A formação dos profissionais na audição das crianças

A formação dos profissionais na audição das crianças:

Porque a audição das crianças é um assunto de suma importância, voltamos a este tema, hoje, na perspetiva da formação dos profissionais, formação essa direcionada para a referida audição.

Também neste segmento importa atentar nas Diretrizes para uma justiça amiga das crianças, adoptadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às crianças.

Concretamente, no que respeita à formação que os profissionais envolvidos deverão ter, assumem particular relevância, as Diretrizes 14 e 15.

Na Diretriz 14, refere-se que:

«14. Todos os profissionais que trabalhem com e para crianças devem receber a formação multidisciplinar necessária sobre os direitos e as necessidades das crianças de diferentes grupos etários, bem como sobre os processos que melhor se lhes adequam

A Directriz 15 recomenda que:

«15. Os profissionais que tenham contacto direto com crianças devem também receber formação sobre as formas de comunicar com crianças de todas as idades e fases de desenvolvimento, bem como com crianças em situação de particular vulnerabilidade»

No que respeita à formação multidisciplinar, é inegável que os profissionais da Justiça precisam de trabalhar, em equipa, com outros profissionais que lhes aportem tecnicidades específicas por forma a que, por exemplo, quando estão a ouvir uma criança, consigam depurar o que é dito, destacando o que é essencial do acessório, por forma a concentrar, com precisão, o que, de facto, a criança pretende, quer ou o que a faz sofrer e angustia.

É muito difícil, por exemplo, um juiz ouvir uma criança sem estar devidamente assessorado para o efeito, por um técnico que saiba traduzir o que a criança disse. Concretamente, por muito esforço que o juiz faça no sentido de perceber e contextualizar a audição da criança, em casos complexos, em que a criança se sente envolvida numa guerra entre as suas principais figuras de referência (os seus Pais), tal tarefa só terá a ganhar se for devidamente acompanhada por um psicólogo que esteja integrado no processo, conhecendo-o e conhecendo o menor.

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Essencial, também, é a formação que os profissionais deveriam receber sobre a forma como devem comunicar com a criança.

Perguntas sugestivas, perguntas cuja resposta é apenas um sim ou um não, perguntas que obrigam a criança a fazer uma escolha entre pai e mãe, são formas desadequadas de ouvir uma criança e que devem ser banidas.

No entanto, não basta banir este tipo de perguntas. Importa que os profissionais envolvidos adquiram conhecimento e maleabilidade mental para lidar com as crianças, impondo-se como necessária a frequência de formações, com outros profissionais, que os ajudem a lidar e a trabalhar com a criança.

As recomendações constantes das diretrizes 14 e 15 são válidas e deveriam ser encaradas como uma urgência de cada ordem jurídica.

Importa salientar que ouvir uma criança implica conhecer o seu desenvolvimento cognitivo e emocional, saber interpretar o seu choro, o seu silêncio, o que diz, o que não diz, etc.

Tal só com uma formação específica e direcionada é que poderá ser alcançado, por forma a se garantir uma audição livre e verdadeira da vontade da criança.

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Em matéria de formação, não podemos deixar de mencionar o relatório levado a cabo pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, datado de 2015, denominado “Justiça adaptada às crianças: perspetivas e experiências dos profissionais

Neste relatório, é salientado o facto de as práticas de audição dependerem das competências profissionais de cada pessoa que está encarregue dessa função e, claro, variam de tribunal para tribunal e, mesmo, de região para região.

Conforme resulta deste relatório, existem regras e orientações que são utilizadas no Reino Unido e na Finlândia, que, por exemplo, permitem reduzir o número de audições e permitem melhorar a comunicação com a criança.

Ainda no quadro da justiça adaptada às crianças, encontramos várias Diretrizes que falam do direito que as crianças têm a estar representadas por advogado.

Destacamos, aqui, a Diretriz 37, a qual refere que:

«As crianças devem ter o direito a estar individualmente representadas por um advogado nos processos em que haja, ou possa haver, um conflito de interesses entre a criança e os pais ou outras partes envolvidas

Conforme decorre da Diretriz 39, os advogados em causa devem ter formação e conhecimentos sobre os direitos da criança e matérias conexas e receber formação contínua e aprofundada, o que, nos remete, aqui, novamente, para quanto já supra falado, sobre o problema real da falta de formação.

Ainda em matéria de representação, a Diretriz 42 refere que:

«Nos casos em que haja conflito de interesses entre os pais e as crianças, a autoridade competente deve nomear um tutor ad litem ou outro representante independente para defender os pontos de vista e os interesses da criança

Em Portugal, ainda não encontramos consagrada, na lei e na prática, esta realidade, não estando as crianças representadas, em juízo, por advogado.

Não podemos, aqui, deixar de mencionar o facto de um advogado nomeado para representar uma criança, nos termos constantes das Diretrizes supra, não poder ser um advogado qualquer, mas sim uma pessoa que esteja habilitada para o efeito, pelo que, o nosso entendimento é que esse advogado deveria estar credenciado pela Ordem dos Advogados para o efeito, devendo para tanto, ter a devida formação que o habilitasse a estar em juízo, em representação de uma criança, com tudo o que isso implique.

Não basta consagrar, sendo essencial e indispensável que estes direitos das crianças sejam salvaguardados, o que só se alcançará, se a realidade do tribunal for, efetivamente adaptada às crianças, em todas as suas vertentes.

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Conforme resulta do relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, supra mencionado, a prática integrada no Reino Unido é bem diferente: em Inglaterra e no País de Gales, qualquer criança que tenha intervenção num processo cível, terá o apoio de um tutor que acompanhará o processo, em seu nome. Será este tutor, quem comparecerá em Tribunal, expressando os desejos e os sentimentos da criança em juízo.

Este tutor é, também, a pessoa responsável por explicar o processo à criança, mantendo-a ao corrente do mesmo e transmitindo-lhe, também, o seu desfecho, o que está de acordo com a recomendação da Diretriz 75.

O relatório identifica esta realidade como uma prática promissora.

Já na Finlândia, quando existe um conflito de interesses que impede os pais de um menor de serem os seus tutores num processo, é nomeado um tutor para representar a criança em tribunal.

Também, de acordo, com o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, esta realidade constitui uma prática promissora.

Em face destes dois exemplos e, olhando para a realidade de alguns Estados-Membros, não podemos deixar de concluir que os direitos da criança, neste segmento, estão ainda muito longe de se encontrarem salvaguardados, sendo necessária a adoção de medidas, em vários setores, que permitam assegurar que a justiça seja, de facto, adaptada às crianças.

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A defesa de uma maior intervenção das crianças nos processos que lhes respeitam, nomeadamente, através do seu direito de audição e do direito a serem representadas por advogado, não equivale à defesa da desejabilidade de que as crianças sejam trazidas para os processos judiciais.

O envolvimento de crianças em processos judiciais deve, tanto quanto possível, ser evitado, razão porque enfatizamos aqui que, no âmbito da Justiça adaptada às Crianças, as Diretrizes 24 a 26, recomendam que, antes do início do processo judicial, devem ser incentivadas as alternativas ao mesmo, como por exemplo, o recurso à mediação, a desjudicialização e a resolução alternativa de litígios, sempre que o recurso a estes meios permitam defender o interesse da criança, não devendo servir como obstáculos ao acesso da criança à Justiça.

Estas alternativas, consagradas na Diretriz 24, devem assegurar um nível de garantias jurídicas equivalente ao que a criança teria num processo judicial, conforme resulta da Diretriz 26.

Para que a criança possa participar, quer na decisão de escolha do recurso aos meios alternativos em substituição do recurso ao processo judicial, quer na escolha do concreto meio a utilizar, deverá ser dado cumprimento à Diretriz 25, a qual prevê que:

«25. As crianças devem ser exaustivamente informadas e consultadas acerca da possibilidade de recorrerem a um processo judicial ou a alternativas extrajudiciais. Esta informação deve também explicar as consequências possíveis de cada opção. Deve ser dada a possibilidade de, com base na informação adequada, jurídica e não só, escolher entre recorrer a um processo judicial ou a um mecanismo de resolução alternativa de litígios, sempre que este esteja disponível. As crianças devem poder beneficiar de aconselhamento jurídico e de outros tipos de assistência na determinação da pertinência e da oportunidade das alternativas propostas. No momento dessa decisão, devem ser tidos em conta os pontos de vista da criança

A colaboração entre advogados e mediadores é um vínculo a ser trabalhado, devendo estes funcionar em equipa multidisciplinar, apresentando-se o mediador como um terceiro imparcial e o advogado como um defensor da criança que garanta os seus direitos no curso da mediação.

 

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Residência Alternada: da lenda urbana à realidade social

Residência Alternada: da lenda urbana à realidade social

 

Nas últimas duas décadas tem-se assistido a mudanças nas relações conjugais e parentais de forma significativa. Desde o 25 de abril de 1975 que observamos a existência de uma pressão para alterações legislativas sobre o poder político-legislativo em função das mudanças sociais. De facto, as mudanças sociais têm-se traduzido igualmente em mudanças no seio da família, em particular na conjugalidade e na parentalidade. Os papéis de género na família passaram a ser questionados (Wall & Amâncio, 2007), os filhos assumiram um outro lugar na família, com outras funções (Cunha, 2007), e os direitos e liberdades individuais afirmadas pelos movimentos sociais pós-revolução traduziram-se na afirmação dos valores da igualdade, de processos de individualização, de diversidade e de privatização da conjugalidade (Aboim, 2008). É nesta linha de transformações históricas e sociais que chegamos aos dias de hoje com novas realidades sociais, onde a diversidade familiar e o papel da afetividade na parentalidade assumem especial relevância. A opção pela residência alternada para crianças com progenitores em situação de dissociação conjugal tem assim assumindo, de forma crescente, um papel maior. Apesar de existirem desde os anos 80 estudos sociológicos em outros países com este objeto, a verdade é que, em Portugal, só com as alterações legislativas dos anos 90 e o próprio desenvolvimento da Sociologia da Família nesse período, foi possível observar esses novos rearranjos na família da criança. Os primeiros dados aparecem-nos em 2001, onde apontavam para 0,6% em 2001 (segundo o Ministério da Justiça) e terminam a sua recolha em 2006, com valores de 3% (Marinho, 2011) dos casos em tribunal com guarda conjunta[1]. Passados 10 anos após a publicação destes dados e tendo em conta que uma parte dos regimes de convívio das crianças no pós-divórcio/separação com os seus progenitores não refletem a formalidade jurídica (não aparecendo sequer nas estatísticas), somos levados a crer que devemos hoje ter percentagens de crianças em residência alternada muito superiores ao que comumente é percecionado. Aquilo que era visto nos anos 90 como uma lenda urbana, nos dias de hoje assume-se cada vez mais como uma opção viável e uma realidade social com uma dimensão inegável. Aliás, vários Estados dos E.U.A., como Washington e Arizona apresentam percentagens de residência alternada acima de 30%. Em países europeus como a Bélgica, Dinamarca, Holanda, Suécia e França pelo menos 20% das crianças vivem em modelo de residência alternada (Nielsen, 2015).

 

No entanto, se a realidade social no âmbito das conjugalidades e das diferentes parentalidades tem evoluído, temos assistido a uma maior resistência por parte de outras instituições à aceitação dessa evolução, resultado de uma perceção cristalizada dos papéis de género na família. Falamos do sistema judicial e do próprio poder político-legislativo.

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Antes de avançarmos, convém definir conceitos, visto que frequentemente existe alguma confusão dos mesmos, quando lidamos com esta temática. Assim, quando falamos em residência alternada, estamos a referir-nos a um modelo particular de coparentalidade onde existe o exercício conjunto das responsabilidades parentais (na linguagem anglo-saxónica, joint legal custody) e um regime de convívio da criança com ambos os progenitores com tempos equilibrados, não inferior a 35% (Nielsen, 2014), ao ponto de existirem duas residências. Nos ordenamentos jurídicos onde ainda usam o conceito de guarda, estaríamos perante uma guarda conjunta legal, com uma guarda física partilhada[2]. É nesta diversidade de interpretações nacionais quanto a estes conceitos que surgem confusões quanto, por exemplo, à guarda partilhada e guarda alternada, confusões essas, que muita das vezes são usadas como bloqueio por parte do poder judicial à aceitação desta nova realidade familiar. A discussão atualmente tida no Brasil sobre o conceito de guarda compartilhada demonstra claramente essa confusão (IBDFAM, 2013), agarrando-se ao conservadorismo da doutrina, que demonstra mais o imobilismo caraterístico de vários sistemas judiciais na área da família, do que uma adesão às novas realidades sociais, em particular, quanto às diferentes dinâmicas na construção da parentalidade no pós-divórcio. Ainda que recentemente existam tentativas de esclarecimento do conceito de domicílio[3] em situações da guarda compartilhada na Lei Federal 13.058 (Silva F. S., 2017), a verdade é que a confusão de conceitos, querendo associar a alternância entre residências à alternância da guarda, tem contribuído para um avanço lento das instituições na criação de novas perceções sobre a realidade social. Estas e outras tentativas de esclarecimento têm por base um olhar sobre as práticas parentais pós-divórcio, onde encontrarmos, em particular, uma diversidade nas de coparentalidade que vão desde a conjunta, à igualitária, passando pela paralela (Marinho, 2011). Se o regime regra na regulação do exercício das responsabilidades parentais é o exercício conjunto quanto aos atos de particular importância, ou seja, questões como mudança de residência da criança, mudança de escola que implique a mudança de residência, questões de âmbito religioso, de mudança de escola publica para privada (e vice-versa), entre outras (Rodrigues, 2011), facilmente compreendemos que na prática, mesmo quando estamos perante parentalidades paralelas, com forte autonomia dos ex-cônjuges e fraca coordenação (Leandro, 2008), não se coloca de todo a questão da guarda alternada. Naturalmente, a esmagadora maioria das decisões do quotidiano são tomadas pelo progenitor com quem a criança se encontra naquele momento, mesmo que a comunicação seja reduzida e/ou formal entre eles, como é típico nas parentalidades paralelas de residência única, mas igualmente em situações de residência alternada. Assim sendo, não se entende que se associe a questão dos tempos de convívio e da residência a uma alternância de decisões, pois estaremos sempre na presença das mesmas quanto aos atos de vida corrente. O cumprimento das orientações educativas mais relevantes torna-se sem sentido em situações de residência alternada (e mesmo em residência única), pois, como já foi referido, em função da diversidade de parentalidades, a criança acaba sempre por ter várias orientações educativas, sem que isso levante qualquer problema ao seu desenvolvimento. Aliás, a inclusão deste conceito surge mais como reação às criticas do estabelecimento do regime regra do exercício conjunto, do que de uma necessidade centrada no desenvolvimento da criança. Se olharmos ainda para exercício de atos de particular importância, dificilmente são executáveis sem o consentimento do outro progenitor, até porque envolve geralmente terceiros, seja a escola, uma igreja, um hospital, uma organização desportiva[4].

Resumindo, quando falamos em residência alternada referimo-nos ao exercício conjunto das responsabilidades parentais, com a produção de um quotidiano familiar e social com a criança (Marinho, 2011), onde se incluem a partilha dos tempos, cuidados, orientações educativas e a existência de duas residências[5].

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Isto leva-nos às interpretações doutrinais que têm sido feitas sobre este modelo. Num contexto de resistência ao conceito por parte de alguns magistrados e face à necessidade de as ultrapassar, Helena Bolieiro e António José Fialho[6] (CEJ, 2012), numa formação no Centro de Estudos Judiciais, em 2012, avançam com os seguintes critérios normativos para o estabelecimento do regime de residência alternada:

- O superior interesse da criança

- O acordo dos progenitores

- A disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro

- A possibilidade de a criança manter uma relação de grande proximidade com ambos os progenitores

- Os acordos que os pais estabeleçam e que permitam amplas oportunidades de contacto e de partilha de responsabilidades entre eles

 

Ao mesmo tempo, apontam para critérios orientadores:

- O superior interesse da criança

- A capacidade de diálogo, entendimento e cooperação por parte dos progenitores

- Um modelo educativo comum ou consenso quanto às suas linhas fundamentais

- A proximidade geográfica

- A opinião e a idade da criança

- A ligação afetiva com ambos os progenitores

- A disponibilidade dos pais para manterem o contacto direto com a criança durante o período de residência que a cada um cabe

- As condições habitacionais e económicas de cada um deles (equivalentes ou suficientes)

Nesta interpretação doutrinal e que acabou por refletir-se em alguma jurisprudência portuguesa, o regime de residência alternada está sujeito a pré-requisitos, que a instituição judicial considera como fundamentais[7] para a criança, decorrente da interpretação do texto da Lei. Assim, este foi o caminho encontrado por alguns magistrados. com responsabilidades de formação para avançarem com a disseminação do conceito, mas sem que tal significasse a aplicação rígida, nas suas práticas, desses mesmos critérios. No entanto, não deixa de ser relevante para a análise, que esta interpretação, que se destinava aos aplicadores do Direito, parte das representações e práticas judiciais de alguns operadores do Direito, onde é assumido o enviesamento das mesmas, colocando o sistema judicial em tensão com realidade social. Deve, no entanto, influir para estas perceções e práticas judiciais, não só as construções e representações sociais estereotipadas dos atores da área do Direito sobre a ideia de família, de relações conjugais e parentais, mas também a evidência empírica e científica, além da orientação normativa já referida. Na medida em que a norma jurídica deixa larga amplitude à decisão casuística quanto ao regime adequado a cada criança em situações de divórcio/separação dos seus progenitores e supondo que a mesma que pretende estabilizar as relações sociais, torna-se necessário fazer chegar aos diferentes atores do Direito a diversidade e dinâmicas das relações familiares em Portugal, ajudando a alterar as perceções e práticas judiciais no sentido da coparentalidade. A relação jurídica familiar enquanto conceito fulcral do Direito de Família (Pinheiro, 2010) não é apenas permeável à realidade social, mas igualmente à ideologia dominante em cada época histórica. “No campo do Direito da Família e das Crianças, a neutralidade legislativa é impossível. A lei reflete sempre ideologias, conceções de vida[8]. O conceito de coparentalidade surge nos 70 e começa a afirmar-se como construto científico nos anos 80, na procura de um campo comum centrado nas necessidades das crianças e resultado do aumento significativo dos divórcios nos E.U.A.. Assim, o próprio conceito de coparentalidade, onde a residência alternada se insere, apesar de refletir novas dinâmicas familiares, não deixa igualmente de pertencer a um sistema de ideias que se vai impondo no sistema judicial. Se o ponto de partida, em face das referidas evidências, deverá ser a residência alternada, não podemos afirmar que tal modelo se aplique a todas as crianças e à sua família.

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Mas porque devemos então considerar a residência alternada como o ponto de partida?

A evidência cientifica dos últimos 30 anos aponta para que sim. No entanto, não devemos cair no erro de entender que este modelo é adequado a todas as crianças e famílias. O que se deve ter em consideração para o superior interesse da criança, é que a distribuição do tempo deve assegurar o envolvimento de ambos os progenitores nas rotinas diárias da criança (e.g., rituais de adormecimento, transições para a escola, atividades de lazer) (Lamb, Sternberg, & Thompson, 1997). Esta consideração deve ter em conta as necessidades de desenvolvimento, o temperamento e as circunstâncias individuais de cada criança, bem como as características únicas de cada família. O que nos leva a referir um instrumento muito útil, os planos parentais, que em Portugal não tem nenhuma tradição, mas é amplamente usado nos países anglo-saxónicos, pois permitem uma adaptação das diferentes formas de convívio às necessidades de desenvolvimento da criança e da sua família, ao longo do tempo. Na Europa, outros países, como a Suécia, já se socorrem deste instrumento, pelo que em Portugal deverá ser objeto de mais interesse.

Mas voltemos à questão dos aspetos positivos e menos positivos da residência alternada. Muitas das resistências a este modelo advêm de um quadro cultural e historicamente determinado, onde se empurra as mulheres para a função exclusiva de cuidadoras, geralmente primárias, ao mesmo tempo que se exige que as mesmas compitam com os homens no espaço público, em igualdade de circunstâncias. E enfrenta, em Portugal, como em outros países, o mito da maternidade[9], onde se estabelece a presunção natural que as crianças com menos de três anos não podem estar afastadas das suas mães. Ora, a ciência mais uma vez vem desmentir esta tese, que é mais ideológica e cultural. Richard Washark, Professor de Psiquiatria Clínica na Universidade de Texas, nos EUA, publicou um relatório subscrito por 110 especialistas reconhecidos nesta área, concluindo que as crianças de idades mais novas (bebés com menos de 4 anos) precisam de pernoitas com ambos os progenitores numa situação de separação (Warshak, 2014). Num comunicado do próprio Warshak este afirma:

Warshak, citando pesquisas aceites dos últimos 45 anos, opõem-se à ideia de que as crianças abaixo dos 4 anos (ou dos 6), precisam de passar o seu tempo exclusivamente com um progenitor e que não conseguem aceitar estar longe desse progenitor, mesmo recebendo afeto e carinho do outro progenitor. Proibições ou avisos contra as crianças e bebés a passarem a noite ao cuidado do seu pai são inconsistentes com o nosso atual conhecimento do desenvolvimento da criança“[10] .

Diz-nos ainda:

“Os bebés e crianças precisam de progenitores que respondam consistentemente, afetivamente e sensitivamente às suas necessidades. Não necessitam, e a maioria não tem, um progenitor a full-time de presença constante. Muitas mães casadas e que são hospedeiras de bordo, doutoras e enfermeiras, trabalham em turnos noturnos que lhes mantêm longe das suas crianças e bebés durante a noite. Tal como estas mães casadas, as mães solteiras não precisam de se preocupar em deixar os seus filhos aos cuidados dos seus pais ou avós durante o dia ou noite.

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As mais promissoras investigações sobre a residência alternada vêem-nos, curiosamente, de um país Europeu, a Suécia. O Centre for CHESS - Health Equity Studies, tem publicado vários artigos dentro da linha de investigação sobre a temática da residência alternada e com dados muito relevantes. De uma forma geral, estes estudos têm demonstrado que as crianças que não convivem habitualmente com um dos progenitores têm mais problemas psicossomáticos que as crianças que vivem em famílias nucleares. No entanto, as crianças em residência alternada, em análise longitudinal, apresentam melhor saúde psicossomática que crianças que apenas convivem com um dos progenitores.

As crianças em residência alternada em comparação com as crianças em residência única (Bergström, Fransson, & Hjern, Barn med växelvis boende, 2015) :

 

Em outra investigação, onde foram medidos o bem-estar subjetivo das crianças, a qualidade familiar e a relação com os pares (para uma amostra de 164.580 crianças entre os 12 e 15 anos) (Bergström, et al., 2013), os resultados demonstraram que as crianças em famílias nucleares apresentavam resultados elevados, resultados médios em residência alternada e resultados baixos em residência única.

Num outro estudo (Bergström, Fransson, Hjern, Köhler, & Wallby, 2014) com uma amostra de 1.297 crianças entre os 4 e 18 anos, 10% em situação de residência alternada (dados de 2011), foram observados nas crianças em famílias nucleares baixos problemas emocionais e de comportamento, bem como baixos problemas entre pares. As crianças em situação de residência alternada apresentavam resultados médios e em residência única, elevados, para os critérios referidos. Também foram observados os progenitores e as conclusões foram no mesmo sentido, com maior satisfação com a saúde, a situação social e económica em famílias com crianças em situação de residência alternada do que em residência única. Nos indicadores quanto a sintomas psicossomáticos e doenças das crianças, em crianças entre os 12 e 15 anos, mais uma vez as residências únicas apresentam piores resultados (Bergström, et al., 2015). Num artigo muito recentemente publicado por este centro, com uma amostra de 5.000 crianças entre os 10 aos 18 anos, foram encontradas as mesmas relações quanto ao modelo de residência quando avaliadas as condições económicas e materiais, as relações sociais entre progenitores e entre pares, saúde e comportamentos de saúde, condições de trabalho e segurança na escola e na comunidade e ainda atividades culturais e de lazer (Fransson, Låftman, Östberg, Hjern, & Bergström, 2017).

Mais surpreendente é um estudo que aponta que as crianças em residência alternada apresentam menores níveis de stress do que as crianças em residência única (Turunen, 2015), contrariando perceções que muitos profissionais da área da infância e juventude têm sobre esta matéria. Não será assim de estranhar que vários estudos demonstram uma elevada taxa de satisfação daqueles que viveram em residência alternada (acima dos 90%) e um número igualmente elevado de estudantes que afirma que seria do seu melhor interesse ter convivido mais com o seu pai (Nielsen, 2011).

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Poderíamos continuar a enunciar centenas de estudos científicos, revistos pelos pares e com credibilidade académica, que atestam a necessidade incontornável de se considerar a residência alternada em Portugal como uma das melhores hipóteses para as crianças cujos progenitores se separaram ou divorciaram. No entanto, seria demasiado exaustivo e nesta pequena amostra do estado da arte sobre esta matéria, ficou evidente que as críticas que são apresentadas em Portugal têm pouco fundamento ou são deliberadamente enviesadas com o objetivo de cumprir uma agenda ideológica, em contra corrente com a realidade social objetiva.

 

Em conclusão, tendo em conta o exposto, que a literatura internacional demonstra que o divórcio em si não trás, per si, consequências negativas para as crianças. As experiências negativas de divórcio é que colocam a criança em situação de vulnerabilidade. O mesmo será dizer que qualquer regime de residência será necessariamente negativo se prevalecer a longo prazo as situações de conflito parental. Fica claro, assim, que o caminho da residência única como modelo de proteção da criança é um modelo falhado e aqueles/as que insistem nele estão a condenar as crianças a uma maior violência do que daquela que dizem que as querem proteger. Se a residência alternada não protege totalmente as crianças das situações de conflito parental ou violência familiar, a verdade é que se apresenta, como se expôs, como o melhor ponto de partida para atenuar essa realidade. Mas também não será correto afirmar que toda esta evidência científica deva ser usada para fundamentar este modelo para situações onde estamos perante progenitores negligentes, não responsivos, abusivos ou progenitores que deliberadamente não tiveram qualquer convivência com a criança antes da separação (retirando daqui as situações de alienação parental ou falta de convivência por motivos profissionais e outros). Assim, não podemos ter posições extremadas, idealizando as relações familiares pós-divórcio, como se elas, na realidade, não sejam pautadas por ausência de amizade entre os progenitores, com algum conflito e mesmo falta de cooperação entre os progenitores. Esta é a realidade mais comum e em função dela devemos olhar para as melhores práticas parentais e apontar o caminho da coparentalidade.

Ficou igualmente evidente que as pernoitas de bebés em situação de residência alternada não apresentam resultados negativos para estes e são fundamentais para o estabelecimento de vinculações seguras com ambos os progenitores. Naturalmente, o modelo de residência alternada para crianças pequenas tem que ser adaptado em função do seu desenvolvimento, Ou seja, quando mais pequenas as crianças são, menos tempo de separação devem ter de cada um dos progenitores, devendo o tempo de convívio ir sendo alargado à medida que vão crescendo.

Em face desta conclusão, é necessário ouvirmos mais, não só as crianças, mas a família da criança, perceber as suas dinâmicas presentes e futuras. Contribuir, na medida do possível, para rearranjos familiares que melhor beneficiem a criança. Porque a realidade social está aí para demonstrar tudo isto que aqui falamos…

 

Ricardo Simões

Março 2017

Presidente da Direção da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos

 

 

Referências

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[1] À altura os conceitos de Poder Paternal e de guarda estavam no ordenamento jurídico, sendo retirados (ainda que não totalmente) do mesmo após as alterações de 2008 na área do Direito de Família e das Crianças.

[2] Note-se que o conceito de guarda está associado a uma das situações jurídicas do Poder Paternal.

[3] Que difere de residência, quer no Brasil, quer em Portugal. O domicilio é o local onde a pessoa física possui habitualmente o seu local principal de residência ou exerce a sua atividade profissional, nos quais, exerce os seus direitos e obrigações. Assim, nada impede que possamos ter duas residências, pois habitualmente podemos residir alternadamente em duas habitações. A questão do domicílio torna-se assim como algo secundário, mas, no entanto, mantém-se em alguns países como justificação jurisprudencial e doutrinal para rejeitar a residência alternada. No entanto, Joaquim Manuel Silva esclarece-nos quanto à questão da residência(s) da criança e a sua admissibilidade legal, jurisprudencial e doutrinal (Silva J. M., 2016), pelo que não nos vamos deter mais com esta questão.

[4] Com isto não se pode ignorar os incumprimentos quanto à consulta e decisão conjunta de atos de particular importância, mas que, no entanto, aconteceriam sempre em qualquer regime de residência e convívios.

[5] E correspondente “circulação de práticas parentais e bens da criança” (Marinho, 2011).

[6] Juízes de Direito

[7] No seu “superior interesse

[8] Pinheiro, J. D. (2013). Ideologias e ilusões no regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais. Em A. J. Fialho, Guia Prático do Divórcio e Responsabilidades Parentais. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários. Obtido de http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/GuiaDivorcioRespParent/anexos/anexo26.pdf

[9] Sobre esta ideia vide Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

[10] Warshak, R. (2014). Press-Release: Experts Agree: Infants and Toddlers Need Overnight Care from Both Parents After their Separation, Dallas.

OS NOVOS RUMOS DO DIREITO DA FAMÍLIA E DAS CRIANÇAS E JOVENS

OS  NOVOS  RUMOS  DO  DIREITO  DA  FAMÍLIA  E  DAS  CRIANÇAS  E  JOVENS

                                                                     Para onde vais, rio que eu canto?

 

Paulo Guerra, Juiz Desembargador e Director-Adjunto do CEJ

1. Hoje em dia, nestes tempos de ilhas naufragadas, de solidões no meio do caos, as nossas crianças encontram novos rostos no espelho da casa de banho, um bafo quente de irmãos e irmãs vivendo em casarios diferentes das delas, com meio apelido igual ao delas, com um sinal particular na pálpebra direita igual ao delas — é o novo quadro familiar dos «meus, dos teus e dos nossos» a dar cartas neste mundo, cada vez mais diversificado e menos ortodoxo.

De facto, o mundo complica-se e sofistica-se à velocidade da luz, as crianças deixaram de acreditar nas Fadas Sininhos e na eterna Terra do Nunca, já comungando doses maciças de morangos açucarados, de Flores mais ou menos belas e da pressa meteórica dos seus pais, entregues a edifícios de aço e nervos de tijolo e argamassa, capazes de lhes ocupar todo o tempo dos seus dias e das suas noites.

Mas o nosso conselho é que sorriam, por favor, porque, dizem, chegámos à era moderna.

Falar em modernidade, é também falar na Família, esse reduto sacrossanto dos afectos, primeiro impostos, depois sentidos, e da realização, desenvolvimento e consolidação da personalidade de qualquer ser humano.

Aqui chegados, há que dizer que se assiste ultimamente à desestruturação do modelo tradicional da Família, outrora assente num modelo social ordenado em que cada um sabia o seu lugar, ou como exemplarmente dizia Carneiro Pacheco, em que «havia um lugar para cada um e cada um no seu lugar», correspondendo a uma família-linhagem «mais sentida do que racionalmente avaliada».

Modernamente, evoluímos para uma família cada vez mais conjugal ou nuclear, fundada num casamento livremente consentido e secularizado, orientada para fins de completa realização individual e de crescente independência na igualdade e na confusão dos papéis dos seus actores principais.

Daí que se fale hoje em dia na perenidade ou instabilidade da instituição familiar, objecto, nas últimas décadas, de debates, controvérsias e inquietações.

Para tudo isto contribuem diversos factores, a saber:

—   a quebra da fecundidade,

—   o envelhecimento da população,

—   a subida dos índices do divórcio,

—   a crescente vulgarização das uniões de facto,

—   a maior visibilidade e aceitação social dos casais homossexuais e das famílias reconstruídas,

—   a participação de mulheres casadas e de mães no mercado de trabalho,

—   a maior responsabilização e importância dada à figura do pai na pós-ruptura de uma união conjugal ou não,

—   a crescente influência avoenga — tendo hoje os avós inegável legitimidade activa para, em tribunal, e ao abrigo do artigo 1887.º-A do CC, virem requerer a marcação de um espaço de convívio com seus netos, mesmo contra a vontade dos progenitores destes — na educação das nossas crianças, enredados que estão os seus pais na luta titânica do quotidiano, sem tempo para assistir aos tempos de vida daqueles,

—   o incremento do fenómeno da toxicodependência como factor de alheamento parental, fonte inelutável de negligências e de diminuição de qualidade de vida das crianças que, desta forma, se vêem desligadas dos laços da sua progenitura, a braços com a graálica busca de outros heróis e de outras heroínas, e entregues a familiares próximos ou afastados, ou mesmo a instituições de assistência social onde, quer queiramos quer não, continuam em risco…

A regra do jogo é ser feliz, aqui e agora, sem concessões demasiadas ao colectivo, ao bem comum — Edgar Morin disserta mesmo no sentido de considerar que, nesta época pós-moderna, perdura um valor principal e intangível que consiste no direito cada vez mais proclamado do indivíduo se realizar à parte, de ser livre, num narcisismo de windsurf, própria de uma época do deslizar, em que a res publica já não tem qualquer elo sólido, qualquer ponto de ancoragem emocional estável.

2. Ora, o momento histórico é este, os dados culturais estão lançados no xadrez de uma comunidade que apresenta matizes multicolores, novos peões e novos reis e rainhas, em exercícios de poder e dominação, cada vez mais subtis e subentendidos.

Estes são muitos dos autênticos desafios postos à Família pelo mundo exterior sem o qual ela não vive e que, não raras vezes, acaba por influenciar a própria forma de a viver e de a encarar.

Não existe, na nossa opinião, uma crise da Família, mas antes várias formas de a viver.

A família, hoje, longe de corresponder «a uma função reprodutiva da espécie, à finalidade da educação das crianças ou apenas, ainda, à garantia de uma relação duradoura entre sexos diferentes, é multidimensional, plurilocal, multigeracional, transgressora das imposições do género, extremamente exigente do ponto de vista afectivo, e os laços que gera ou pode gerar estão longe de se poderem reduzir a uma determinação fixa ou conjunto de determinações».

Assim sendo, o que se torna relevante quando hodiernamente se fala em família é a principal e decisiva questão da determinação dos novos deveres familiares, tanto no plano privado como no público.

E aí estamos com Edmundo Balsemão — «Mas o problema mais decisivo a respeito da família, tanto no que respeita às políticas públicas como no que se refere à capacidade avaliativa do homem comum, consistirá sempre em saber como conjugar a individualidade, a autenticidade e o reconhecimento com a criação de instituições que possamos todos considerar valiosas. Afinal, este não é outro senão o problema filosófico clássico da relação entre a Liberdade e o Bem» (1)

3. De facto, mudam-se os tempos e mudam-se as vontades...

Ora, o nosso sistema legislativo também tende a acompanhar este fluxo de mudança.

Vejamos três exemplos desta mudança de mentalidades, própria de uma entrada num novo milénio, capaz de nos demonstrar como a comunidade e o seu pulsar acabaram por influenciar o labor do legislador português, no reino da Família, das Crianças e Jovens, entendendo que após a ruptura ainda pode haver lugar à família, já que o objectivo de qualquer casal em disputa emocional é obter um divórcio ou uma separação «decentes».

 

3.1. DIVÓRCIO

O artigo 1775.º, n.º 1, do CC, na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25-11, previa que o divórcio por mútuo consentimento só podia ser requerido quando os cônjuges fossem casados há mais de três anos.

Em 1998, pela Lei n.º 47/98, de 10-8, e posteriormente pelo Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13-10, o legislador veio estabelecer que tal divórcio consensual — o tal que embora com ela, não necessita que a sua causa seja revelada, agora de forma quase exclusiva, na Conservatória do Registo Civil — pode ser requerido pelos cônjuges a todo o tempo.

A exigência legal de um período mínimo de duração do casamento para a formação consciente e madura da decisão de dissolução do casamento deixou de contar nos propósitos do legislador.

Inscrevendo-se numa linha geral de revisão do sistema de valores, o sistema jurídico vem, por esta via, facilitar o divórcio por mútuo consentimento que, de acordo com as novas tendências sociológicas, como as estatísticas oficiais nos comprovam, tem vindo consistentemente a aumentar, desta forma se facilitando o procedimento legal de ruptura dos novos casamentos.

O casamento entendido como um contrato — como a nossa lei o define — parece corresponder às exigências das sociedades contemporâneas, marcadas por uma progressiva laicização, por uma acentuada mobilidade geográfica das pessoas, por um individualismo infrene, por uma maior liberalização dos costumes, pelo acesso generalizados dos dois sexos a graus cada vez mais elevados de escolaridade, pela entrada da mulher no mercado de trabalho, por um estatuto jurídico e sociológico de igualdade entre os sexos, pela procura dos dois sexos de uma carreira profissional, do sucesso e da felicidade.

Durante muito tempo, o homem encarregava-se de ganhar o pão de cada dia e à mulher cabia-lhe pôr a manteiga no pão, na sugestiva frase de Beck — eram dois numa só carne, mas a carne era do homem.

A partir dos anos setenta, o casamento passa a constituir cada vez mais um acto de escolha individual, com base em vínculos afectivos, tal conduzindo naturalmente a uma maior instabilidade matrimonial, instabilidade que se torna irremediável quando se constata que o desejo e a felicidade são impossíveis de alcançar com a pessoa com quem se casou.

Portanto, e de forma algo paradoxal, o casamento baseado no amor, torna esta forma de associação mais volátil, estando cada vez mais o divórcio implícito na própria ideia de casamento.

Neste particular, o legislador, pressionado pelas estatísticas da divorcialidade, cedeu tudo o que tinha a ceder (muito embora já haja quem opine que só falta a consagração do divórcio por «multibanco»).

Havendo acordo dos cônjuges, e terminada a experiência, o casamento pode ser rompido a todo o tempo, evitando uma espera artificial de 3 anos ou o recurso abusivo à figura do divórcio litigioso, usado de forma ficta e ocultando consensos então inconfessáveis.

A Lei n.º 61/2008, de 31/10, tal veio consolidar, afastando até a culpa da equação (2).

No fundo, com a alteração legislativa, o sistema jurídico, que não tem de ter credos, veio afinal reconhecer às pessoas direito ao desencantamento que não tem de ter prazo de validade.

No fundo, podemos dizer que o divórcio é a prova viva de que as pessoas querem ser felizes e acreditam na Família, procurando-a em outras esquinas, em outros rostos.

O divórcio que parecia, à primeira vista, o fechar de um livro, transforma-se apenas num voltar de página, que contando novas etapas de uma história, mantém os personagens do enredo inicial, para além de outras que possam ir aparecendo.

Os filhos constituem, em muitas situações, a «armadilha» com que não se esperava, depois do divórcio. Armadilha no sentido de obrigarem à manutenção de uma relação que não se deseja mais manter — nessa altura sim, os filhos representam a relação que se quer esquecer, mas não se consegue porque eles são a sua própria extensão.

Não será, seguramente, fácil para aqueles adultos que estão verdadeiramente zangados um com o outro, controlar os seus estados emocionais e racionalmente tratarem das questões dos filhos como se após a regulação do exercício das responsabilidades parentais, de repente, passassem a ser duas novas pessoas, pessoas diferentes, sem história comum, sem nada que as dessintonize do objectivo primordial que é «velar pela segurança e saúde dos filhos, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens», mesmo quando suportados pela melhor mediação do Mundo!

Que não se chegue ao ponto da sociedade norte-americana, por exemplo, que, na palavra de David Popenoe, vive esta situação bizarra: Algumas crianças americanas vão para cama à noite a pensar se o seu pai ou a sua mãe ainda estará lá no dia seguinte; algumas interrogam-se sobre o que lhes terá acontecido. E outras sonham com quem será o seu pai.

3.2. EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS

Em Portugal, este instituto sofreu uma evolução desde o direito romano, no qual, inicialmente, revestia a natureza de uma patria potestas que se exercia quer sobre os filhos, quer sobre a mulher (que estava também sob a manus do pater familias), quer sobre todos os que constituíam o agregado familiar, sendo, assim, um poder absoluto e perpétuo do homem pai e marido.

O Código de Seabra de 1867 estabelecia, no seu artigo 137.º, que competia aos pais reger as pessoas dos filhos menores, protegê-los e administrar os seus bens, determinando ainda que o complexo destes direitos constituía o poder paternal.

Por seu turno, o artigo 140.º estatuía que os pais deviam dar aos filhos os necessários alimentos e ocupação conveniente, conforme as suas posses e estado.

A lei estipulava então um regime de exercício manifestamente desigual, dando-se especial prevalência à autoridade paterna.

Com efeito, segundo o artigo 138.º do referido Código, as mães participavam do poder paternal e deviam ser ouvidas em tudo o que dizia respeito aos interesses dos filhos, mas era ao pai que especialmente competia, durante o matrimónio, como chefe da família, dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto em juízo, como fora dele. Só no caso de ausência ou de outro impedimento do pai é que a mãe faria as suas vezes (artigo 139.º).

O Código Civil de 1966, na sua versão original, consagrou orientação semelhante à acolhida pelo diploma de 1867, pese embora tivesse introduzido modificações ao nível da inserção sistemática do instituto, passando a configurá-lo como um dos efeitos da filiação, integrado, portanto, no Livro da Família.

A natureza e conteúdo do poder paternal vinham definidos no artigo 1879.º: compete a ambos os pais a guarda e a regência dos filhos menores não emancipados com o fim de os defender, educar e alimentar; pertencendo também aos pais representar os filhos, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.

Mais uma vez, a repartição dos poderes de exercício do poder paternal assentava no modelo patriarcal, competindo especialmente ao pai, como chefe da família, a grande parte desses poderes e recaindo sobre a mãe poderes meramente consultivos e de substituição das funções parentais do marido, na impossibilidade de este as exercer.

A Reforma do Código Civil, levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 15-11, institucionalizou a faceta funcional do chamado «poder paternal», tendo passado de poder (direito) a função (dever) e de poder exclusivo do pai a autoridade conjunta do pai e da mãe.

Na parte que agora nos importa, ou seja, no que tange ao sistema que a lei institui para o exercício das responsabilidades parentais em caso de dissociação familiar (divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento e separação de facto), há que assinalar dois diplomas que vieram alterar alguns artigos do Código Civil, basilares nesta matéria

Falamos da Lei n.º 84/95, de 31-8, que permitiu a opção dos pais pelo exercício em comum do poder paternal (não confundível com a guarda conjunta), e da Lei n.º 59/99, de 30-6, que deu nova redacção ao artigo 1906.º, colocando como regime-regra o exercício conjunto do poder paternal e como regime subsidiário o exercício unilateral ou singular.

Finalmente, refira-se que foi entretanto publicada a Lei n.º 61/2008, de 31-10, que vem rever o regime jurídico do divórcio, procedendo também a alterações no regime do exercício das hoje responsabilidades parentais.

Na exposição de motivos do projecto que esteve na origem do diploma, lê-se:

«O projecto que se apresenta propõe o desaparecimento da designação “poder paternal” substituindo-a de forma sistemática pelo conceito de “responsabilidades parentais”. Na mudança de designação está obviamente implícita uma mudança conceptual que se considera relevante. Ao substituir uma designação por outra muda-se o centro da atenção: ele passa a estar não naquele que detém o “poder” — o adulto, neste caso — mas naqueles cujos direitos se querem salvaguardar, ou seja, as crianças.

Esta mudança pareceu essencial por vários motivos.

Em primeiro lugar, a designação anterior supõe um modelo implícito que aponta para o sentido de posse, manifestamente desadequado num tempo em que se reconhece cada vez mais a criança como sujeito de direitos.

É certo que em direito de família o poder paternal sempre foi considerado um poder/dever, mas esta é uma especificação técnica que desaparece no uso quotidiano, permitindo-se assim que na linguagem comum se façam entendimentos e conotações antigas e desajustadas.

Em segundo lugar, é vital que seja do ponto de vista das crianças e dos seus interesses, e portanto a partir da responsabilidade dos adultos, que se definam as consequências do divórcio.

Também assim se evidencia a separação entre relação conjugal e relação parental, assumindo-se que o fim da primeira não pode ser pretexto para a ruptura da segunda.

Por outras palavras, o divórcio dos pais não é o divórcio dos filhos e estes devem ser poupados a litígios que ferem os seus interesses, nomeadamente, se forem impedidos de manter as relações afectivas e as lealdades tanto com as suas mães como com os seus pais.

Vale a pena sublinhar, por último, que a designação agora proposta acompanha as legislações da maioria dos países europeus que já há muito a consagram.

Acresce ainda que neste projecto se introduz um novo artigo prevendo punição para o incumprimento do exercício das responsabilidades parentais que passa a ser considerado crime de desobediência.

Novamente assim se pretende sublinhar que o Estado deve, através dos vários meios ao seu alcance, assegurar a defesa dos direitos das crianças, parte habitualmente silenciosa neste tipo de diferendos entre adultos, sempre que estes não cumpram o que ficar estipulado.

A imposição do exercício conjunto das responsabilidades parentais para as decisões de grande relevância da vida dos filhos decorre ainda do respeito pelo princípio do interesse da criança.

 Também aqui se acompanha a experiência da jurisprudência e a legislação vigente em países que, por se terem há mais tempo confrontado com o aumento do divórcio, mudaram o regime de exercício das responsabilidades parentais da guarda única para a guarda conjunta.

 Isso aconteceu por terem sido verificados os efeitos perversos da guarda única, nomeadamente pela tendência de maior afastamento dos pais homens do exercício das suas responsabilidades parentais e correlativa fragilização do relacionamento afectivo com os seus filhos.»

De facto, o diploma estabelece uma nova redacção do artigo 1906.º do CC, passando a dispor da forma seguinte:

«1. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores, nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.

2. Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.

3. O exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do filho cabem ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente.

4. O progenitor a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente pode exercê-las por si ou delegar o seu exercício.

5. O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.

6. Ao progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida do filho.

7. O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.».

 

O interesse de cada criança cujos pais deixam de conviver como companheiros de vida é:

  1. Manter ambos os Pais ao leme da sua vida.
  2. . Manter o património familiar de ambas as famílias, isto é, manter o contacto estreito com a sua família alargada, por quem a criança tenha afecto.
  3. Manter uma vida o mais parecida possível com aquela que ela tinha anteriormente, isto é, com o mínimo de mudança.

Há que ponderar assim a possibilidade da residência alternada que pode ser consensualizada pelos pais ou imposta pelo tribunal (legitimado pela letra do artigo 1906º, n.º 7 do CC).

Entendemos que tal regime pode ser o ajustado em situações cada vez menos excepcionais, a saber:

*

Edward Kruk, em «Arguments for an Equal Parental Responsibility Presumption in Contested Child Custody», publicado no The American Journal of Family Therapy, Volume 40, Issue 1, 2012, pp. 33-55, opina que existem 16 argumentos que sustentam a presunção de igualdade das responsabilidades parentais, assim se legitimando a imposição judiciária da residência alternada:

  1. Preserva a relação da criança com ambos os pais;
  2. Preserva a relação dos pais com a criança;
  3. Diminui o conflito parental e previne a violência na família;
  4. Respeita as preferências da criança e a opinião da mesma acerca das suas necessidades e superior interesse;
  5. Respeita as preferências dos pais e a opinião dos mesmos acerca das necessidades e superior interesse da criança;
  6. Reflecte o esquema de cuidados parentais praticado antes do divórcio;
  7. Potencia a qualidade da relação progenitor-criança;
  8. Reduz a atenção parental centrada na «matematização do tempo» e diminui a litigância;
  9. Incentiva a negociação e a mediação interparental e o desenvolvimento de acordos do exercício das responsabilidades parentais;
  10. Proporciona guidelines claras e consistentes para a tomada de decisão judicial;
  11. Reduz o risco e a incidência da «alienação parental»;
  12. Permite a execução dos regimes de exercício das responsabilidades parentais, pela maior probabilidade de cumprimento voluntário pelos pais;
  13. Considera os imperativos de justiça social relativos à protecção dos direitos da criança;
  14. Considera os imperativos de justiça social relativos à autoridade parental, à autonomia, igualdade, direitos e responsabilidades;
  15. O modelo “interesse superior da criança/guarda e exercício unilateral” não tem suporte empírico;
  16. A presunção legal de igualdade na guarda e exercício das responsabilidades parentais tem suporte empírico.

Esta é uma aposta cada vez mais jogada pelos pais, em prol do bem-estar do filho (mas há que ter a coragem de rejeitar este modelo quando ele não satisfaz os superiores interesses do filho menor).

 

3.3. OS ACOLHIMENTOS NA LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO

A Lei em causa – aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9 - teve uma profunda alteração em 2015 (Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro).

Uma das medidas aplicadas a uma situação de criança em perigo é a do Acolhimento familiar.

O novo artigo reza assim:

Artigo 46.º

Definição e pressupostos

  1. O acolhimento familiar consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, proporcionando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral.
  2. Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto ou parentes que vivam em comunhão de mesa e habitação.
  3. O acolhimento familiar tem lugar quando seja previsível a posterior integração da criança ou jovem numa família ou, não sendo possível, para a preparação da criança ou jovem para a autonomia de vida.
  4. Privilegia-se a aplicação da medida de acolhimento familiar sobre a de acolhimento residencial, em especial relativamente a crianças até aos seis anos de idade, salvo:

a) Quando a consideração da excecional e específica situação da criança ou jovem carecidos de proteção imponha a aplicação da medida de acolhimento residencial;

b) Quando se constate impossibilidade de facto.

5 - A aplicação da medida de acolhimento residencial nos casos previstos nas alíneas a) e b) do número anterior é devidamente fundamentada.

Esta uma das grandes novidades do regime de 2015 - até aos 6 anos da criança, prefere-se esta medida à do acolhimento residencial, devendo justificar-se sempre que a esta se recorre nesta faixa etária.

É o reconhecimento de que a criança se desenvolve melhor nos primeiros anos de vida em ambiente familiar e não institucional ou residencial.

Deixa de se pensar o acolhimento familiar como uma medida que deva ser necessariamente uma ante-câmara do regresso à família de origem.

E esta é uma grande conquista na luta contra a institucionalização de crianças de tenra idade em Portugal.

Haja mecenas, haja bolsas destas famílias…

 

4. De futuro, no Direito da Família, muito pode ser problematizado, ideias-força tidas por adquiridas podem deixar de ser consensuais(3).

 

4.1. Hoje em dia, qualquer que seja o sistema jurídico, a validade e eficácia do casamento dependem, normalmente, da intervenção legitimadora de instituições que tomem a seu cargo a formalização do mesmo — e de futuro, não será posta em causa esta necessidade de legitimação externa?

4.2. A igualdade dos cônjuges, hoje pedra de toque de qualquer sistema civilizado, pode levar ao aumento explosivo do número de mulheres divorciadas vivendo em famílias monoparentais com os filhos pequenos, naturalmente mais pobres (a chamada feminização da pobreza), em países onde cada vez mais existem sistemas incapazes de cobrar, de força coerciva, os alimentos devidos e não pagos.

4.3. A tendência será a de restringir a imposição de deveres conjugais ao mero dever de decidir em conjunto os actos da vida conjugal comum, levando o pluralismo e a privatização da família conjugal até um extremo quase inconcebível — as leis evitarão pormenorizar os deveres conjugais, refugiando-se na adopção de cláusulas gerais que os cônjuges — que querem ser os seus próprios legisladores — hão-de concretizar segundo o seu projecto individualizado.

Veja-se o exemplo paradigmático do caso alemão em que os próprios tribunais já discutiram se era compatível com a comunhão de vida a existência de uma segunda mulher em casa e a circunstância de duas pessoas casadas poderem viver em casas distintas.

A Lei n.º 61/2008, de 31-10, acabou com o conceito de culpa na dissolução do casamento, criando a nova figura do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (tal como já o fizeram países como a França, a Espanha, Suécia, Noruega e Alemanha) — agora com as motivações da separação de facto, violência doméstica e a violação genérica dos direitos fundamentais —, argumentando-se que deve prevalecer uma concepção da conjugalidade assente nos afectos e não nos deveres e que o divórcio-sanção só se torna uma fonte de agravamento de conflitos anteriores para os ex-cônjuges e filhos (4).

4.4. A tendência para a modificação das relações patrimoniais entre cônjuges, permitindo, cada vez mais, a confusão permanente dos patrimónios resultante de depósitos mistos, de aplicações e reaplicações, de transferências de propriedade entre cônjuges.

4.5. A facilitação dos divórcios e sua desformalização (o caso português que enviou para canais administrativos quase tudo o que concerne ao divórcio consensual.

4.6. A possível supressão da heterossexualidade como requisito do casamento (5) e a concessão de efeitos jurídicos plenos à união de facto homossexual, abandonada a finalidade da procriação como objectivo essencial do casamento — assistir-se-á, assim, à multiplicação de instrumentos jurídicos dirigidos à tutela da comunhão de vida entre duas pessoas do mesmo sexo, criando-se uns ou cimentando-se a implementação de outros, vistos como verdadeiros sucedâneos do casamento (6).

Entretanto, entrou em vigor em Portugal a Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

4.7. O incremento exponencial da monoparentalidade e das suas possíveis variações, assente que a biparentalidade tradicional não é sinónimo de exclusiva fonte de felicidade para os filhos — e o caminho pode ser este:

—   a aceitação mais fácil das adopções singulares mesmo quando as plurais forem viáveis;

—   a permissão de mulheres sós recorrerem à inseminação com esperma de dador; e

—   a viabilização de adopções por casais homossexuais [veja-se o exemplo recente de um tribunal canadiano que decidiu a favor de um casal de lésbicas, reconhecendo o direito de uma criança chamar «mãe» a duas mulheres — à mãe biológica e à mulher que com ela vive maritalmente (7)].

4.8. As novas questões éticas e jurídicas associadas aos casos de procriação medicamente assistida (conjunto de técnicas destinadas à formação de um embrião humano sem intervenção do acto sexual), de recurso aos processos heterólogos (procriação com gâmetas de terceiros), de «maternidade de substituição» (entendida como o fenómeno da gestação por terceira pessoa) e de procriação assistida post mortem (8).

4.9. A possibilidade de se estabelecerem laços legais entre a criança e certos amigos mais próximos, padrastos ou madrastas (em caso de ruptura com a mãe ou o pai).

4.10. A tendência para se abandonar o chamado «panjurismo iluminista» que impunha a regulação de todos os aspectos da vida familiar, havendo agora a possibilidade de se adoptar um direito da família fragmentário, que apenas regule aspectos essenciais ou aqueles que forem considerados de interesse público e que sobrarão de uma privatização crescente da vida familiar (combate à existência generalizada no Direito da Família de normas imperativas, porque inderrogáveis por vontade das partes e à consideração deste ramo do direito como o terreno de eleição da reserva da ordem pública).

4.11. A criação de uma figura jurídica intermédia que esteja entre a adopção plena e o regresso da criança aos pais biológicos — aquela continua a manter o contacto com os pais biológicos, sendo limitados os direitos dos pais adoptivos (figura aparentada com a adopção restrita, tão caída em desuso e agora até eliminada do nosso quadro legislativo); será aquilo a que poderá chamar uma forma mais suave de adopção (não tão radical), que poderia contribuir para o decréscimo do número de crianças institucionalizadas (9), cogitando-se a construção de uma nova providência tutelar cível que fique situada entre a tutela e a adopção restrita (chame-se-lhe «apadrinhamento civil» (10) ou «acolhimento prolongado»).

4.12. A tendência para a assimilação da parentalidade sócio-afectiva à parentalidade biológica — pairará a ideia de que não basta a concepção e o registo para se inferir uma boa progenitura, exigindo-se que as melhores práticas estejam comprovadamente aliadas, no melhor interesse da criança, o tal «certificado de origem» que, tantas vezes, redunda em histórias de maltrato infantil e de vergonha parental (11).

4.13. No que concerne à parentalidade, abandonar-se-á de vez a expressão «Poder Paternal» para falar em «Responsabilidades Parentais» e a tendência quase generalizada de atribuição prioritária do exercício dessas RP às mães.

E aqui deixem-nos falar da importância do Pai-homem, peça essencial no crescimento harmonioso dos filhos, nem mais nem menos do que a Mãe.

É inegável que depois de obedecer à lei da natureza, um homem é chamado a ser sensato, gentil, paciente, amoroso, juiz, árbitro, pediatra, educador infantil, perito financeiro, consertador de brinquedos, fonte de toda a sabedoria, artista.

Enfim, a ser Pai.

Aos vinte anos vestiu o fato da paternidade, enchumaçou os ombros, cresceu em altura, ficou com a voz mais grave para se adequar ao papel.

Um dos maiores desafios feitos à Família, hoje em dia, é o repensar dos papéis dos dois progenitores e o relançar da figura do pai, assente que ternura e afectos são assuntos que não lhe são estranhos.

4.14. Finalmente, a ideia mais importante de todas — será o século da Criança, tida e lida como a peça mais importante, porque mais indefesa e vulnerável, deste xadrez que se optou por jogar entre peças brancas, pretas, cinzentas, rosas e azuis, seja qual for a cor da pele da nossa família e do nosso afecto…

Falamos da Criança (12) e já não do menor, epíteto que esperamos ser abolido de vez, mesmo dos próprios textos legais.

4.15. Uma nota final quanto aos desafios futuros em Portugal – quais serão os novos caminhos dos Tribunais de Família e das Crianças?

 

Daí que possa aconselhar a todos os Juízes e Magistrados do Ministério Público laborando nesta Área:

5. Italo Calvino define as seis categorias essenciais que irão marcar as nossas comunidades neste milénio que se delineia: a leveza, a rapidez, a exactidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência(13).

O Direito e os sistemas jurídicos tenderão a acompanhar as mentalidades, tentando diagnosticar as verdadeiras pulsões de mudança, distingui-las das tendências de moda sem capacidade para provocar alterações legislativas.

E aí, nas verdadeiras novidades, saberá identificar o alfabeto de uma ordem, de um fundo de Mundo constatado, vivido, sentido e, afinal, carente de letra de lei.

Está o Direito da Família e das Crianças aberto a novas realizadas familiares, a novas formas de viver o casamento ou a união de facto, em novos rumos para os casais e para as relações paterno-filiais, em abertura a supostas e possíveis utopias e a um, hoje tão convocado, Direito Humanitário.

6. «No seu regresso à cidade, Buda encontrou-se com um transeunte que, impressionado pela luz e energia que aquele irradiava, o questionou:

“- Você é um Deus? – Não, respondeu Buda . - Você é um santo? - Não, respondeu Buda novamente.

Então, você é um príncipe? - Não, - respondeu Buda sem parar de andar. – Só estou acordado”».

Temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a sua luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças portuguesas ou aqui residentes no seu sono.

O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos.

Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.

E não esqueçam o principal - para fazer todo o resto, muitas vezes, basta o AMOR!

E como aprendi com os nossos irmãos brasileiros:

«As pessoas não se interessam com o quanto tu sabes, até saberem o quanto tu te importas…»

 

Pátio do Limoeiro, 19 de Fevereiro de 2016

 

NOTAS:

(1) Cf. Balsemão, Edmundo, «Família», in Marques, António, coord., Dicionário de Filosofia Moral e Política, disponível na Internet em <http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/familia.pdf> [Consult. 10 Dez. 2008].  Cf. ainda o sítio da associação Family Diversity Projects em <http://www.familydiv.org> [Consult. 10 Dez. 2008].

(2) Alegam-se culpas mas elas não podem ser declaradas pelo tribunal.

(3) Cf. Oliveira, Guilherme de, «Transformações do Direito da Família», in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 763-779 e Guerra, Paulo e Bolieiro, Helena, «A criança e a família – uma questão de direito(s)» – Coimbra Editora, 2ª edição, 2014.

(4) Este diploma foi já aqui mencionado.

(5) Há algum tempo, os dois projectos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda e pelo partido «Os Verdes», sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foram chumbados com os votos contra da maioria PS, PSD e CDS-PP.  Durante o debate que antecedeu a votação, o deputado socialista Jorge Strecht assegurou a vontade do PS de consagrar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, mas não se comprometeu com datas, depois de desafiado a esclarecer se o fará na próxima legislatura. Acabou por vir à luz a permissão legal de casamento entre pessoas do mesmo sexo.

(6) Para além do exemplo português da Lei n.º 7/2001, de 11-5, refiram-se:

— o instituto da «pareja estable» ou «union de hecho» de algumas comunidades autónomas espanholas;

— o instituto da «cohabitation légale» da Bélgica;

— o instituto da «Lebensgemeinschaft» da Áustria;

— o instituto da «Lebenspartnerschaft» do Luxemburgo;

— o instituto do «pacte civil de solidarité» de França;

— o instituto das chamadas «parcerias registadas» — «registered partnerships» — dos países nórdicos (Finlândia, Suécia) e da Holanda.

(7) Também, recentemente, uma sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem voltou a colocar esta questão nos meios de comunicação social — uma mulher francesa, lésbica e vivendo em união de facto com outra, quis adoptar uma criança, tendo sido recusada esta pretensão nomeadamente porque ela não proporcionaria àquela criança uma família com uma «imagem parental de referência».  O caso chegou a Estrasburgo que, em Janeiro de 2008, sentenciou no sentido de condenar o Estado francês a pagar uma indemnização de 10 mil euros à queixosa — no fundo, entenderam que, se a lei permite a adopção por uma pessoa singular como admite, não faz sentido questionar a ausência de uma figura masculina, assim concluindo que a candidata foi discriminada pela sua orientação sexual.

Diga-se ainda que os defensores da não admissibilidade de adopção conjunta por casais homossexuais alegam que num sistema de adopção há sempre alguém a quem cabe escolher os adoptantes.

As perguntas que estes colocam são estas: Que critérios se utilizariam na hora de escolher tais pais adoptivos? Com que base é que se poderia dizer que uma criança ficaria com uma família deste tipo (homossexual) e aquela outra com outra família (heterossexual) daquele tipo?  Para esta tese, manter a lei como está não significa discriminar ninguém, significando antes não discriminar as crianças.

Neste momento em que se escreve, já temos lei que permite a adopção de crianças por parte de casais homossexuais (Lei n.º 2/2016, de 29/2).

(8) Ao longo dos anos, os cientistas têm conseguido ultrapassar situações de esterilidade conjugal (note-se que ninguém tem direito a um filho, mas apenas a legítima expectativa ou o desejo de ter um filho) até então considerados insolúveis, passando a separar-se a dimensão afectiva da componente biológica do acto procriativo, como forma (também) de resolver, em Portugal, a sua grave situação demográfica.

A PMA compreende o conjunto de técnicas destinadas à formação de um embrião humano sem a existência de um acto sexual (cópula), sendo usual fazer-se a distinção entre processos de procriação sexuada (onde há a intervenção de dois componentes — um de cada — de pessoas de sexo diferente) e não sexuada (onde há a intervenção apenas de um componente, quer masculino, quer feminino, destacando-se neles a clonagem).

(9) Sottomayor, Clara («Quem são os «verdadeiros» pais?  Adopção plena de menor e oposição dos pais biológicos», in Direito e Justiça, Vol. XVI, Tomo I, pp. 234-241) fala numa «adopção aberta» que seria uma óptima alternativa à colocação de crianças em instituições pois permitiria a estas crianças gozarem de um cuidado personalizado e do afecto próprio de uma família, não perdendo o contacto com a família biológica, «nos casos em que tivessem uma memória positiva desta», tendo os pais naturais a possibilidade de obter informações sobre os seus filhos.  A questão que se coloca é se em Portugal existem adultos que queiram adoptar nestas condições, ou seja, que aceitem esta partilha da vida de uma criança em vez de a «terem» em exclusivo para si.  A este respeito, cf. ainda Gersão Eliana, «Adopção — mudar o quê?»…, pp. 844-848.

(10)          Foi esta a proposta do Observatório Permanente da Adopção, hoje já com letra de lei - o apadrinhamento civil consiste na integração de uma criança ou jovem num ambiente familiar, confiando-os a uma pessoa singular ou uma família que exerçam os poderes e deveres próprios dos pais e com eles estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento; os seus propósitos são o de despromover a desinstitucionalização e o de evitar a institucionalização de crianças e jovens. Para tanto, procura-se um mecanismo que substitua as figuras que normalmente exercem as responsabilidades parentais — os pais — e que, por alguma razão, não estão em condições de as exercer. O apadrinhamento civil quer, sobretudo, promover a desinstitucionalização de crianças, através da constituição de uma relação para-familiar tendencialmente permanente, destinada às crianças e jovens que não são encaminhados para a adopção ou não são adoptados (apesar de poderem ter sido declarados em estado de adoptabilidade). A aguardar sedimentação e cimentação!

(11)          Acabando-se de vez com essa inexistente — na letra da lei — distinção entre «pais biológicos» e «pais afectivos», hoje em dia tão veiculada pelos media.

(12)          Duvidamos da necessidade de colocar em texto de lei uma maior densificação da noção de «interesse superior da criança», tal como parece pretende alguma doutrina e grupos de pressão, como forma de resposta face a alguns casos mediáticos envolvendo crianças.

(13) Calvino, Italo, Seis propostas para o próximo milénio, trad. Ivo Barroso, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

A Família e o Estado ou o estado da Família

A Família e o Estado ou o estado da Família

 

A Família, na sua génese, foi a primeira célula social orgânica criada para servir de instrumento ao desenvolvimento e crescimento do ser humano.

Foi a partir dessa célula inicial e essencial que, pela sua naturalidade, se desenvolveram formas orgânicas mais complexas onde o homem se inseriu, como sejam a tribo, a aldeia, o condado, o reino e o Estado.

Estas formas orgânicas superiores e coletivas foram criadas e encontraram a sua razão de ser, sobretudo enquanto organização subsidiária à Família como meio de apoio e auxílio aquela, razão pela qual a intervenção do Estado na Família deve ser subordinada e instrumental face aos interesses da Família.

A intervenção do Estado na Família deve, pois, em regra, ser secundária, excecional e auxiliar e, nesse sentido, foi sempre em geral a atuação do legislador constitucional em plurímas ordens legislativas (veja-se, por todos, Jorge Miranda “A relevância constitucional da Familia”).

A consagração e progressiva normativização do Direito da Família tem particular relevo nesse aspeto na legislação judiciária dos tribunais de Família e as suas competências.

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Sem prejuízo de se poder, e bem, discutir o paradigma confrontacional dos tribunais na aplicação do Direito da Família, à semelhança dos outros ramos de Direito, cujos resultados são cada vez mais discutíveis, parece-nos mais importante ver quais as causas que contribuem cada vez mais para a sua incapacidade para dar cumprimento à sua primordial missão – apoiar e ajudar essa célula chamada “Família”.

Antes de mais, a sobrecarga ou excesso de competência dos tribunais de Família.

Se é verdade que se assistiu a uma enorme progressão da capacidade e técnica dos tribunais e dos seus operadores com a criação e o incremento da competência especializada dos tribunais de Família, o alargamento da sua competência está a contribuir fortemente para que os mesmos, por incapacidade, deixem de dar resposta a essa sua primordial função.

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A “fusão” da jurisdição de menores em situação de risco nos tribunais de Família e Menores é causa cada vez maior da paralisação dos tribunais de Família e de insucesso da jurisdição de menores. Porquê?

Porque a “urgência” reconhecida por lei dos processos de menores implica que os processos de Família sejam secundários face aos primeiros e, por isso, postergados para segunda fase, ou seja, entre cuidar da galinha ou do ovo, procura-se cuidar do ovo descurando a galinha que deverá cuidar do mesmo.

Este fenómeno mais não é do que uma tendência cada vez maior de cuidar da árvore esquecendo a floresta, do especial face ao geral onde se origina, do anormal face ao padrão normal com uma progressiva miopia que leva a matar o todo pelo indivíduo.

É, na sua essência, uma incapacidade de perceber que um “fígado” sem “corpo” não tem razão de ser. Tratar de menores que depois não tenham famílias que deles cuidem, nada resolve, pior do que isso, cria ainda mais descrédito na capacidade do Estado de cuidar do indivíduo.

Esta deficiência do Estado na perceção da Família e da sua primordial importância prévia face aos seus diferentes componentes é que nos leva ao presente estado da Família como “algo” incapaz de desempenhar a função que sempre teve e terá, pela simples razão de ser inerente ao homem e à sua condição de animal racional e espiritual.

 

João Perry da Câmara

Partner da Rogério Alves & Associados

Responsável pelo núcleo de Direito da Família e Sucessões