A modificabilidade da decisão de atribuição da casa de morada de família

Dispõe o artigo 1793º do Código Civil que o tribunal pode «… dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.»

Já o número 3, do mesmo artigo prevê que «O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.»

A atribuição da casa de morada da família é, pois, um incidente de jurisdição voluntária, o que significa que as decisões tomadas no seu âmbito podem ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes, que justifiquem uma modificação, tomando em conta que, conforme resulta do artigo 987º do Código de Processo Civil, na decisão a proferir, «… o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.».

Na mesma esteira, importa tomar com conta a previsão do artigo 988º do mesmo Código que aponta para a possibilidade de alteração de decisões já tomadas desde que tais alterações operem «… com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração;».

De acordo com este artigo 988º, «… dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.».

Estas circunstâncias supervenientes têm que ser relevantes, devendo também ser tendencialmente permanentes e não meramente transitórias ou de carácter potencialmente pouco duradouro.

Assim, após a tomada de uma decisão que determine que o direito de utilização da casa de morada de família será atribuído a um dos cônjuges, essa mesma decisão pode, no futuro, ser alterada dentro do circunstancialismo supra referido, cabendo salientar que o tribunal, ao não estar sujeito a critérios de legalidade estrita pode, na sua decisão, configurar a solução que, no momento e em face dos factos, considere como a mais conveniente e oportuna.

Importa esclarecer que quando se pede a alteração da decisão de utilização da casa de morada de família, não se pretende verificar se a decisão anteriormente tomada estava  correta ou não, na medida em que, aquilo que se pretende é que o tribunal profira uma nova decisão com base em circunstâncias que não existiam aquando da tomada da anterior decisão.

Quer na decisão de atribuição da casa de morada de família, quer na decisão que modifique a anteriormente tomada, a regra geral a observar é a de que o direito à utilização da casa deve ser atribuído ao ex-cônjuge que mais precise dela  devendo, para o efeito, ter-se em linha de conta vários pontos como seja a situação patrimonial dos ex-cônjuges, o interesse dos filhos do ex-casal, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, a situação profissional de cada um dos membros do ex-casal, etc.

Quando, da ponderação de todos os factores supra mencionados – e outros que, no caso concreto, relevem - se concluir que a necessidade de utilização da casa por um dos ex-cônjuges é consideravelmente superior à do outro, então, o tribunal deverá atribuir àquele o direito ao arrendamento da casa de morada da família.

Em súmula, as decisões de atribuição de direito de utilização de casa de morada de família não são estáticas, na medida em que, levados ao conhecimento do tribunal factos e circunstâncias supervenientes que imponham uma adequação da decisão a proferir à nova realidade existente o tribunal pode, uma vez provada essa nova realidade, proferir decisão diversa da anterior, o que poderá implicar que o ex-cônjuge que tinha direito à utilização da casa deixe de o ter, passando o outro a ter tal direito na sua esfera jurídica.

Impõe-se, pois, articular de forma precisa e objetiva, quais as novas circunstâncias supervenientes que fundamentam o pedido de modificação da decisão anteriormente tomada, cabendo o ónus da prova a quem invoca essas mesmas circunstâncias.

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A retenção ilícita de uma criança e a regulação das responsabilidades parentais

Nos dias de hoje, é usual que pessoas de nacionalidades diferentes casem ou se unam de facto e tenham filhos, o que implica que, cada vez mais, surjam problemas relacionados com a residência das crianças, filhas de pais de nacionalidades diferentes.

Uma situação cada vez mais frequente é a de crianças que residiam com os pais num determinado país, no momento da separação daqueles, sejam levadas, por um progenitor, sem o consentimento do outro, para o país da nacionalidade daquele, porque este entende que nada mais o prende ao país que a família tinha escolhido como local de residência da família.

Nestas situações, podemos ter, uma situação processual, em que uma criança, ao ser levada sem o consentimento do outro progenitor para outro país, implique o acionamento da Convenção da Haia de 1980 ou, mesmo, o acionamento do Regulamento n.º 2201/2003, de 27 de novembro de 2003, acrescendo ainda que, o progenitor que ficou no país onde a família residia, interponha pedido de regulação das responsabilidades parentais relativas à criança.

Qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da regulação das responsabilidades parentais relativa a esta criança?

A regra é a de que o tribunal internacionalmente competente é o da residência habitual da criança à data em que o processo de regulação seja instaurado sendo que, na situação supra descrita, existirá uma criança com residência habitual num país (aquele onde vivia) e com um local de permanência (o país onde se encontra).

A competência para conhecer da regulação das responsabilidades parentais dessa criança cabe ao tribunal onde a criança tem a sua residência habitual, sendo que, a existência de um processo a pedir o regresso da criança ao país da sua residência poderá influir na fixação da competência internacional do tribunal que deverá regular as responsabilidades parentais.

Isto porque pode acontecer que o tribunal do Estado para onde a criança tenha sido deslocada ou esteja retida, venha a proferir uma decisão de não regresso da criança ao Estado da sua residência habitual e, nessa situação, o tribunal desse Estado passa a ser internacionalmente competente para conhecer da regulação das responsabilidades parentais.

Assim, numa situação destas, pode o tribunal onde foi pedida a regulação das responsabilidades parentais vir a suspender a instância, atento o facto de a decisão a proferir sobre o regresso ou não regresso da criança ter repercussão na fixação da competência internacional do tribunal que conhecerá da regulação das responsabilidades parentais.

 

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A realização de perícias às crianças e aos progenitores: o seu consentimento

A realização de perícias às crianças e aos progenitores: o seu consentimento

No decurso de processos judiciais e, concretamente, em processos de promoção e proteção de crianças, a instrução dos mesmos impõe, na maioria das vezes, que sejam realizadas perícias, quer às crianças, quer mesmo aos progenitores.

Basta, para o efeito, que o Tribunal ordene a realização das mesmas?

Para respondermos a esta questão, importa enquadrar as normas relevantes e, das mesmas, extrair as conclusões pertinentes.

Conforme resulta do artigo 87.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aos exames médicos a realizar às crianças, salvo em situações de emergência, é aplicável quanto previsto nos artigos 9.º e 10.º desta Lei.

No que respeita ao artigo 9.º, do mesmo resulta que a intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens depende do consentimento expresso, prestado por escrito, pelos pais, representante legal ou pessoa que tenha a guarda de facto da criança.

Já o artigo 10.º desta Lei prevê que a intervenção das entidades mencionadas nos artigos 7.º e 8.º depende da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos. Mais, a oposição de criança com idade inferior a 12 anos é tomada em conta e tida como relevante, de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção.

Assim, da leitura destas disposições, resulta que, ressalvadas as situações de emergência conforme previstas no artigo 91.º da mesma Lei, não basta que o Tribunal ordene a realização de perícias, pois a realização de exames médicos a  uma criança depende do consentimento dos progenitores, de acordo com quanto previsto no artigo 9.º e a realização destes exames depende, também, da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos sendo que, quando a criança tem menos de 12 anos, a sua oposição é tomada em conta por referência à sua capacidade de compreender o sentido da intervenção.

E, como é que a criança manifesta a sua oposição ou a sua não oposição?

Tal manifestação tem execução através do direito de audição e participação da criança ou jovem, previsto no artigo 4.º alínea j) desta Lei podendo, em certos casos, vir a ser concretizada através do seu patrono ou podendo ser concretizada com a audição presencial da criança, a qual poderá exprimir a sua oposição à realização dos exames, de forma pessoal, junto dos técnicos da Segurança Social ou do Tribunal.


Do mesmo modo, a realização de perícias aos progenitores depende do seu consentimento para o efeito, pelo que uma vez manifestada a sua oposição, as perícias não poderão ser realizadas pois, caso contrário, estar-se-ia perante uma violação dos seus direitos de personalidade.

Em súmula, fora dos casos previstos no artigo 91.º desta Lei, a realização de perícias a crianças, ainda que as mesmas se apresentem como úteis e pertinentes, fica condicionada, desde logo, se os progenitores manifestarem oposição à realização das mesmas.

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Contributo do Dr. António José Fialho, Juiz de Direito do Tribunal de Família e Menores do Barreiro

Contributo do Dr. António José Fialho, Juiz de Direito do Tribunal de Família e Menores do Barreiro

É previsível que o estado de emergência decretado se vá prolongar por mais quinze dias e que as medidas de contingência e de isolamento social se prolonguem ainda por mais algum tempo.

Os tribunais estão em regime de emergência desde o passado dia 12 de Março, estando a realização do serviço restringida aos actos processuais urgentes e em que esteja em causa o exercício de direitos fundamentais.

Ao mesmo tempo, foram sendo desenvolvidas ferramentas no sentido de melhorar o teletrabalho, quer por parte dos magistrados que já dispunham dessa possibilidade pelo uso da ferramenta VPN, bem como pelos advogados, estando em fase de alargamento para os funcionários judiciais.

A palavra de ordem é diminuir a concentração de pessoas por sabermos que é um risco acrescido de contágio relativamente a uma doença que nos atinge a todos mas, principalmente, vai atingir a nossa forma de trabalhar, de estar e de viver.

A reflexão que quero deixar aqui é principalmente dirigida a todos aqueles que exercem a sua actividade profissional na jurisdição da família e das crianças, ou melhor dizendo, um desafio para que a nossa vida profissional não fique parada, à espera de melhores dias que certamente virão mas cujo horizonte temporal ainda não é possível definir.

Em primeiro lugar, estando todos os serviços de atendimento encerrados e procurando evitar-se o contacto social, não será possível um esforço adicional entre todos e, principalmente entre os advogados, no sentido de promoverem a realização de acordos em processos que irão estar muito tempo à espera de uma solução, assumindo os tribunais o compromisso de dar prioridade a esses processos para que a situação jurídica dessas crianças seja resolvida sem esperarmos pelo fim da pandemia ?

Em segundo lugar, numa fase mais estável da organização dos meios, não será possível a realização de actos e diligências processuais com recurso a meios de comunicação à distância que nos garantam a segurança mas, ao mesmo tempo, permitam a realização desse acto processual para que o processo avance e os advogados possam ir exercendo o seu múnus de representação jurídica?

Em terceiro e último lugar, não será possível que, nos casos em que esteja em causa a realização de uma audiência de julgamento e a lei processual o permita, sejam utilizados os mecanismos de comunicação à distância ou, preferencialmente, os depoimentos escritos (como está a suceder nas acções cíveis ou de família na Alemanha), eventualmente com a apresentação de alegações escritas e posterior prolacção da decisão final?

É um desafio para todos nós (juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e funcionários judiciais) mas não é nada que não esteja a ser ponderado noutros países, muitos deles com menos condições técnicas daquelas que temos em Portugal, procurando obviar ou reduzir os efeitos perversos de uma paragem dos processos durante um tempo que nenhum de nós consegue ainda prever.

Pensem nisso … e se quiserem partilhar esta minha ideia com quem tem o poder de decisão, deixo aqui expressamente a minha autorização para o efeito.

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Da Mediação Familiar e da Justiça para uma parentalidade tranquila

Da Mediação Familiar e da Justiça para uma parentalidade tranquila

 

Simão e Joana são pais de Francisco de seis anos de idade. No correr dos dias atribulados, Simão e Joana não se querem mais na mesma casa, na mesma mesa, no mesmo leito.

Separam-se e ameaçam-se reciprocamente de não mais verem o filho.

Simão deu entrada, no tribunal, de uma acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Algum tempo depois são chamados a uma Conferência de Pais onde ambos manifestaram a vontade inabalável de ficarem com Francisco na sua residência. O juiz fixa um regime provisório em que a criança permanece junto do pai e convive com a mãe em datas definidas. É solicitada a intervenção da Audição Técnica Especializada.

Convocada nova conferência de pais, tudo permaneceu na mesma, com Simão e Joana ainda mais zangados, de olhares quase fulminantes. Conhecem já a posição processual de cada um, conhecem o campo de batalha, só não conhecem todas as armas.

São elaborados os relatórios sociais com vista à marcação de julgamento e quase um ano e meio depois do início da acção judicial, chegamos ao dia de produzir prova sobre qual dos dois pais proporciona um quotidiano mais favorável à satisfação das necessidades do Francisco.

Ah…..por falar em Francisco, por onde tem andado ele neste longuíssimo entretanto? Sem dúvida, a circular entre pai e mãe zangados, cada vez mais zangados com o que tudo isso deixa transparecer para uma criança que, agora, já fez sete anos.

Decorreu o julgamento, extenso como se previa. Requerimentos e mais requerimentos, alegações que notoriamente indiciavam a manutenção da residência de Francisco com o pai.

No fim-de-semana seguinte, como de costume o pai faz 100 kms para levar o filho à mãe. A mãe não comparece no local de sempre.

Aguardam.

Nada.

Regressam.

O pai envia uma sms e a resposta chega: “Fica com ele. É teu, agora é todo teu.”

E de novo o Francisco, do alto dos seus sete anos, um menino grande que tem de se portar bem, como tantas vezes ouve, o que sentirá ele?

Teria de ser assim? Terá de ser assim tantas vezes? Somos capazes de ouvir em coro uníssono “não, nunca devia ser”, seguido da conformação “mas não temos alternativa”.

Temos sim, temos outras atitudes e outros caminhos possíveis. Vim aqui para vos deixar a dica do que há muito defendo como um outro caminho a trilhar para alcançar a paz social, enquanto fim último da justiça. Um caminho que permite poupar energias emocionais, poupar tempo e preservar afectos.

A Mediação é hoje um meio de resolução de conflitos, previsto e regulamentado na lei portuguesa. A pertença a uma união europeia assim o recomendou e assim o impôs. Confrontados com a existência de um conflito familiar, temos todos a possibilidade de escolher a mediação para através dela alcançarmos a solução mais adequada e mais justa no caso concreto.

Perante uma questão controvertida, dispomos de duas vias, o que é apanágio de sociedades ditas desenvolvidas. Entregamos o assunto ao tribunal para decidir de acordo com a convicção que vier a formar, ou pomos mãos à obra e construímos nós próprios a solução à medida da nossa realidade familiar. Nesse percurso devemos contar com a ajuda de um profissional devidamente qualificado, escolhendo um mediador do sistema público, ou um mediador privado, mas em qualquer dos casos inscrito nas listagens que se encontram disponíveis no site da Direcção Geral da Politica de Justiça, já que estes respondem a requisitos de formação reconhecida pelo próprio Ministério da Justiça.

O processo de mediação familiar desenvolve-se, então, num espaço profissional e acolhedor, onde todos os intervenientes são tratados de igual forma, onde têm igual oportunidade de falar das suas emoções, dos seus interesses e das suas necessidades e onde o mediador não formula juízos de valor, simplesmente legitima as partes enquanto pessoas que vivenciam dificuldades para as quais estão interessadas em encontrar uma solução exequível. Uma solução que não dê lugar a sucessivos incumprimentos e porque os próprios são os obreiros da sua resposta, sentem-se muito mais predispostos ao cumprimento do que numa qualquer solução que lhes seja imposta.

Cabe aqui referir que a mediação não é panaceia para todos os males. Ao longo dos mais de vinte anos que dedico à prática, ao estudo e ao ensino do tema sou com frequência questionada sobre tal, e a resposta inevitável é a de que nem todos cabemos nos mesmos fatos, nem todos respondemos de igual forma à mesma medicação. Porque haveriam os conflitos de caber todos na mesma forma de resolução e aí obter respostas eficazes? É com a diversidade de caminhos e de abordagens disponibilizadas ao cidadão, que se enriquece uma sociedade que aspira alcançar um elevado índice de paz social, mas um facto é certo, quanto mais precoce for o recurso à mediação maior a probabilidade de se conseguir trabalhar a comunicação das pessoas desavindas e como consequência alcançar um acordo satisfatório para os seus destinatários. Antes de conhecerem o campo de batalha deveriam conhecer a mesa da negociação assistida.

Uma última referência, que se julga da maior pertinência para o tema em reflexão, é a da ligação da mediação a outras actividades profissionais com intervenção nestas matérias. Falamos de magistrados, advogados e psicólogos, chamados à colação em direito da família. É urgente a aceitação, o respeito e a interligação entre todos. Cada um tem um papel diferente, mas complementar no apoio às famílias.

Para que todos os Franciscos saiam do centro do conflito dos pais e permaneçam no centro da sua cooperação, na nobre tarefa da parentalidade.

Anabela Quintanilha

Mestre em Direito com especialização em Justiça Alternativa, advogada, mediadora familiar e formadora

 

 

 

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A formação dos profissionais na audição das crianças

A formação dos profissionais na audição das crianças:

Porque a audição das crianças é um assunto de suma importância, voltamos a este tema, hoje, na perspetiva da formação dos profissionais, formação essa direcionada para a referida audição.

Também neste segmento importa atentar nas Diretrizes para uma justiça amiga das crianças, adoptadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às crianças.

Concretamente, no que respeita à formação que os profissionais envolvidos deverão ter, assumem particular relevância, as Diretrizes 14 e 15.

Na Diretriz 14, refere-se que:

«14. Todos os profissionais que trabalhem com e para crianças devem receber a formação multidisciplinar necessária sobre os direitos e as necessidades das crianças de diferentes grupos etários, bem como sobre os processos que melhor se lhes adequam

A Directriz 15 recomenda que:

«15. Os profissionais que tenham contacto direto com crianças devem também receber formação sobre as formas de comunicar com crianças de todas as idades e fases de desenvolvimento, bem como com crianças em situação de particular vulnerabilidade»

No que respeita à formação multidisciplinar, é inegável que os profissionais da Justiça precisam de trabalhar, em equipa, com outros profissionais que lhes aportem tecnicidades específicas por forma a que, por exemplo, quando estão a ouvir uma criança, consigam depurar o que é dito, destacando o que é essencial do acessório, por forma a concentrar, com precisão, o que, de facto, a criança pretende, quer ou o que a faz sofrer e angustia.

É muito difícil, por exemplo, um juiz ouvir uma criança sem estar devidamente assessorado para o efeito, por um técnico que saiba traduzir o que a criança disse. Concretamente, por muito esforço que o juiz faça no sentido de perceber e contextualizar a audição da criança, em casos complexos, em que a criança se sente envolvida numa guerra entre as suas principais figuras de referência (os seus Pais), tal tarefa só terá a ganhar se for devidamente acompanhada por um psicólogo que esteja integrado no processo, conhecendo-o e conhecendo o menor.

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Essencial, também, é a formação que os profissionais deveriam receber sobre a forma como devem comunicar com a criança.

Perguntas sugestivas, perguntas cuja resposta é apenas um sim ou um não, perguntas que obrigam a criança a fazer uma escolha entre pai e mãe, são formas desadequadas de ouvir uma criança e que devem ser banidas.

No entanto, não basta banir este tipo de perguntas. Importa que os profissionais envolvidos adquiram conhecimento e maleabilidade mental para lidar com as crianças, impondo-se como necessária a frequência de formações, com outros profissionais, que os ajudem a lidar e a trabalhar com a criança.

As recomendações constantes das diretrizes 14 e 15 são válidas e deveriam ser encaradas como uma urgência de cada ordem jurídica.

Importa salientar que ouvir uma criança implica conhecer o seu desenvolvimento cognitivo e emocional, saber interpretar o seu choro, o seu silêncio, o que diz, o que não diz, etc.

Tal só com uma formação específica e direcionada é que poderá ser alcançado, por forma a se garantir uma audição livre e verdadeira da vontade da criança.

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Em matéria de formação, não podemos deixar de mencionar o relatório levado a cabo pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, datado de 2015, denominado “Justiça adaptada às crianças: perspetivas e experiências dos profissionais

Neste relatório, é salientado o facto de as práticas de audição dependerem das competências profissionais de cada pessoa que está encarregue dessa função e, claro, variam de tribunal para tribunal e, mesmo, de região para região.

Conforme resulta deste relatório, existem regras e orientações que são utilizadas no Reino Unido e na Finlândia, que, por exemplo, permitem reduzir o número de audições e permitem melhorar a comunicação com a criança.

Ainda no quadro da justiça adaptada às crianças, encontramos várias Diretrizes que falam do direito que as crianças têm a estar representadas por advogado.

Destacamos, aqui, a Diretriz 37, a qual refere que:

«As crianças devem ter o direito a estar individualmente representadas por um advogado nos processos em que haja, ou possa haver, um conflito de interesses entre a criança e os pais ou outras partes envolvidas

Conforme decorre da Diretriz 39, os advogados em causa devem ter formação e conhecimentos sobre os direitos da criança e matérias conexas e receber formação contínua e aprofundada, o que, nos remete, aqui, novamente, para quanto já supra falado, sobre o problema real da falta de formação.

Ainda em matéria de representação, a Diretriz 42 refere que:

«Nos casos em que haja conflito de interesses entre os pais e as crianças, a autoridade competente deve nomear um tutor ad litem ou outro representante independente para defender os pontos de vista e os interesses da criança

Em Portugal, ainda não encontramos consagrada, na lei e na prática, esta realidade, não estando as crianças representadas, em juízo, por advogado.

Não podemos, aqui, deixar de mencionar o facto de um advogado nomeado para representar uma criança, nos termos constantes das Diretrizes supra, não poder ser um advogado qualquer, mas sim uma pessoa que esteja habilitada para o efeito, pelo que, o nosso entendimento é que esse advogado deveria estar credenciado pela Ordem dos Advogados para o efeito, devendo para tanto, ter a devida formação que o habilitasse a estar em juízo, em representação de uma criança, com tudo o que isso implique.

Não basta consagrar, sendo essencial e indispensável que estes direitos das crianças sejam salvaguardados, o que só se alcançará, se a realidade do tribunal for, efetivamente adaptada às crianças, em todas as suas vertentes.

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Conforme resulta do relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, supra mencionado, a prática integrada no Reino Unido é bem diferente: em Inglaterra e no País de Gales, qualquer criança que tenha intervenção num processo cível, terá o apoio de um tutor que acompanhará o processo, em seu nome. Será este tutor, quem comparecerá em Tribunal, expressando os desejos e os sentimentos da criança em juízo.

Este tutor é, também, a pessoa responsável por explicar o processo à criança, mantendo-a ao corrente do mesmo e transmitindo-lhe, também, o seu desfecho, o que está de acordo com a recomendação da Diretriz 75.

O relatório identifica esta realidade como uma prática promissora.

Já na Finlândia, quando existe um conflito de interesses que impede os pais de um menor de serem os seus tutores num processo, é nomeado um tutor para representar a criança em tribunal.

Também, de acordo, com o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, esta realidade constitui uma prática promissora.

Em face destes dois exemplos e, olhando para a realidade de alguns Estados-Membros, não podemos deixar de concluir que os direitos da criança, neste segmento, estão ainda muito longe de se encontrarem salvaguardados, sendo necessária a adoção de medidas, em vários setores, que permitam assegurar que a justiça seja, de facto, adaptada às crianças.

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A defesa de uma maior intervenção das crianças nos processos que lhes respeitam, nomeadamente, através do seu direito de audição e do direito a serem representadas por advogado, não equivale à defesa da desejabilidade de que as crianças sejam trazidas para os processos judiciais.

O envolvimento de crianças em processos judiciais deve, tanto quanto possível, ser evitado, razão porque enfatizamos aqui que, no âmbito da Justiça adaptada às Crianças, as Diretrizes 24 a 26, recomendam que, antes do início do processo judicial, devem ser incentivadas as alternativas ao mesmo, como por exemplo, o recurso à mediação, a desjudicialização e a resolução alternativa de litígios, sempre que o recurso a estes meios permitam defender o interesse da criança, não devendo servir como obstáculos ao acesso da criança à Justiça.

Estas alternativas, consagradas na Diretriz 24, devem assegurar um nível de garantias jurídicas equivalente ao que a criança teria num processo judicial, conforme resulta da Diretriz 26.

Para que a criança possa participar, quer na decisão de escolha do recurso aos meios alternativos em substituição do recurso ao processo judicial, quer na escolha do concreto meio a utilizar, deverá ser dado cumprimento à Diretriz 25, a qual prevê que:

«25. As crianças devem ser exaustivamente informadas e consultadas acerca da possibilidade de recorrerem a um processo judicial ou a alternativas extrajudiciais. Esta informação deve também explicar as consequências possíveis de cada opção. Deve ser dada a possibilidade de, com base na informação adequada, jurídica e não só, escolher entre recorrer a um processo judicial ou a um mecanismo de resolução alternativa de litígios, sempre que este esteja disponível. As crianças devem poder beneficiar de aconselhamento jurídico e de outros tipos de assistência na determinação da pertinência e da oportunidade das alternativas propostas. No momento dessa decisão, devem ser tidos em conta os pontos de vista da criança

A colaboração entre advogados e mediadores é um vínculo a ser trabalhado, devendo estes funcionar em equipa multidisciplinar, apresentando-se o mediador como um terceiro imparcial e o advogado como um defensor da criança que garanta os seus direitos no curso da mediação.

 

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A Diplomacia e o Direito da Família

A Diplomacia e o Direito de Família

 

O princípio da não ingerência foi sempre um princípio basilar das relações diplomáticas – no respeito pela independência e soberania dos povos e a sua liberdade – que era omnipresente no âmbito do Direito da Família nas relações entre a Família e o Estado.

Progressivamente, vem-se assistindo a uma cada vez maior interferência, nomeadamente por uma enorme “vaga” de legislação cuja minuciosidade e tecnicidade não deixa de assustar quem com ela lida diariamente, do Estado na Família.

Não quer dizer que isso seja necessariamente novo, mas a verdade é que nunca como hoje, o Estado correu tanto o risco de ter uma secção pública dentro de cada “casa” de família, com todos os custos e riscos que isso envolve, nomeadamente da perda do sentido de ambas as instituições.

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Quanto mais recorre o legislador a novas figuras no âmbito do direito de família (veja-se o caso da violência doméstica ou do abuso de menores) mais complexas se tornam as questões e mais demorada se torna a resolução das mesmas. Além de que, esses instrumentos, muitas vezes por força da malícia humana ou falta de educação, em vez de fatores de resolução passam a ser fatores de pressão ou “expedientes“ para obter outros resultados muitas vezes alheio ao que verdadeiramente está em discussão.

Não creio que, enquanto não houver uma enorme intolerância, seja da família, seja dos próprios técnicos do Estado (nomeadamente julgadores) a comportamentos abusivos, incoerentes ou mal-educados e que haja uma perceção clara do público a essa intolerância, seja possível alterar “o estado das coisas”.

A família, tal como o corpo de um doente, cada vez que tem uma crise – que justifique a intervenção e o envolvimento do Estado com todos os custos inerentes – ou se deixa que em tempo útil e por si só seja capaz de resolver o problema, ou senão, a intervenção do “médico” deve ser rápida e imediata para permitir que depois desse auxílio aquela, por si mesma consiga restabelecer a função para que foi criada – apoiar e desenvolver a realização plena de cada membro que a compõem no conjunto de todos.

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Vale a este propósito meditar num texto do último livro do Cardeal Robert Sarah (em matéria de família muito se pode aprender com os africanos) a “Força do Silêncio” onde o mesmo relata o testemunho de uma Mãe sobre liberdade e ingerência na educação:

“Quando os meus filhos eram pequenos, e eu pensava por eles e decidia por eles, tudo era fácil: só estava em causa a minha liberdade. Mas quando chegou a altura em que me apercebi de que o meu papel consistia em habituá-los a escolhas progressivas, senti-depois de ter consentido nisso-que se instalava em mim a inquietação. Deixando que os meus filhos tomassem as suas próprias decisões, e portanto se sujeitassem aos seus próprios riscos, sujeitei-me eu também ao risco de ver surgir outras liberdades para além da minha. Embora, demasiadas vezes tenha continuado a optar em vez dos meus filhos, fazia-o, devo confessá-lo, para poupá-los ao sofrimento resultante de  uma opção que eles provavelmente viriam a lamentar, mas também, talvez mais, para não correr eu o risco de passar por uma discordância entre a opção deles e  aquela que eu tinha gostado que eles seguissem. Uma falta de amor da minha parte, portanto, porque agindo dessa forma eu queria sobretudo proteger-me de um possível sofrimento, aquele que senti sempre que os meus filhos seguiram um caminho diferente daquele que me parecia ser o melhor para eles”

Desta forma, pelo respeito profundo pela liberdade de todos e pela responsabilização dos seus atos se evitará a crescente desresponsabilização da Família e de todos os seus diferentes membros, que por as “descarregarem” no Estado leva a que paradoxalmente, este quanto mais tem para fazer menos faz….

 

João Perry da Câmara

Partner da Rogério Alves & Associados

Responsável pelo núcleo de Direito da Família e Sucessões

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A Família e o Estado ou o estado da Família

A Família e o Estado ou o estado da Família

 

A Família, na sua génese, foi a primeira célula social orgânica criada para servir de instrumento ao desenvolvimento e crescimento do ser humano.

Foi a partir dessa célula inicial e essencial que, pela sua naturalidade, se desenvolveram formas orgânicas mais complexas onde o homem se inseriu, como sejam a tribo, a aldeia, o condado, o reino e o Estado.

Estas formas orgânicas superiores e coletivas foram criadas e encontraram a sua razão de ser, sobretudo enquanto organização subsidiária à Família como meio de apoio e auxílio aquela, razão pela qual a intervenção do Estado na Família deve ser subordinada e instrumental face aos interesses da Família.

A intervenção do Estado na Família deve, pois, em regra, ser secundária, excecional e auxiliar e, nesse sentido, foi sempre em geral a atuação do legislador constitucional em plurímas ordens legislativas (veja-se, por todos, Jorge Miranda “A relevância constitucional da Familia”).

A consagração e progressiva normativização do Direito da Família tem particular relevo nesse aspeto na legislação judiciária dos tribunais de Família e as suas competências.

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Sem prejuízo de se poder, e bem, discutir o paradigma confrontacional dos tribunais na aplicação do Direito da Família, à semelhança dos outros ramos de Direito, cujos resultados são cada vez mais discutíveis, parece-nos mais importante ver quais as causas que contribuem cada vez mais para a sua incapacidade para dar cumprimento à sua primordial missão – apoiar e ajudar essa célula chamada “Família”.

Antes de mais, a sobrecarga ou excesso de competência dos tribunais de Família.

Se é verdade que se assistiu a uma enorme progressão da capacidade e técnica dos tribunais e dos seus operadores com a criação e o incremento da competência especializada dos tribunais de Família, o alargamento da sua competência está a contribuir fortemente para que os mesmos, por incapacidade, deixem de dar resposta a essa sua primordial função.

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A “fusão” da jurisdição de menores em situação de risco nos tribunais de Família e Menores é causa cada vez maior da paralisação dos tribunais de Família e de insucesso da jurisdição de menores. Porquê?

Porque a “urgência” reconhecida por lei dos processos de menores implica que os processos de Família sejam secundários face aos primeiros e, por isso, postergados para segunda fase, ou seja, entre cuidar da galinha ou do ovo, procura-se cuidar do ovo descurando a galinha que deverá cuidar do mesmo.

Este fenómeno mais não é do que uma tendência cada vez maior de cuidar da árvore esquecendo a floresta, do especial face ao geral onde se origina, do anormal face ao padrão normal com uma progressiva miopia que leva a matar o todo pelo indivíduo.

É, na sua essência, uma incapacidade de perceber que um “fígado” sem “corpo” não tem razão de ser. Tratar de menores que depois não tenham famílias que deles cuidem, nada resolve, pior do que isso, cria ainda mais descrédito na capacidade do Estado de cuidar do indivíduo.

Esta deficiência do Estado na perceção da Família e da sua primordial importância prévia face aos seus diferentes componentes é que nos leva ao presente estado da Família como “algo” incapaz de desempenhar a função que sempre teve e terá, pela simples razão de ser inerente ao homem e à sua condição de animal racional e espiritual.

 

João Perry da Câmara

Partner da Rogério Alves & Associados

Responsável pelo núcleo de Direito da Família e Sucessões

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