Família, Crise ou Esperança

Família, Crise ou Esperança

  1. Quando se fala de família, a primeira coisa a ter em conta é o como ela se define. A família, no seu modelo tradicional e jurídico, é constituída pela união de um homem e de uma mulher que, no amor recíproco, garantem a estabilidade necessária à geração dos filhos e a educação integral, até à autonomia de cada um deles. O par humano, o casal, com os seus filhos, constitui o fundamento de toda e qualquer família, família essa que, depois, se vai abrindo às gerações futuras.O mesmo Papa, na Exortação Apostólica, Christifideles Laici diz que a família é um espaço social onde a vida nasce, cresce e se desenvolve até à plenitude da felicidade de todos os seus membros. Então, o grande objectivo da família é a felicidade de todos.
  2. Há no entanto, duas definições de família que vale a pena conhecer. O Papa S. João Paulo II, na Exortação Apostólica, Familiaris Consortio, diz que a família é uma comunhão de pessoas ao serviço da vida para o desenvolvimento da humanidade. Esta definição tem três dinamismos: o da comunhão entre o homem e a mulher e os seus filhos, o do serviço à vida que se transmite e se educa, e o próprio desenvolvimento da humanidade que, com a família, cresce continuamente.
  3. No mundo contemporâneo apareceram muitos modelos de família, alguns deles, porém, conduzindo à destruição da própria estrutura familiar. A família patriarcal mantém a tradição inalterável. A família nuclear assegurou os elementos fundamentais da relação homem e mulher com a complementaridade dos seus filhos. Os outros modelos agora em voga comprometem a família, como referência fundamental no projecto de vida. É o caso da família uniparental, às vezes imprescindível, como acontece em situações de viuvez ou de mães solteiras. Sucede o mesmo com a família pluriparental, e famílias muitas vezes reconstruídas, mas incapazes de suportar as normais tensões do encontro de desconhecidos. Já não se fala de famílias entre pessoas do mesmo género, ou de pessoas sem família. Perante este universo negativo torna-se urgente reflectir sobre a família e tentar encontrar a referência modelo que respeita os valores fundamentais e que abre a porta à felicidade. São poucas as famílias referência na sociedade contemporânea.
  4. A família vive num défice de relações, uma crise centrada na negação das suas características fundamentais: a liberdade, a fecundidade e a felicidade. Há muitas famílias em que alguns dos seus membros perderam completamente a sua dignidade, pela perda da liberdade a que têm direito. Daqui, por exemplo, a violência doméstica. A fecundidade é hoje limitadíssima, fica-se muitas vezes num filho único ou no “casalinho”. É sabido que Portugal tem o índice de natalidade mais baixo de toda a Europa. No que se refere à felicidade, a falta de amor é frequente, com o divórcio, a separação, o contrair de outras relações. É esta rotura de unidade que compromete definitivamente a família. O processo educativo dos filhos também deixa muitas vezes a desejar. Os pais têm muito trabalho profissional, as casas estão vazias, os mais velhos foram colocados em residências meramente assistenciais. É esta crise de família, com todos estes contornos, que preocupa o Papa Francisco e o levou a convocar dois sínodos sobre a família. O documento conclusivo dos sínodos, a Exortação Apostólica, Amoris Laetitia ajuda a repensar a família em todos os seus aspectos. É tempo de renovarem-se as estruturas familiares, a ponto de estas se tornarem fonte de alegria no amor, razão de felicidade no sorriso das crianças, coragem e serenidade no tempo do sofrimento e referência em todas as situações da vida.
  5. Notam-se actualmente esforços positivos para levar a família ao lugar que sempre ocupou na vida das pessoas. Não pode esquecer-se a importância de ter uma mãe e um pai a quem se recorre sempre nas horas boas e nas mais difíceis. Reafirma-se a ternura de ver a continuação da vida no olhar de uma criança. É de sublinhar o carinho dos avós com missão específica de apoiar os pais na educação dos filhos. Voltar a dar à família esta missão é indiscutivelmente razão de esperança.É com alegria que se repara que há hoje uma melhor preparação para a constituição das novas famílias. Sobretudo as igrejas, católica e outras igrejas cristãs, fazem um esforço muito grande no acompanhamento dos jovens a partir dos primeiros namoros. Quando os jovens começam a viver um amor comprometido multiplicam-se cursos, sessões de estudo e tempos de oração, para que de uma maravilhosa relação afectiva possa nascer uma família cristã. A preparação para o casamento já se não preocupa exclusivamente com as características da festa. O grande acontecimento, o sacramento do Matrimónio, celebra-se na igreja com enorme exigência. Depois, estão a mudar os critérios da fecundidade. Há muitos casais novos com três e mais filhos o que é revelador da sua responsabilidade social. No tempo das normais crises, psicólogos e sacerdotes, ajudam a vencer as normais dificuldades do amor. Finalmente o processo educativo desenvolve-se de uma maneira responsável em muitos casos até à autonomia completa dos jovens que constroem a sua família. Podemos dizer que é um tempo de esperança. Assim sendo, longe de dizer mal das famílias, cada cidadão tem que contribuir à sua maneira para dar à família o lugar que lhe compete na construção de uma sociedade justa e fraterna.

Maio de 2017

Padre Vitor Feytor Pinto

Pároco da Igreja do Campo Grande

A compensação pelo trabalho doméstico e pela educação dos filhos

A compensação pelo trabalho doméstico e pela educação dos filhos

A sociedade portuguesa é, ainda, uma sociedade não igualitária e, apesar de muito caminho já ter sido percorrido, não podemos negar que as mulheres ainda assumem um papel de trabalho no lar, que permanece desvalorizado e que, numa situação de rutura, não tem por hábito ser colocado em cima da mesa, para acertos.

No final de uma vida em comum, costuma arrumar-se a questão, dizendo que a mulher se dedicou ao lar e aos filhos e o homem assumiu a figura do provedor da liquidez.

No entanto, recentemente, esta temática, à luz da sua análise jurídica, foi tomada em conta no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14 de janeiro de 2021.

Neste acórdão, relativo a uma situação de união de facto que cessou após quase 30 anos de vida em comum, foi entendido que nas situações em que as tarefas domésticas são assumidas, apenas ou quase exclusivamente por um dos membros da união de facto, existe um desequilíbrio na repartição de tarefas não sendo, por isso, de considerar que este trabalho feito em casa, refletido na lide doméstica, nos cuidados e acompanhamento da educação dos filhos seja enquadrável numa obrigação natural (artigo 402.º do Código Civil) e corresponda ao cumprimento de um dever. Antes pelo contrário.

Podemos ler nesse acórdão que:

«… desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça. Pelo contrário, tal dever, reclama uma divisão de tarefas, o mais igualitária possível, sem prejuízo da possibilidade de os membros dessa relação livremente acordarem que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico…

O exercício da atividade doméstica, por apenas, ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem custos ou contributos. Como refere Júlio Gomes, o trabalho doméstico, embora continue a ser estranhamente invisível para muitos, tem obviamente um valor económico e traduz-se num enriquecimento enquanto poupança de despesas ou Paula Távora Victor, o trabalho doméstico constitui uma forma de contribuir para a aquisição de bens».

Assim, numa situação de cessação da união de facto, deve o trabalho realizado por um dos membros da união no circunstancialismo acima referido, ser contabilizado no quadro das contribuições que permitiram ao outro membro da união de facto a aquisição de património da sua titularidade.

Do mesmo modo, se devem tratar as tarefas realizadas com o cuidado e educação dos filhos nascidos dessa união de facto. Conforme se pode ler, neste acórdão, a propósito desta questão:

«Se existe um dever de cuidado e educação dos filhos (artigos 1874.º, n.º 1 e 2, 1877.º e 1879.º do Código Civil), esse dever recai sobre os dois membros da união de facto, pelo que, quando a respetiva prestação é cumprida exclusivamente ou predominantemente por um deles, essa atividade também se poderá incluir nas contribuições geradoras de um enriquecimento sem causa do membro da união de facto não participante.»

Também para os casados, prevê-se no artigo 1676.º n.º 2 do Código Civil, mecanismos que visam a compensação das contribuições desproporcionadas por um dos membros do casal para os encargos da vida familiar durante a vigência do casamento, aqui se incluindo também a realização de tarefas domésticas.

Com efeito, o legislador ponderou que «o trabalho realizado pelas mulheres no contexto familiar, hoje acumulado com o trabalho que desempenham no exterior, não é valorizado no contexto do casamento e permanece ainda mais invisível quando surge o divórcio, chamando a atenção para a necessidade do reconhecimento da importância decisiva para as condições de vida e equilíbrio da vida familiar dos contributos da chamada esfera reprodutiva, isto é dos cuidados com os filhos e do trabalho doméstico».

Sendo hoje o Dia Internacional da Mulher e confrontando-nos, nós, enquanto advogadas de Família, com situações como a supra descrita, queremos deixar o nosso contributo para uma sociedade mais justa e mais igual, com este artigo e esperamos que quem o leia e encontre correspondência com o que aqui é tratado e a sua situação de vida, compreenda que tem o que reclamar e, mais importante, que o que reclama tem acolhimento legal, doutrinário e jurisprudencial.

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