numa quer noutra, os pais vão ter de ser adoptados pelo filho que lhes foi entregue pela placenta ou por vontade soberana de um juiz – e, como diz Laborinho Lúcio, que bom seria que todos os filhos fossem adoptados, até os biológicos!
Mas uma criança pode viajar para o colo de outras pessoas sem ser pela adopção – existem outros caminhos, menos radicais, que podem até coexistir com alguma parte do exercício das responsabilidades parentais ainda nas mãos da progenitura biológica.
E esses caminhos são trilhados pela legislação portuguesa – podemos estar a falar de limitações do exercício das responsabilidades parentais, de tutelas, de apadrinhamentos civis ou de medidas de promoção e protecção, estas à luz da LPCJP, datada de 1999 mas revista, em grande espectro, em 2015.
O acolhimento familiar de crianças está previsto como uma das medidas protectivas aplicáveis pelas Comissões de Protecção e pelos Tribunais aquando da constatação de que uma criança está em perigo, lido sob a égide do artigo 3º, n.º 2 dessa lei.
E sabemos que este é um momento charneira neste país – a lei quer que as crianças até aos 6 anos vivam em famílias de acolhimento se tiverem de ser separadas de seus pais, de forma provisória, assim o ditando o n.º 4 do artigo 46º da LPCJP.
2. Temos lei, temos norma, queremos acção!
Neste momento, na Irlanda, 65% das crianças retiradas às famílias estão em famílias de acolhimento, 25 a 27% em famílias alargadas, 8% a 10% em acolhimento residencial.
Há 15 anos estava como nós!
Em Portugal, há uns anos, os parentes deixaram de poder funcionar como família de acolhimento.
Os outros países do chamado mundo desenvolvido reconhecem a família alargada como uma maneira de providenciar cuidados a crianças que não podem estar com a família imediata.
Se Portugal quer subir à primeira liga tem de considerar formas de valorizar mais os laços familiares, de pensar em formas de apoiar familiares que estão dispostos a acolher crianças que não podem estar com a família mais próxima.
Paul McDonald foi só um entre 700 delegados de 45 países que se encontraram na conferência bienal da EUSARF, a Associação Científica Europeia para o Acolhimento Residencial e Familiar de Crianças e Jovens, cujo congresso bienal juntou no Porto, entre 2 e 5 de Outubro, centenas de investigadores/professores, técnicos e estudantes (estive lá!).
Indignou-se como nenhum outro com a quantidade de crianças que Portugal tem a crescer em lares de infância e juventude e escreveu um manifesto que foi apresentado no encerramento da Conferência no dia 5/10/2018, e que seguiu, penso, para o Governo e para o Presidente da República.
Serviu para algo?
Os dados relativos ao CASA 2017 foram conhecidos no passado dia 20/11, com um atraso considerável.
Onde está a regulamentação da medida de acolhimento residencial, em falta desde 1/1/2001?
E o que foi dito pela tutela de que o Acolhimento Familiar ficará congelado até haver forma de monitorizar a fiscalização destas famílias?
Perguntas para as quais não tenho resposta (como se estivesse a ser feita uma eficaz fiscalização do acolhimento residencial entre nós!).
Para mim, é dilacerante saber que existem 7553 crianças acolhidas em terreno residencial, existindo apenas 178 famílias de acolhimento.
Foi dito que o número de famílias de acolhimento só será aumentado quando existirem meios. Esqueceram-se, porém, de explicar que a inexistência desses mesmos meios resulta do não investimento neste processo (o mesmo se poderá dizer do Apadrinhamento Civil que existe desde 2009 mas que nunca viu um esforço estatal sério de explicação do instituto ao mundo).
Eu sei que uma Família não é uma VAGA, sendo antes um PERFIL – é certo que há que ser criterioso na escolha da melhor Família de Acolhimento para que nada falhe. Há muito trabalho pela frente, pois então!
Não vale é DESISTIR, como é aquilo que o Estado está a querer fazer…
Deve agir de imediato, começando paulatinamente pelos mais pequeninos, aqueles relativamente aos quais é pacífica a doutrina científica em considerar ser um crime de lesa-infância a sua residencialização, por muito boa que seja a Casa de Acolhimento.
Dar pequenos passos, regulamentar sabiamente a LPCJP neste jaez, aproveitar as mais-valias de experiência nortenhas de sucesso, olhar para as outras IPSS que estão prontas para avançar…
Não é preciso congelar a medida com a desculpa de que não há meios humanos para a monitorizar.
É necessário dar um passo civilizacional, entregando uma chance às crianças de não se verem condenadas à tristeza e de crescerem numa família que as motive, as estimule e as guarde.
Isto é pedir muito?
Existe uma clara evidência científica que expõe as graves desvantagens da institucionalização.
Muito embora as instituições para crianças em perigo tendam a fazer um esforço de melhoria do seu funcionamento (onde deve sempre existir um claro contexto emocional), não é menos verdade que continuam a ser instituições.
Como me ensinou o meu querido amigo, o psicólogo espanhol Jesus Palácios, «nós, os humanos, somos feitos de uma matéria que, na infância, necessita atenção individualizada, de compromisso pessoal, e da presença e disponibilidade de boas figuras de afecto».
Esta medida do acolhimento familiar apresenta imensas vantagens e benefícios em relação ao acolhimento residencial, como por exemplo, o permitir à criança/jovem a vivência numa família estruturada e equilibrada, em oposição ao acolhimento residencial onde, inevitavelmente, as relações individualizadas ficam seriamente comprometidas e onde não existe um modelo familiar que a criança/jovem possa vivenciar e modelar-se; mas sim um modelo institucional, com enorme rotatividade de cuidadores, rotinas e actividades (quase) sempre de carácter grupal e onde o espaço íntimo – pessoal e relacional – é bastante difícil de ser promovido.
Os Direitos Humanos e os Direitos das Crianças devem estar na base da eliminação do acolhimento de longo prazo para crianças, pelo menos numa 1ª fase, com idade inferior a 3 anos.
Os dados da evidência científica vêm corroborar a importância desta questão.
Devem ser adoptadas, com carácter de urgência, estratégias e sistemas para prevenir e responder à colocação residencial das crianças pequenas, entendidas como forma de violação institucional dos direitos humanos.
Quando se esgotou a resposta na família biológica, junto dos pais, e a situação de grave perigo se mantém para a criança, deverão ser protegidos os direitos da criança assegurando que poderá viver numa família de substituição.
Um estudo de 2014 da ONU sobre a Violência contra as Crianças claramente indica que deve ser favorecido o acolhimento familiar em todas as situações de retirada da família biológica, e que, no caso das crianças até aos 3 anos de idade, deverá ser a única opção.
Os benefícios de manter as crianças pequenas com famílias são incontestáveis no que diz respeito à sua saúde, desenvolvimento e felicidade, e que são a concretização do melhor interesse da criança – e nunca é demais lembrar que cada ano de institucionalização de uma criança equivale à perda de 4 meses de desenvolvimento.
Todos somos, no fundo, 3-1-1: essenciais ao nosso equilíbrio emocional são os primeiros três (3) meses do primeiro (1) de três (3) anos da nossa vida...
O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos, como é o caso das CPCJ.
Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.
E não esqueçamos o principal - para fazer todo o resto, muitas vezes, basta o AMOR (um outro nome para o afecto, um valor jurídico constitucional em Portugal)!
Porque um olhar activo e umas habilidosas mãos construtoras de desejáveis e mais do que necessárias famílias de acolhimento também podem – e são - actos de AMOR…
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