Família, Crise ou Esperança

Família, Crise ou Esperança

  1. Quando se fala de família, a primeira coisa a ter em conta é o como ela se define. A família, no seu modelo tradicional e jurídico, é constituída pela união de um homem e de uma mulher que, no amor recíproco, garantem a estabilidade necessária à geração dos filhos e a educação integral, até à autonomia de cada um deles. O par humano, o casal, com os seus filhos, constitui o fundamento de toda e qualquer família, família essa que, depois, se vai abrindo às gerações futuras.O mesmo Papa, na Exortação Apostólica, Christifideles Laici diz que a família é um espaço social onde a vida nasce, cresce e se desenvolve até à plenitude da felicidade de todos os seus membros. Então, o grande objectivo da família é a felicidade de todos.
  2. Há no entanto, duas definições de família que vale a pena conhecer. O Papa S. João Paulo II, na Exortação Apostólica, Familiaris Consortio, diz que a família é uma comunhão de pessoas ao serviço da vida para o desenvolvimento da humanidade. Esta definição tem três dinamismos: o da comunhão entre o homem e a mulher e os seus filhos, o do serviço à vida que se transmite e se educa, e o próprio desenvolvimento da humanidade que, com a família, cresce continuamente.
  3. No mundo contemporâneo apareceram muitos modelos de família, alguns deles, porém, conduzindo à destruição da própria estrutura familiar. A família patriarcal mantém a tradição inalterável. A família nuclear assegurou os elementos fundamentais da relação homem e mulher com a complementaridade dos seus filhos. Os outros modelos agora em voga comprometem a família, como referência fundamental no projecto de vida. É o caso da família uniparental, às vezes imprescindível, como acontece em situações de viuvez ou de mães solteiras. Sucede o mesmo com a família pluriparental, e famílias muitas vezes reconstruídas, mas incapazes de suportar as normais tensões do encontro de desconhecidos. Já não se fala de famílias entre pessoas do mesmo género, ou de pessoas sem família. Perante este universo negativo torna-se urgente reflectir sobre a família e tentar encontrar a referência modelo que respeita os valores fundamentais e que abre a porta à felicidade. São poucas as famílias referência na sociedade contemporânea.
  4. A família vive num défice de relações, uma crise centrada na negação das suas características fundamentais: a liberdade, a fecundidade e a felicidade. Há muitas famílias em que alguns dos seus membros perderam completamente a sua dignidade, pela perda da liberdade a que têm direito. Daqui, por exemplo, a violência doméstica. A fecundidade é hoje limitadíssima, fica-se muitas vezes num filho único ou no “casalinho”. É sabido que Portugal tem o índice de natalidade mais baixo de toda a Europa. No que se refere à felicidade, a falta de amor é frequente, com o divórcio, a separação, o contrair de outras relações. É esta rotura de unidade que compromete definitivamente a família. O processo educativo dos filhos também deixa muitas vezes a desejar. Os pais têm muito trabalho profissional, as casas estão vazias, os mais velhos foram colocados em residências meramente assistenciais. É esta crise de família, com todos estes contornos, que preocupa o Papa Francisco e o levou a convocar dois sínodos sobre a família. O documento conclusivo dos sínodos, a Exortação Apostólica, Amoris Laetitia ajuda a repensar a família em todos os seus aspectos. É tempo de renovarem-se as estruturas familiares, a ponto de estas se tornarem fonte de alegria no amor, razão de felicidade no sorriso das crianças, coragem e serenidade no tempo do sofrimento e referência em todas as situações da vida.
  5. Notam-se actualmente esforços positivos para levar a família ao lugar que sempre ocupou na vida das pessoas. Não pode esquecer-se a importância de ter uma mãe e um pai a quem se recorre sempre nas horas boas e nas mais difíceis. Reafirma-se a ternura de ver a continuação da vida no olhar de uma criança. É de sublinhar o carinho dos avós com missão específica de apoiar os pais na educação dos filhos. Voltar a dar à família esta missão é indiscutivelmente razão de esperança.É com alegria que se repara que há hoje uma melhor preparação para a constituição das novas famílias. Sobretudo as igrejas, católica e outras igrejas cristãs, fazem um esforço muito grande no acompanhamento dos jovens a partir dos primeiros namoros. Quando os jovens começam a viver um amor comprometido multiplicam-se cursos, sessões de estudo e tempos de oração, para que de uma maravilhosa relação afectiva possa nascer uma família cristã. A preparação para o casamento já se não preocupa exclusivamente com as características da festa. O grande acontecimento, o sacramento do Matrimónio, celebra-se na igreja com enorme exigência. Depois, estão a mudar os critérios da fecundidade. Há muitos casais novos com três e mais filhos o que é revelador da sua responsabilidade social. No tempo das normais crises, psicólogos e sacerdotes, ajudam a vencer as normais dificuldades do amor. Finalmente o processo educativo desenvolve-se de uma maneira responsável em muitos casos até à autonomia completa dos jovens que constroem a sua família. Podemos dizer que é um tempo de esperança. Assim sendo, longe de dizer mal das famílias, cada cidadão tem que contribuir à sua maneira para dar à família o lugar que lhe compete na construção de uma sociedade justa e fraterna.

Maio de 2017

Padre Vitor Feytor Pinto

Pároco da Igreja do Campo Grande

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Dia Internacional da Família

Dia Internacional da Família

 

O Dia Internacional da Família proclamado pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), celebra-se anualmente a 15 de maio. A comemoração desta data visa sensibilizar e promover a reflexão sobre questões relacionadas com a família, nomeadamente sobre as questões sociais, económicas e demográficas que as afetam.  Este ano o Dia Internacional da Família é dedicado ao tema: "Famílias, educação e bem-estar” – pretende-se destacar a importância do papel da Família e da Educação para a promoção do bem-estar dos seus membros, designadamente das nossas Crianças.

 

Neste Dia da Família é fundamental sublinhar que a grande aposta de futuro de qualquer sociedade que se quer responsável e participativa tem que ser na Família, onde mais do que pela palavra, mas sim pelo exemplo e vivência do dia-a-dia, se vivem os grandes valores da solidariedade, da partilha, do diálogo, da confiança, da compreensão, da responsabilidade, da honestidade e sentido do outro.

 

Na sociedade de hoje a nossa grande prioridade, toda a força do nosso entusiasmo e da nossa generosidade e toda a nossa disponibilidade tem que ser em relação à Família. A grande crise que hoje, se vive, é exatamente em termos dos valores na Família. É absolutamente urgente e deveria constituir a mais alta prioridade em relação à Criança é a definição e a efetivação de uma política global relativa à Criança.

 

Em relação a cada Família e a cada Comunidade é fundamental que se realize todo um trabalho de prevenção e de humanização do espaço em que vivemos.

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Para que a Família desempenhe uma função autenticamente preventiva em relação a problemas graves de âmbito social, precisa de organizar-se num ambiente estável, de grande disponibilidade entre si, de vivência dos grandes valores e de um clima de entreajuda. À agressividade do exterior terá que corresponder - em casa - a palavra amiga, o diálogo, o calor humano e a compreensão perante cada situação concreta. Mais do que todos os discursos moralistas é fundamental, no momento exato, um diálogo em clima de grande abertura. Mas o diálogo não pode acontecer, apenas no momento de crise. Tem que estar sempre presente na dinâmica de cada Família, envolver a criança, desde muito pequena - falar e deixar falar. Conversar sobre qualquer assunto e estar sempre atento às pequenas e grandes descobertas, às grandes e pequenas alegrias e desgostos do seu dia-a-dia.

 

E que cada um de nós não tenha dúvidas quando a pergunta é feita: Mãe, Pai, deste ao teu Filho, todos os dias o apoio, a compreensão e o carinho que ele precisava de ti? Fizeste da felicidade do teu filho a grande prioridade da tua vida, à frente do teu sucesso profissional ou de todos os teus projetos pessoais?

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É preciso sermos honestos connosco próprios e perguntarmo-nos: Que tempo dispensamos aos nossos filhos? Que assuntos debatemos com eles? Que tempo convivemos? Aproveitamos bem o tempo das refeições em comum, dos fins de semana, das férias? Porque não interessa tanto o tempo em que estamos juntos, mas a qualidade desse tempo. Não estar apenas com …, mas estar verdadeiramente em disponibilidade interior, num clima afetuoso de confiança.

 

Temos que necessariamente refletir sobre a sociedade em que vivemos, a Família em que as nossas Crianças e os nossos Jovens crescem, a Escola que lhes oferecemos e os valores que lhes transmitimos.

 

É cada vez mais urgente empenharmo-nos, todos pessoalmente e num trabalho coordenado com as diferentes instituições de cada comunidade – em criar condições sociais, ambientais e de lazer, que ajudem as nossas Crianças e Jovens a crescerem saudavelmente.

 

Mas estarão todos empenhados nisso?

Estamos a viver num tempo do ser ou do ter?

E que valores são transmitidos às nossas Crianças e aos nossos Jovens?

 

Damos como exemplo de vida a dignidade, a honestidade e uma fraternidade autenticamente vivida?

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Tanto a família como as restantes instituições que influenciam a educação das crianças e dos jovens podem atuar de modo disfuncional na medida em que deixando de ser a fonte de transmissão de valores não proporcionem às nossas Crianças instrumentos para viver em sociedade.

 

Qual é então o papel fundamental da família?

 

Encarando a família como elemento fundamental na formação do jovem e na sua progressiva caminhada para uma verdadeira autonomia, é primordial que esta assuma inteiramente as suas responsabilidades e não delegue nenhuma das suas funções em ninguém ou noutras instituições.

 

Mas é preciso sublinhar que também nós no IAC estamos profundamente empenhados nesse aspeto. A criança, mesmo antes de nascer, tem direito a ser amada, tem direito a ser desejada, tem direito à paz que lhe vem do amor. Como escreveu Maria Rosa Colaço, que tanto de belo e puro ofereceu às nossas Crianças, dizia ela:

 

Que os direitos da criança sejam mais que nas paredes e nos cartazes e nos poemas e nos relatórios, inscritos no coração dos Homens e cumpridos por todos os responsáveis.

 

Numa política de infância exige-se uma política integrada de proteção à Criança, ao Jovem e à Família. Porque uma política democrática de infância deve ser obra de toda a comunidade. É no apoio à família, não através de meras declarações de intenções, mas sim na sua autêntica dimensão, que se previnem situações de vulnerabilidade. A sociedade precisa de ser mais tolerante e tem de encontrar novas respostas para a Família e para a Criança. Respostas que reforcem a rede de contactos sociais que apoiem as Famílias. Na verdade, todos somos moral e socialmente responsáveis pelas nossas Crianças. Numa sociedade civil participativa, empenhada, viva e com alma, todos temos as nossas responsabilidades – família, escola, meios de informação e as diferentes instituições e organizações da comunidade, desde a segurança social, saúde, autarquias e as várias associações recreativas e culturais, para que todos juntos, possamos construir a civilização do afeto de que fala Agustina Bessa Luís.

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Com saber técnico e amor continuaremos a implementar a utopia de servir a Criança. E como dizia Matilde Rosa Araújo, no seu belíssimo poema sobre os Direitos da Criança:

… Este nascer e crescer e viver assim 

Chama-se dignidade. 

E em dignidade vamos 

Querer que a criança 

Nasça

Cresça

Viva …

A criança deverá receber

Amor,

O amor sereno de mãe e pai.

Ela vai poder

Rir,

Brincar,

Crescer,

Aprender a ser feliz…

 

Maio de 2017

Manuela Ramalho Eanes

Presidente Honorária

do Instituto de Apoio à Criança

 

 

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"Mas as crianças, Senhor, porque lhes Dás tanta dor, porque padecem assim?"

" Mas as crianças, Senhor, porque lhes Dás tanta dor, porque padecem assim? "

Recordei este lindíssimo poema de Augusto Gil quando pensei em escrever algumas palavras sobre um tema que me é muito querido: O COMPORTAMENTO ESCOLAR DAS CRIANÇAS FILHAS DE PAIS SEPARADOS.

Neste caso, a palavra escolar reporta-se ao ambiente da escola e não propriamente do aproveitamento escolar pois, irei falar de todas as idades incluindo das que ainda não frequentam a escola.

Falar de comportamento humano é sempre um perigo pois, como sabemos todos, varia de acordo com ambiente, com a maneira de ser de cada um, ….mas, vou só referir o comportamento das crianças dos quatro meses aos dez anos e cujos pais se separaram. Será que são felizes, mesmo assim? Será que refletem a separação? Ou pura e simplesmente a separação não afetou a sua vida?

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Pertenço a uma geração cujos princípios de vida se guiavam por conseguirmos ter uma Família para toda a vida. O conceito de Família era quase sagrado. Respeito pela Família, aprendia-se na escola (Salazar levou esse conceito ao limite quando " decretou" a trilogia " Deus, Pátria e Família" como guia da nossa vida coletiva). E essa maneira de pensar levava a que se " aguentasse " tudo em nome da Família. O contrato do casamento era fortalecido e sacralizado pelo complementar casamento religioso. Hoje, em contrapartida, esse contrato é posto em causa. As pessoas "juntam-se" e não querem contratos assinados (o que é um paradoxo pois, relativamente ao trabalho, todos desejam ardentemente um contrato efetivo…trabalho mais importante que a Família? Assim parece...) mas o verdadeiro pensamento era "estamos juntos pelos filhos ...". Hoje em dia isso é considerado pré histórico, apesar de a legislação contemplar que "tudo a bem da criança". E será que é isso que está a acontecer?

Há algum tempo aconteceu o seguinte diálogo à porta do Bambi, entre uma senhora que ia fazer trinta anos e o pai:

“Filha, o que queres que te ofereça nos teus anos?”

“Olha papá, o que eu queria tu não me podes dar.”

“Claro, se for uma casa ou carro…”

“Não, não...o que eu queria mesmo é que estivesses a viver com a minha mãe.”

Os pais da senhora separam-se quando ela tinha três anos de idade! Há vinte e sete anos!

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O que vejo no dia do colégio? Como se comportam as crianças cujos pais se separaram?

Aparentemente não se nota nada de diferente no seu comportamento, apesar de os pais, quando se separam terem sempre uma conversa connosco a chamar a atenção para o facto de se estarem a separar e por esse motivo pedirem um pouco mais de atenção com a criança pois, pode ter reações diferentes do que tem sido até esse momento. Isto é, os pais, por um lado afirmam que se separam por vários motivos e muitas vezes invocam que os filhos irão ficar melhor pois acabam-se as discussões. Mas, por outro, sabem que algo irá acontecer, que a vida das crianças se vai alterar. E ninguém é capaz de afirmar se será para melhor ou pior. O que sei é que as crianças quando choram, só chamam pelo pai ou pela mãe, por mais ninguém. E muito menos por coisas (isto porque há muitos pais que se desculpam por não terem mais tempo para os filhos porque têm de trabalhar muitas horas para darem uma vida melhor à família… mas, nenhuma criança chora porque quer ter um carro ou uma casa melhor… chora, porque quer ter a mãe e o pai mais tempo junto de si…). Então e como reagem as crianças à separação dos pais?

Quando são muito pequeninas não se dão conta em termos racionais do que se está a passar. Mas em termos afetivos já assim não acontece. Quando a separação acontece e um dos pais (normalmente o pai) começa a aparecer menos vezes, a criança, quando já fala, lá vai referenciando a figura paterna naqueles que aparecem. Ou em outros pais (quantas vezes levantam os bracinhos e dizem " pá, pá..." aos pais dos amigos…). Faz doer a alma…mas é a realidade… à medida que vão sendo mais velhinhos as reações, naturalmente são diferentes. Se o assunto é bem conduzido pelos pais, ou seja, se os pais reconhecem que é imperioso, que neste doloroso processo de separação dos filhos, o mais importante é que eles sofram o mínimo possível (o nada é falso) no ambiente do colégio isso reflete-se na sua conduta. No entanto, uma atitude é transversal a todas as crianças nesta situação: tornam-se mais introvertidas (parece que têm, eles, vergonha do que se está a passar em casa…) mais desatentas e até mais irritadiças. O comportamento com os colegas também se altera. Mais exigentes, dão a ideia que têm o mundo contra eles... no fundo, não percebem porque é que têm amigos cujos pais (mãe e pai) os vêm buscar à escola e eles só têm um deles que os vem buscar, levar para casa onde vão conviver com essa nova realidade que é, à mesa só contarem o que se passou na escola a um dos pais. Falta o outro. Essa é a palavra que pode definir a nova situação: FALTA!! E o que não está presente todos os dias, cada vez ficará mais ausente até que um dia, à pergunta "como correu a escola hoje?" a resposta começa a ser sempre a mesma " Bem". Aí a Falta já não tem remédio.

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Claro que o colégio deve ser informado do que se está a passar em casa, de modo a poder contribuir para amenizar essa nova situação. Enquanto educadores temos obrigação de apoiar as crianças (e os pais) a ultrapassar com os menores danos possíveis esta tormenta que se abateu sobre os seus corações e que eles nunca entenderão. Aos pais, só um apelo: quando pensaram gerar um filho, foi de certeza um ato de Amor. Não o transformem num ato de ódio. O sentimento entre os pais transmite-se à criança. Se amam os filhos, então não lhes falem de ódio ou com ódio seja de quem for. Digam-lhe palavras bonitas. Eles gostam e agradecem. E não se esqueçam que, para cada pai em particular, na sua relação com os filhos, a outra parte (mãe ou pai) é a melhor do mundo. Só assim podem e devem contribuir para que os vossos filhos sejam Felizes (dentro do possível).

Maio de 2017

Dorbalino Martins

Diretor do Externato O Bambi

 

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A Família

A Família

O mês de Maio é um mês cheio de significado para a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas e para todas as famílias! Logo no início, o dia da mãe; hoje, dia 15, celebramos o dia internacional da Família e no dia 31 celebraremos o Dia dos Irmãos.

 

Por isso, não há melhor altura para pensar naquilo em que o Direito verdadeiramente pode apoiar a família, no que pode interceder por ela.

 

Infelizmente, são muito poucos os incentivos à natalidade em Portugal. Pelo contrário, as famílias são penalizadas à medida que nascem os seus filhos. E quantos mais são os filhos, mais penalizada é a família.

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A actual situação demográfica do país é assustadora: desde 1982 que não há renovação de gerações em Portugal. Recentemente, no final de Abril, o Instituto Nacional de Estatística divulgou que “em 2016, Portugal manteve um saldo natural negativo situado em -23 409” (nascimentos menos óbitos). A este propósito é também interessante ter em conta que o último Inquérito à Fecundidade, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística, em 2013, em plena crise, indicou que as famílias portuguesas:

- tinham em média 1,03 filhos;

- consideravam que em toda a sua vida iriam ter em média 1,78 filhos;

- desejavam ter 2,31 filhos; e

- consideravam ainda que o ideal seria ter, em média, 2,38 filhos por família.

 

Estes números pedem que se faça algo! E o Direito pode ser um importante aliado da família. Mas as leis, como as políticas de apoio à família, têm que ser abrangentes, consistentes e duradouras.

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Numa recente alteração ao Código do Trabalho (Setembro de 2015), foram adoptadas medidas que podem proporcionar melhores condições às famílias que desejam ter filhos ou mais filhos. Entre outras medidas destacamos:

- o facto de a licença, entre os 120 e os 150 dias, poder ser gozada em simultâneo pela mãe e pelo pai;

- o aumento da licença de paternidade após o nascimento do filho, para 15 dias úteis;

- a opção que o pai ou a mãe - trabalhadores com filho com idade até 3 anos -, podem exercer de prestar trabalho em regime de teletrabalho, quando tal seja compatível com a actividade desempenhada, sem que o empregador se possa opor.

 

Mas esta última medida, por exemplo, muito interessante para a família, é de difícil implementação. Apesar de uma aparente obrigatoriedade, a letra da lei indica que foi deixado totalmente nas mãos da entidade empregadora (é o que sugere a palavra “compatível”) a aceitação de um pedido de prestação de trabalho em regime de teletrabalho. Poderiam ter sido enunciadas, a título exemplificativo, actividades compatíveis com a prestação de trabalho em regime de teletrabalho.

 

Ou seja, não basta intervir no plano meramente programático, através da consagração de princípios gerais. É preciso ser mais abrangente e estabelecer com rigor e precisão os termos em que as famílias poder gozar dos direitos reconhecidos, sem margem para interpretações divergentes ou pressões das entidades envolvidas (Estado, empregadores, etc.) E é imprescindível conceder às empresas os meios necessários para que estas e outras medidas sejam efectivamente utilizáveis e utilizadas.

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Creio que um dos grandes problemas para as famílias hoje em dia é a necessidade de conciliação entre trabalho e família. As soluções em termos de flexibilidade ou redução de horários, nomeadamente, trabalho a tempo parcial, apesar de reguladas, são muito escassas. É preciso apostar na família e conceder-lhe os instrumentos necessários para que possa crescer como deseja.

 

É esta a mensagem que a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas quer transmitir: a promoção da natalidade tem que ser um factor determinante na feitura das leis e tem que ser concretizada com a clareza e a prioridade que a actual situação impõe.

Maio de 2017

Rita Mendes Correia

Presidente da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas

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O fim do mito do filho “mochilinha”: primeiras reflexões sobre a Lei 13.058/2014 no direito brasileiro e sua aplicação como meio de prevenção à alienação parental

O fim do mito do filho “mochilinha”: primeiras reflexões sobre a Lei 13.058/2014 no direito brasileiro e sua aplicação como meio de prevenção à alienação parental

 

Conrado Paulino da Rosa[1]

 

Sumário: 1. Introdução; 2. Da guarda compartilhada no direito brasileiro e as alterações apresentadas pela Lei 13.058/2014; 3. Da guarda compartilhada como ferramenta eficaz de prevenção à prática da alienação parental; 4. Considerações finais; 5. Bibliografia.

 

 

  1. Introdução

Toda a vez em que, ao longo de nossa vida, realizamos a entrega de algo que é valioso para alguém, a utilização da expressão “guarde bem isso” é inevitável. Assim, podemos verificar que, desde a rotina diuturna até as mais complexas situações jurídicas, o que se encontra inserido no termo “guarda” é a necessidade de cuidado, atenção em relação a algo que necessita de especial atenção.

No âmbito do direito de família o sentido da terminologia e, acima de tudo, a sua finalidade, expressa a complexa rede de proteção de necessária aos cuidados das crianças e adolescentes. Os filhos, em razão de sua fase de desenvolvimento, necessitam de segurança e estabilidade para que, na vida adulta, possam repetir bons modelos parentais nos cuidados com sua prole.

Em 22 de dezembro de 2014, por meio da Lei 13.058, o Código Civil Brasileiro foi alterado nos artigos 1.583 e 1.583 para trazer novas diretrizes para a aplicação da guarda compartilhada. Nessa toada, o presente trabalho tem o escopo de apresentar as inovações da nova legislação e, principalmente, debater de que forma a sua aplicação pode ser um importante instrumento de prevenção a prática da alienação parental.

 

  1. Da guarda compartilhada no direito brasileiro e as alterações apresentadas pela Lei 13.058/2014

O Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002) entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003 e, em sua redação original, trazia apenas a modalidade de guarda como a atribuída a apenas um dos pais. Conforme a redação originária do CCB, no artigo 1.584, sem que houvesse entre as partes acordo, quando da dissolução da união, quanto à guarda dos filhos, será ela seria atribuída a “quem revelar melhores condições para exercê-la”.

Todavia, em 2008, a Lei 11.698 alterou a redação dos dispositivos 1.583 e 1.584 do CCB para, de forma expressa, apresentar a possibilidade da guarda compartilhada na legislação brasileira[2].

A partir de então o ordenamento jurídico passou a trabalhar com duas possibilidades de guarda após a dissolução de um relacionamento: de forma unilateral ou compartilhada. A primeira, de acordo com o artigo 1.583 § 1º CCB, é atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua, possuindo o guardião não apenas a custódia física do filho, mas também, o poder exclusivo de decisão quanto às questões da vida da prole. Por outro lado, guarda compartilhada trata da responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.

Assim, a guarda unilateral deveria ser atribuída ao genitor que revelasse melhores condições para exercê-la e, objetivamente, na antiga redação do § 2º do 1.583 do Código Civil, a partir da Lei 11.698/2008, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: (I) afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; (II) saúde e segurança e, por último, (III) educação.

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De outra banda, a Lei 11.698, ao estabelecer a possibilidade da guarda compartilhada em nosso ordenamento jurídico trouxe a seguinte redação ao artigo 1.584 § 2º do Código Civil: quando “não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”.

Todavia, o “sempre que possível” acabou sendo equivocadamente interpretado que o compartilhamento somente seria possível com acordo entre os genitores.[3] Ora, filhos de pais que mantém o diálogo e se entendem bem nem precisam de regras e princípios sobre guarda compartilhada, pois, naturalmente, compartilham o cotidiano dos filhos. A lei jurídica é exatamente para quem não consegue estabelecer um diálogo, ou seja, para aqueles que não se entendem sobre a guarda dos próprios filhos[4].

E, com isso, dúvida, destarte, inexistia quanto à possibilidade de compartilhamento da guarda ainda que se trate de uma demanda litigiosa (divórcio litigioso, dissolução de união estável litigiosa, guarda litigiosa de filhos etc). Isso porque, conforme Cristiano Chaves de Farias, em análise mais abrangente, infere que o palco mais iluminado para o exercício conjunto da guarda é, exatamente, o litígio, quando (e o cotidiano nas varas de famílias revela tal conclusão como inexorável) o genitor que detém a guarda utiliza o filho como um verdadeiro instrumento de chantagem, dificultando, de diferentes modos, o contato entre pai-não guardião e o filho[5].

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Justamente para evitar esse quadro, em 22 de dezembro de 2014, foi sancionada a Lei 13.058/2014[6]. Entre outras alterações, a nova legislação alterou a redação do artigo 1.584 § 2º do Código Civil Brasileiro, passando a estabelecer que: “mesmo quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será instituída a guarda compartilhada”.

A partir de agora o compartilhamento da guarda passa, de uma vez por todas, a ser regra geral nos litígios familiares. Trata-se de ótima medida para que a aplicação da guarda compartilhada deixe de ser uma utopia e, agora sim, seja uma efetiva realidade nos Tribunais brasileiros.

Por óbvio que bom senso e cooperação seriam sentimentos necessários em todas as etapas de criação dos filhos e, caso eles não estejam presentes, o Judiciário – uma vez chamado para interferir na ótica privada – deve resguardar esses anseios em prol daqueles que são titulares de proteção integral.

Outro ponto positivo da normativa é o esclarecimento do verdadeiro sentido do compartilhamento da guarda. Isso porque, desde a Lei 11.698 em 2008, o instituto foi reiteradamente confundido com a guarda alternada, que sequer tem possibilidade de ser fixada em nosso ordenamento jurídico. De forma equivocada, falava-se em divisão estanque do tempo em cada uma das casas, como se o filho passasse a ter sua mochila como o único lugar seguro na sua vida.

Imperioso ressaltar, nessa esteira, de que guarda e convivência são institutos distintos. Embora comumente confundidos, o primeiro diz respeito ao modo de gestão dos interesses da prole – que pode ser de forma conjunta ou unilateral – e o segundo, anteriormente tratado como direito de visitas, versa sobre o período de convivência que cada genitor ficará com os filhos, sendo necessária a sua fixação em qualquer modalidade de guarda.

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Com a edição da Lei 13.058/2014, em 22 de dezembro de 2014, em nada se alteram as possibilidades de determinação de guarda: ou ela será unilateral – ficando um dos pais com o poder de decisão a respeito das diretrizes da vida do filho – ou compartilhada quando, de forma conjunta, ambos os genitores tomarão as decisões quanto a escolaridade, saúde, lazer e demais deliberações que cabem aos pais e que são inerentes à vida de uma criança.[7]

Compartilhar, como o nome já sugere, significa partilhar com o outro, dividindo as responsabilidades pelo sustento, educação e convívio com os filhos de forma direta e conjunta[8].

Agora, a fixação de qual das residências a prole irá residir, ou seja, com qual dos genitores ficará a custódia física, é consequência direta do estabelecimento do compartilhamento da guarda, podendo acontecer, inclusive, segundo a nova redação do Código Civil, que os pais residam em Cidades diferentes. Nesse caso, a “cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos” (1.583 § 3° CC).

São evidentes as vantagens oriundas da guarda conjunta, já que prioriza o melhor interesse dos filhos, o poder familiar e a diferenciação das funções dos guardiões, não ficando um dos pais como mero coadjuvante na criação do filho, ao contribuir apenas com os alimentos e tendo como “recompensa” o direito à visitação[9].

Além disso, de acordo com o artigo 1.583 § 5º CCB, o tempo de convivência dos filhos deverá ser “dividido de forma equilibrada entre a mãe e o pai”. Dessa forma, evita-se que um dos genitores seja mero “visitante”, restrito a programas de fast food, cinemas e guloseimas, para uma lógica de corresponsabilidade e contato diuturno. Tal previsão atenta ao princípio constitucional da convivência familiar, previsto no artigo 227 da Carta Magna brasileira.

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Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá se basear em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar (1.584 § 3º CC). A atuação conjunta do Direito com o Serviço Social e a Psicologia, via perícia ou mediação de conflitos, faz com que ganhem todos os envolvidos e, principalmente, as crianças e adolescentes, uma vez que se reduzem, significativamente, as chances de esses filhos tornarem-se instrumentos de disputa em uma tentativa frustrada de compensar os traumas sentimentais com disputas judiciais.

A guarda compartilhada procura fazer com que os pais, apesar da sua separação pessoal e da sua moradia em lares diferentes, continuem sendo responsáveis pela formação, criação, educação e manutenção de seus filhos, seguindo responsáveis pela integral formação da prole, ainda que separados, obrigando-se a realizarem, da melhor maneira possível, suas funções parentais. O exercício dual da custódia considera a possibilidade de os pais seguirem exercendo da mesma maneira o poder familiar, tal como ocorria enquanto coabitavam, correpartindo a responsabilidade que têm no exercício das suas funções parentais e na tomada das decisões relativas aos filhos[10]

Conforme o jurista mineiro Dimas Messias de Carvalho[11], seu estabelecimento: a) Mantém e estreita os vínculos com ambos os pais; b) Evita a síndrome da alienação parental; c) Auxilia na criação e educação do filho; d) Mantém os vínculos com a família; e) Mantém as referências paterna e materna.

Nesse sentido, comungamos do pensamento de que a gestão conjunta dos interesses da prole, além de oferecer estabilidade e segurança aos filhos uma vez que calcada na corresponsabilidade pode, ao fim e ao cabo, ser um ótimo meio de acabar o exercício abusivo e egoísta da guarda por parte de um dos genitores.

 

  1. Da guarda compartilhada como ferramenta eficaz de prevenção à prática da alienação parental

Desde a brincadeira na primeira infância, invariavelmente, o ser humano, quando contrariado, costuma realizar práticas egoístas. Os meninos, quando perdem o jogo de futebol, voltam para a casa com a bola. As meninas, no mesmo sentido, não emprestam mais as bonecas para suas amigas quando, de alguma forma, seus anseios deixarem de ser atendidos.

A prática da alienação parental não deixa de ser, na idade adulta, a representação do mesmo comportamento. Isso porque, no desenvolvimento de nossa vida afetiva, costumamos inserir nossas expectativas, sonhos e projeções tal qual dos contos de fadas. Agora, quando eles não “viveram felizes para sempre...” aquele que se considera vitimado, muitas vezes, transforma o ser amado em seu maior algoz e irá privá-lo – assim como um dia já fez com seus pares na infância – daquilo que mais lhe é precioso: os filhos.

Dessa forma, entendemos a alienação parental como uma espécie de patologização do amor. O desamor não necessariamente precisa ser transformado em doença, mas sim, a sua má gestão tem um grande potencial para sua disseminação.

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A temática da alienação parental tem previsão legislativa desde 2010 por meio da Lei 12.318. Segundo acepção da normativa em comento considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este:

A legislação, no parágrafo único do artigo 2° da Lei 12.318/2010, apresenta ainda as formas exemplificativas de alienação parental, “além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros”: (I) realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; (II) dificultar o exercício da autoridade parental; (III) dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; (IV) dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; (V) omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; (VI) apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; (VII) mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.

Ainda, no artigo 3°, a normativa assevera que a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, “prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda”.

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Na verdade, o que se vê costumeiramente nos processos em que se estabelece a prática da alienação parental é de que “os filhos são cruelmente penalizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar a morte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipo de relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura” .

O genitor alienador, entre outros fatores, age com extrema facilidade e sutileza párea obstaculizar o direito convivencial do progenitor não guardião, encontrando rotas fáceis de acesso para atrair o filho para outras programações mais sedutoras do que a “tediosa” visita de um genitor que vem sendo, por igual, paulatina e religiosamente depreciado, e, na sua esteira, também os avós da criança, provenientes da linha parental do genitor não guardião[12].

Assim, entendemos que a edição da Lei 13.058/2014 chegou em boa hora ao estabelecer o compartilhamento da guarda enquanto regra geral. Isso porque a guarda jurídica compartilhada define os dois genitores, do ponto de vista legal, como iguais detentores da autoridade parental para tomar todas as decisões que afetem os filhos. [13] Sua proposta é manter os laços de afetividade, buscando abrandar os feitos que o fim da sociedade conjugal pode acarretar aos filhos, ao mesmo tempo em que tenta manter de forma igualitária a função parental, consagrando o direito da criança e dos pais[14].

A utilização da guarda compartilhada como forma de superação das limitações da guarda unilateral representa, além de tantos outros benefícios, um meio de evitar a síndrome da alienação parental[15]. Isso porque, em seu comportamento ardiloso e incessante, o alienador busca ser o único cuidador da criança, fazendo com que o contato com o outro genitor seja repudiado pelo rebento sem motivo concreto.[16]

 

  1. Considerações finais

O que antes era regra, em boa hora, passa a ter caráter excepcional, vez que se encontrando ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja exercê-la (artigo 1.584 § 2º CCB).

Com o final do mito dos filhos “mochilinha”, do novo papel de ambos os genitores, de visitantes a conviventes, e, acima de tudo, de que as Varas de Família expressem aquilo que uma criança, mesmo em sua ingenuidade, sabe melhor do que qualquer adulto: dois representam mais do que um.

 

  1. Referências bibliográficas

CARVALHO, Dimas Messias de. Adoção e guarda. Belo Horizonte: Del Rey, 2010,.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de direito e processo das famílias: novidades polêmicas. Salvador: Jus Podium, 2013.

FREITAS, Douglas Phillips. Guarda compartilhada e as regras da perícia social, psicológica e interdisciplinar: comentários à lei 11.698 de 13 de junho de 2008. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rolf. Síndrome da alienação parental: importância da detectação aspectos legais e processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

ROSA, Conrado Paulino da. “Nova Lei da guarda compartilhada”, Editora Saraiva, São Paulo, 2015.

SILVA, Daniel Alt Silva da. A vigência da Lei n. 12.318/2010: uma providência a garantir o direito fundamental à convivência familiar. In: ROSA, Conrado Paulino da; THOMÉ, Liane Maria Busnello. O papel de cada um nos conflitos familiares e sucessórios. Porto Alegre: IBDFAM-RS, 2014.

SOLDÁ, Angela Maria; OLTRAMARI, Vitor Hugo. Mediação familiar: tentativa de efetivação da guarda compartilhada e do princípio do melhor interesse da criança. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões, Porto Alegre,Magister, v. 29, ago./set.2012.

THOMÉ, Liane Maria Busnello. Guarda compartilhada decretada pelo juízo sem o consenso dos pais. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, n. 14.

 

[1] Advogado especializado em família e sucessões. Mediador de conflitos. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM / Seção RS. Doutorando em Serviço Social – PUCRS.  Mestre em Direito  pela UNISC, com a defesa realizada perante a Università Degli Studi di Napoli  Federico II, na Itália. Professor do Curso de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, em Porto Alegre e coordenador da Pós Graduação em Direito de Família e Sucessões na mesma instituição. Autor de obras sobre direito de família e mediação de conflitos. www.conradopaulinoadv.com.br. / contato@conradopaulinoadv.com.br

[2]Art. 1.583.  A guarda será unilateral ou compartilhada.

I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;

II – saúde e segurança;

III – educação.

Art. 1.584.  A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:

I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;

II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.

[3] “1. A chamada guarda compartilhada não consiste em transformar o filho em objeto, que fica a disposição de cada genitor por um determinado período, mas uma forma harmônica ajustada pelos genitores, que permita ao filho desfrutar tanto da companhia paterna como da materna, num regime de visitação amplo e flexível, mas sem que o filho perca seus referenciais de moradia. 2. Para que a guarda compartilhada seja possível e proveitosa para o filho, é imprescindível que exista entre os pais uma relação marcada pela harmonia e pelo respeito, onde não existam disputas nem conflitos; mas, quando o litígio é uma constante, a guarda compartilhada é descabida”. (Apelação Cível Nº 70059147280, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 16/04/2014)

“Guarda compartilhada pressupõe, de um modo geral, consenso entre os pais. É rara, se se pretende êxito assegurado, a modalidade da guarda compartilhada litigiosa, que será sempre uma guarda imposta e exercitada por duas pessoas”. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais - Apelação Cível nº 1.0024.09.704551-2/003 7045512-60.2009.8.13.0024 (1) – Relator Des. Wander Marotta - Data de Julgamento: 06/12/2011 - Data da publicação da súmula: 13/01/2012).

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 97.

[5] FARIAS, Cristiano Chaves de. Cabimento e pertinência da fixação de guarda compartilhada nas ações litigiosas. In: FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de direito e processo das famílias: novidades polêmicas. Salvador: Jus Podium, 2013, p.152.

[6] A legislação alterou os artigos. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil Brasileiro), para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação.

[7] Para um aprofundamento da temática sugere-se a leitura de ROSA, Conrado Paulino da. Nova Lei da guarda compartilhada, Editora Saraiva, São Paulo, 2015, 150 páginas.

[8] THOMÉ, Liane Maria Busnello. Guarda compartilhada decretada pelo juízo sem o consenso dos pais. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, n. 14, p. 17638.

[9] SOLDÁ, Angela Maria; OLTRAMARI, Vitor Hugo. Mediação familiar: tentativa de efetivação da guarda compartilhada e do princípio do melhor interesse da criança. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões, Porto Alegre,Magister, v. 29, ago./set.2012, p.76.

[10] MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 212.

[11] CARVALHO, Dimas Messias de. Adoção e guarda. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 71.

[12] MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rolf. Síndrome da alienação parental: importância da detectação aspectos legais e processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.90.

[13] GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 90-91.

[14] SOLDÁ, Angela Maria; OLTRAMARI, Vitor Hugo. Mediação familiar: tentativa de efetivação da guarda compartilhada e do princípio do melhor interesse da criança. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões, Porto Alegre, Magister, v. 29, ago./set.2012, p.78.

[15] FREITAS, Douglas Phillips. Guarda compartilhada e as regras da perícia social, psicológica e interdisciplinar: comentários à lei 11.698 de 13 de junho de 2008. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p.42.

[16] SILVA, Daniel Alt Silva da. A vigência da Lei n. 12.318/2010: uma providência a garantir o direito fundamental à convivência familiar. In: ROSA, Conrado Paulino da; THOMÉ, Liane Maria Busnello. O papel de cada um nos conflitos familiares e sucessórios. Porto Alegre: IBDFAM-RS, 2014, p. 376.

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Pensão de alimentos a ex-cônjuge

Pensão de alimentos a ex-cônjuge:

A Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, veio alterar o regime jurídico do divórcio alterando, também, o regime da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges.

A regra geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, depois do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, é a que se encontra enunciada no n.º 1 do artigo 2016.º do Código Civil:

«1 – Cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio

Desta regra geral, resulta que a obrigação de alimentos tem um caráter excecional e temporário, na medida em que a mesma tem como finalidade auxiliar o ex-cônjuge carecido de alimentos na satisfação das suas necessidades básicas, dando-lhe um mínimo de condições que lhe permita, nos primeiros tempos após o divórcio, reorganizar a sua vida, sendo esta obrigação devida pelo período de tempo necessário para o alimentando se adaptar à sua nova vida apoiando-se, assim, a transição para a sua independência económica.

Deste modo, o critério para atribuição de alimentos é o da necessidade do ex-cônjuge deles carecido.

Assim sendo, a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges não perdurará para sempre, na medida em que o beneficiário dos alimentos tem obrigação de providenciar ao seu sustento, esforçando-se para tal.

O dever de prestação de alimentos, após o divórcio ou após a separação judicial de pessoas e bens assume, pois, um caráter subsidiário e assenta no dever assistencial que perdura para além do casamento, dever este limitado nos termos supra referidos.

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No que respeita à determinação do montante de alimentos, importa ter em conta quanto previsto no artigo 2016.º-A do Código Civil, o qual enuncia várias circunstâncias a que se deve atender para efeitos de fixação da obrigação de alimentos, como sejam o tempo de duração do casamento, a colaboração que o ex-cônjuge carecido de alimentos prestou à economia do casal, o seu estado de saúde, a sua idade, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, a sua capacidade económica em vista de rendimentos que possa ter, a reorganização da sua vida familiar, etc.

Refira-se, ainda que, existindo uma obrigação de alimentos a filhos do cônjuge onerado com a obrigação de alimentos, esta prevalece sobre a obrigação de prestação de alimentos a favor do ex-cônjuge.

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Questão diferente é a de, após o divórcio, o cônjuge que mais contribuiu para os encargos da vida familiar, ter direito a exigir do outro uma compensação resultante do facto de ter renunciado, de forma excessiva, à satisfação dos seus próprios interesses em benefício da vida em comum, designadamente, deixando para trás a sua carreira profissional e, daí lhe advindo prejuízos patrimoniais relevantes.

Tal prestação compensatória pode ser pedida ao outro ex-cônjuge no momento da partilha dos bens do casal, salvo se entre ambos vigorar o regime de separação de bens, conforme resulta do artigo 1676.º do Código Civil.

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As alterações do regime jurídico em matéria de alimentos entre ex-cônjuges resultaram da opção legislativa de permitir a livre dissolução do casamento, liberdade esta que tinha também que se refletir no plano patrimonial do divórcio, levando à consagração do atual regime relativo à obrigação de alimentos entre ex-cônjuges a qual, conforme supra explicitado, foi fortemente reduzida a limites mínimos, pautando-se pelo critério da necessidade estrita do cônjuge carecido de alimentos.

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Falsas memórias e sugestionabilidade infantil nos contextos de alienação parental

Falsas memórias e sugestionabilidade infantil nos contextos de alienação parental 

Fernanda Molinari[1]

Modesto Mendes[2]

 

Introdução

Pela perspectiva psicodinâmica, a Alienação Parental é caracterizada por um conjunto sintomático, pelo qual o progenitor alienador modifica a consciência do seu filho, através de estratégias de atuação, algumas de natureza inconsciente, com o objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir seus vínculos com o outro progenitor (Freitas, 2014).

Na esteira desses entendimentos, a Alienação Parental consiste em programar uma criança para odiar, sem motivo, um de seus genitores até que a própria criança ingresse na trajetória de desconstrução desse genitor (Molinari & Trindade, 2014).

Todo este processo, inevitavelmente, provoca um desequilibrio emocional na criança, afetando o seu desenvolvimento. A criança vê nascer em si, contra a sua vontade, assente em motivos falsos, um sentimento de revolta, um ódio perante o progenitor, com todas as consequências comportamentais e perturbação interior que tal estado implica, constituindo um fator de perigo ou, pelo menos, de perturbação do equilíbrio emocional da criança (Sá; Silva, 2011).

 Alienação Parental: considerações sobre a sua psicodinâmica

A Alienação Parental, enquanto fenômeno social, psicológico e jurídico, tem sido uma constatação frequente no âmbito do direito de família. Esse ramo da prática forense, aliás, é aquele em que fenômenos relacionados à Psicologia Forense adquirem grande evidência, sendo que a Alienação Parental, até há poucos anos desconhecida, encontra-se hoje teoricamente identificada (Dias, 2010; Feitor, 2012; Freitas, 2014; Gardner, 1985; Podevyn, 2001; Madaleno & Madaleno, 2013; Trindade, 2014; Sá & Silva, 2011; Souza, 2014) e com seus efeitos jurídicos, no Brasil, regulados.

Logo após a separação, quando ainda o nível de conflitualidade é intenso, é comum surgirem problemas e preocupações com as primeiras visitas dos filhos ao outro progenitor, pois fantasias, medos e angústias ocupam o imaginário dos pais e dos próprios filhos, ainda não acostumados com as diferenças impostas pela nova organização da família (Trindade, 2014).

A ruptura conjugal afeta de diferente forma cada um dos elementos da família, obrigando à redefinição dos papéis (Machado & Sani, 2014). O divórcio não significa a extinção da família, mas antes uma reorganização e reestruturação de novas dinâmicas familiares, com diferentes graus de complexidade, e adaptação para cada um dos seus membros (Rosmaninho, 2010). Neste novo contexto relacional, o divórcio deverá ser entendido como um processo que ocorre no ciclo vital da família, alterando a sua estrutura, mas que não é o fim da família, apenas a transforma (Cano, Gabarra, Moré, & Crepaldi, 2009).

O conceito de Alienação Parental foi formulado pelo psiquiatra infantil forense Richard A. Gardner, professor de psiquiatria clínica no Departamento de Psiquiatria Infantil na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, a partir do seu trabalho como perito particular. Gardner (1985; 1991; 1998), durante a sua atuação profissional, verificou um grande número de pais – sobretudo mães – que tentavam excluir o outro genitor da vida dos filhos, implantando ódio ou intensificando ressentimentos existentes nos filhos com relação ao genitor não guardião (Barbosa & Castro, 2013).

O reflexo dessas ações nos filhos foi denominada por Gardner (1985; 1991) de Síndrome de Alienação Parental, a qual conceituou como “o transtorno pelo qual um progenitor transforma a consciência dos seus filhos, mediante várias estratégias, com objetivo de impedir, ocultar e destruir os vínculos existentes com o outro progenitor, que surge principalmente no contexto da disputa da guarda e custódia das crianças, através de uma campanha de difamação contra um dos pais, sem justificação”.

Baker e Darnell (2006), fazendo alusão ao conceito de Gardner (1985), referem que a primeira manifestação do fenômeno da Alienação Parental consiste na campanha de denegrir a imagem que a criança tem do outro progenitor, campanha essa sem justificação, a qual é acompanhada do processo de lavagem cerebral e doutrinamento da mente da criança.

Trata-se de abuso emocional de consequências graves sobre os filhos. Esse abuso traduz o lado sombrio da separação dos pais. O filho é manipulado para odiar o outro genitor, o que está em oposição ao seu desenvolvimento psicológico saudável (Fiorelli & Mangini, 2012; Ribeiro, 2007a; Venosa, 2012).

Victor Reis (2009), nos seus estudos sobre crianças e jovens em risco, refere que devido à criança ser dependente e indefesa, é o elemento no seio da família com maior vulnerabilidade, tornando-se assim um alvo fácil para todo o tipo de violência. A violência consiste, acima de tudo, num abuso de poder, quer seja físico, material ou emocional.

A propósito, o que está em causa não é a ausência de vinculação afetiva que o progenitor alienador mantém com o filho, mas a forma perversa como exerce a parentalidade, sendo que a criança é submetida há uma série de provas de lealdade, em que para não desiludir o progenitor com quem vive, é quase que obrigada a confirmar sua pretensão (Ribeiro, 2007b; Sá & Silva, 2011).

Com o intuito de definir o que é Alienação Parental, mediante a fixação e parâmetros para a sua caracterização, a par de estabelecer medidas a inibir sua prática, foi aprovada, em 26 de agosto de 2010, a Lei Brasileira nº 12.318, que dispõe sobre a alienação parental determinando, no artigo 2º, aquilo que juridicamente a conceitua.

Pela perspectiva legal brasileira, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

É importante ressaltar que a Alienação Parental não se configura apenas e tão somente com a prática de uma única conduta de forma isolada, mas sim de um padrão de condutas que se estenda ao longo do tempo com o objetivo de enfraquecer ou extinguir os laços parentais entre genitor e filho (Blanco 2008; Dias, 2013).

Falsas memórias e Sugestionabilidade na especificidade da Alienação Parental

Nos contextos em que esteja presente o fenômeno da Alienação Parental, o filho é convencido da existência de determinados fatos e levado a repetir o que lhe é informado como tendo realmente acontecido, sendo induzido a afastar-se de quem o ama. Nem sempre consegue discernir que está sendo manipulado e acaba acreditando naquilo que lhe foi dito de forma insistente e reiterada. Com o tempo, nem o alienador distingue mais a diferença entre verdade e mentira. A sua verdade passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantando-se, assim, falsas memórias (Dias, 2010; Trindade, 2014).

A questão assume particular importância quando a falsa memória é utilizada para fundamentar uma imputação de abuso sexual através de profissionais pouco familiarizados com a problemática da falsa memória. Em se tratando de crianças, a questão se torna ainda mais delicada, porque envolve aspectos como a sugestionabilidade e a satisfação consciente ou inconsciente do desejo do adulto que possui a tarefa de ouvir a criança, além de preconceitos e/ou da adoção de uma ótica setorial sobre esse complexo problema (Trindade, 2014).

Estudos relacionados com a sugestionabilidade infantil apontaram que a maior incidência para ocorrência de falsas denúncias de abuso sexual envolviam crianças com a faixa etária entre os 03 e 07 anos de idade, levando-se em consideração não possuírem desenvolvimento cognitivo suficiente para compreender a situação, sendo mais vulneráveis a manipulações e implantações de falsas memórias (Amendola, 2009; Brandt, 2009; Guazelli, 2010).

Amendola (2009, p. 138) realizou pesquisa com 10 pais acusados de abusarem sexualmente de seus filhos, relacionando seus achados aos estudos anteriormente realizados por Wallerstein e Kelly (1998), com relação à faixa etária das crianças supostamente abusadas:

Digno de nota é a associação entre o número de filhos por pai acusado e o número de filhos que efetivamente foram considerados vítimas de abuso. Em nossa amostra de pais, todos foram acusados de abusar sexualmente de uma única criança, não obstante a maioria ter dois ou mais filhos. A observação dos dados nos mostrou que apenas três pais tiveram mais de um filho com a mãe denunciante e que, nesses casos, a criança mais nova era o foco da suspeita de violência paterna, independentemente do sexo. Portanto, nos demais sete casos em que o pai tivera um único filho com a mãe denunciante, a acusação fica restrita a esta criança.

As crianças consideradas vítimas de abuso sexual encontravam-se na faixa de três a seis anos na ocasião da denúncia, sendo sete do sexo feminino e três do sexo masculino, o que nos remete aos estudos de Wallerstein e Kelly (1998) que abordam a possibilidade de haver uma relação entre a idade da criança e sua capacidade para ser sugestionada e formar um alinhamento com o genitor guardião, ou seja, quanto mais jovem for a criança, maior a chance de formar alianças intensas com a mãe-guardiã.

Para elucidar a sugestionabilidade infantil, Dias (2013), de acordo com os estudos de Piaget (1994), refere que a criança de tenra idade acredita que a ordem emanada de um adulto é “justa” e, portanto, deve ser obedecida. A partir de seis anos a criança embora reconheça uma ordem “injusta”, compreende que ainda assim deverá cumpri-la. E somente a partir de nove anos a criança compreende que pode desobedecer uma ordem quando a perceber injusta. Transpondo este contexto para a Síndrome de Alienação Parental, vê-se que o processo de formação do dever moral resta comprometido.

Silva (2011) refere que quando se iniciam os processos de Síndrome de Alienação Parental, e seu subsídio simbólico, as falsas acusações de abuso sexual, todo esse processo de estruturação da autonomia moral fica flagrantemente comprometido: se a indução do alienador a formular as falsas acusações ocorrer em tenra idade da criança, a criança tornará seu relato verossímil (para adquirir credibilidade), mas não terá a noção de que isto trará consequências prejudiciais à pessoa que está sendo acusada - pai/mãe alienado (a) –, e este processo perdurará por mais tempo: a criança considerará que somente as regras impostas pelo adulto alienador serão as “justas”, e perderá a noção de que autoridade e justiça são elementos independentes.

Tendo como referencia a Psicologia Forense e do Testemunho, outro aspecto importante a ser considerado centra-se no discurso da criança envolvida em uma falsa acusação. O relato é pautado em fatos que nunca ocorreram, padecendo de espontaneidade, muitas vezes denotando de imediato estar influenciado (Dias, 2013). Frequentemente, a criança repete frases presentes no discurso do progenitor alienador. Dobke (2001, p. 42) enfatiza que:

No relato, a criança abusada apresentará linguagem compatível com seu desenvolvimento e compatível também com uma visão infantil dos fatos. A linguagem utilizada pela criança será a sua linguagem. O uso de linguagem não compatível com a sua idade sugere influência de pessoa adulta. A visão sobre o abuso também estará em harmonia com a idade da vítima.

Nesta perspectiva, o genitor alienador não é capaz de individualizar, de reconhecer em seus filhos seres humanos separados de si, sendo incapaz de ver e tratar a situação de outro ângulo que não o seu (Calçada, 2008). A criança, neste contexto, é palco de projeções dos sentimentos do progenitor alienador, passando a viver, pensar em sentir de forma condicionada. (Dolto, 2005; Freitas, 2014). A criança resulta incapaz de habilidades identificatórias genuínas, pois é fruto de um discurso que remete sempre ao falso, eis que pautado na mentira, criando uma realidade que não é sua, e memórias de situações que nunca viveu (Molinari & Trindade, 2014).

 

Considerações Finais

A memória ajuda a definir quem somos. Na verdade, nada é mais essencial para a identidade de uma pessoa que o conjunto de experiências armazenadas em sua mente. A facilidade com que ela acessa esse arquivo é vital para que possa interpretar o que está à sua volta e tomar decisões. Com efeito, o que se reconstitui é aquilo que é passível de ser dito, falado e evocado: não os fatos, mas a memória dos fatos (Trindade, 2014).

Manter memórias intactas e depois poder invocá-las constitui um ato complexo, pois depende da condição do sujeito no tempo e no modo do registro mnêmico, no tempo e no modo do seu arquivamento, no tempo e no modo da sua evocação (Trindade, 2014). Essas operações não ocorrem em sequência, são processos interdependentes, que se influenciam reciprocamente. Lembranças do passado não reconstroem literalmente os eventos; elas constroem memórias influenciadas por expectativas e crenças da pessoa, com influência, inclusive, de informação do presente (Calçada, 2014).

Portanto, a memória é uma variável dependente das funções da subjetividade e da atividade psíquica do indivíduo. Dessa maneira, a memória pode ser um sentimento (um afeto agradável ou desagradável), um cheiro (sensopercepção), uma palavra (linguagem), um lugar (orientação), uma ideia (pensamento) ou comportamento (Trindade, 2014).

Cumpre, assim, face à pluralidade de elementos que compõem a matéria, a adoção de máxima cautela quando as falsas memórias surgirem no espectro de um fator de risco, a Síndrome de Alienação Parental, pois não é raro que a notícia de abuso sexual contra a criança seja a acusação máxima do alienador contra o cônjuge alienado (Molinari & Trindade, 2014).

Inegável que a psicologia, nesse campo, tem muito a dizer ao direito. Não apenas porque dividem o mesmo objeto, mas, principalmente, porque direito e psicologia necessitam estabelecer um diálogo permanente para que os frutos da justiça possam ser plenamente alcançados.

Por fim, reafirmamos a necessidade de um olhar multidisciplinar, não apenas para uma compreensão da conflitualidade que envolve adultos num processo de divórcio, mas, principalmente, para entender a criança, cuja proteção deve ser integral.

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=7yKQL99vorY

 

Referências

 

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[1] PhD em Psicologia Forense pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Mediadora de Conflitos pela CLIP. Advogada. Psicanalista Clínica. Docente e Supervisora no Curso de Formação de Mediadores de Conflitos da CLIP. Especialista em Direito de Família pela PUC/RS. MBA em Direito Civil e Processo Civil pela FGV. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Vice-Presidente da Associação Brasileira Criança Feliz.  Diretora do IBDFAM/RS. Coordenadora do Núcleo de Mediação em contextos de Alienação Parental, da CLIP. Sócia fundadora da AMARGS Associação de Mediadores, Árbitros e Conciliadores do Rio Grande do Sul. Membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança, na Universidade do Minho/Portugal.  E-mail: fernanda.molinari@outlook.com

[2] Graduado em Administração e Gestão de Empresas pela Universidade Católica Portuguesa. Pós Graduado em Gerenciamento de Projetos com ênfase em Tecnologia de Informação, pela PUC/RS. Empresário na área de informática para negócios. Especializado em Psicologia Forense, pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Diretor de Relações Institucionais da ABCF. Docente no Curso de Formação de Mediadores da CLIP. Autor do livro "História de Amor entre um Advogado e uma Juíza" e de artigos sobre Alienação Parental e Mediação de Conflitos. E-mail: modestomendes@hotmail.com

 

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Práticas alienantes familiares

Práticas alienantes familiares

A «síndrome de alienação parental» foi descrita em 1985 por Richard Gardner, para designar um sentimento de rejeição sistemático de uma criança em relação a um dos progenitores, por influência do outro, de modo a deformar a imagem da criança em relação ao progenitor «alienado» (denegrido, desprezado). Esta situação ocorre sobretudo nos casos de divórcio litigioso.

A formulação inicial de Gardner definia essa «síndrome» como constituída po vários elementos, a seguir enumerados:

- Campanha de difamação e ódio contra o progenitor-alvo;

- Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para justificar esta depreciação e ódio;

- Falta da ambivalência usual sobre o progenitor-alvo (ou seja ausência de afirmação da criança sobre aspetos positivos e negativos do progenitor em causa, como é habitual; nestes casos o pai visado só aparece como «mau»);

- Afirmações fortes de que a decisão de rejeitar o pai é só da criança (fenómeno "pensador independente");

- Apoio ao pai favorecido no conflito familiar;

- Falta de culpa quanto ao tratamento dado pela criança face ao progenitor alienado;

- Uso de situações e frases cedidas pelo progenitor alienante;

- Difamação não apenas do progenitor visado, mas direcionada também para a família e aos amigos do mesmo.

Nas situações de ruptura conjugal conflitual, o progenitor «alienante» entende o divórcio como uma guerra permanente, que tem de ser ganha em todas as circunstâncias, mesmo que o custo desse combate venha a ser a doença emocional do filho. A arma preferida é sempre a criança. A presença menos frequente do pai junto do filho impedem o progenitor alienado de se defender com êxito das acusações falsas. Os exemplos de alienação incluem a interferência constante em conversas telefónicas, a obstrução à presença em reuniões familiares, a crítica à tentativa de mostrar fotografias do pai visado e, sobretudo, a obstrução sistemática e continuada a uma presença continuada do progenitor criticado junto do filho.

De 1985 até aos nossos dias tem havido bastante controvérsia científica sobre a existência deste «síndrome». Muitos alegam a existência de uma verdadeira perturbação mental, outros defendem que tal não ocorre, ou sustentam que não existem ainda estudos sistemáticos desta situação.

A minha posição é a de que as crianças nada ganham com esse tipo de discussões. Haja ou não síndrome, as «práticas alienantes familiares», com escreveu Linares, são evidentes em muitas situações. Importa que todas as famílias as tenham presentes, defendendo os interesses das crianças.

O grande desafio é também para os Tribunais de Família e Menores. É condenável que se perca tempo a ver se há síndrome ou não, quando o importante para a criança é fazer uma avaliação contextual alargada e rigorosa, que permita detetar as práticas alienantes, protegendo a criança da exclusão de um progenitor.

Como já tive ocasião de denunciar no meu livro «O tribunal é o réu», os tribunais portugueses não procedem a uma avaliação sistémica das situações e muitos casos de grave alienação parental escapam a uma decisão correta, porque todos perdem tempo a discutir a «síndrome».

É urgente dotar os nossos tribunais de assessorias técnicas competentes e neutras, que ajudem os magistrados nas decisões e tornem os juízos de família locais onde se pratica justiça.

 

Daniel Sampaio

Professor Catedrático Jubilado de Psiquiatria e Saúde Mental

Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

 

 

           

 

 

 

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Doações entre marido e mulher

Doações entre marido e mulher

Um tema que não é muito falado, mas que, nem por isso, deixa de ter relevância, é o das doações efetuadas entre cônjuges.

Em que termos podem ser feitas, quais as suas restrições, qual a validade destas doações, são algumas das perguntas que se colocam e que importa esclarecer.

Desde logo, o primeiro aspeto a considerar, prende-se com o regime de bens do casamento pois, sempre que o regime da separação de bens resulte, não de uma escolha de ambos, mas de uma imposição legal - nos casos em que não foi precedido do processo preliminar de casamento ou nos casos em que, um dos nubentes tenha, à data do casamento, 60 anos - as doações, que sejam feitas entre marido e mulher, são nulas nos termos do artigo 1762º do Código Civil.

Importa, também, salientar que são proibidas as doações de bens comuns, resultando esta proibição do princípio da imutabilidade do regime de bens, com o qual se pretende proteger o património comum do casal, proteção esta que pode assumir relevância em matéria de salvaguarda dos direitos de credores de ambos os cônjuges.

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Sendo possível a doação entre cônjuges, uma das especificidades a ter em conta é a de que o doador pode, a todo o tempo, revogar a doação, sendo este direito irrenunciável, o que se explica pelo facto de se pretender evitar que, através de ascendente físico, intelectual ou moral, de um dos cônjuges sobre o outro, o cônjuge beneficiário da doação, possa extorquir - ao outro - bens conseguindo, por esta via, modificar o regime de bens em que casou.

Para acautelar este perigo de extorsão nas doações entre casados, a lei consagrou a livre revogação destas, sem necessidade de o cônjuge revogante ter que invocar qualquer justificação para tal, permitindo assim que, caso a doação tenha sido fruto da pressão do outro cônjuge, o doador possa destruir a doação feita, sem que o outro tenha que ter conhecimento de tal revogação e sem que se possa opor à mesma.

Este direito de livre revogação, encontra-se previsto apenas para as doações efetuadas entre casados, não separados judicialmente de pessoas e bens.

Com efeito, a separação judicial de pessoas e bens, apesar de não dissolver o vínculo conjugal, extingue o dever de coabitação entre os cônjuges e, quanto aos bens, a separação produz os mesmos efeitos que se produziriam com a dissolução do casamento.

Assim, numa situação de separação judicial de pessoas e bens, já não se verificam os riscos de extorsão que levaram à consagração legal da livre revogabilidade das doações entre casados, razão porque o direito de livre revogação se encontra previsto apenas para as doações entre casados, não separados de pessoas e bens.

Por completude quanto ao regime da livre revogabilidade previsto na lei, refira-se que, os herdeiros do cônjuge doador não podem revogar a doação que este haja feito.

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Outro aspeto a considerar é o de que as doações de um cônjuge ao outro, não se comunicam, seja qual for o regime de bens, o que equivale a dizer que, ainda que o regime seja o da comunhão geral de bens, o bem doado, por exemplo, pela mulher ao marido, será sempre considerado bem próprio deste.

Já quanto ao regime da caducidade das doações entre casados, a lei prevê, no artigo 1766º do Código Civil, três situações em que esta caducidade opera automaticamente:

- quando o cônjuge beneficiário da doação morra antes do doador, exceto se este confirmar a doação nos três meses seguintes à morte daquele;

- quando o casamento seja declarado nulo ou anulado;

- quando seja decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens.

Tomando em conta a redação da alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil, que refere que a doação entre casados caduca em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens «por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado» e, tomando em conta que, com a Lei nº 61/2008, de 31 de outubro de 2008 deixou de existir o divórcio litigioso fundado na culpa de um dos cônjuges, colocou-se a questão de saber se, não podendo o divórcio ocorrer por culpa do cônjuge beneficiário da doação - não podendo este vir a ser considerado cônjuge único ou principal culpado pelo divórcio -, a causa de caducidade prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil devia, ou não, operar em caso de divórcio.

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A resposta a esta questão encontra-se na previsão do artigo 1791º, nº1 do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela referida Lei nº 61/2008 que, a seguir se transcreve:

«1 – Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.».

Ou seja, por efeito do divórcio, os cônjuges perdem todos os benefícios, não carecendo o cônjuge de ser declarado, como era antes da entrada em vigor da Lei nº 61/2008, único e principal culpado. Um dos benefícios é o da doação que tenha sido feita entre casados.

Tomando em conta que, crê-se, por lapso, não foi alterada a redação da parte final da alínea c) do nº 1 do artigo 1766º do Código Civil, - que deveria ter sido adequada à nova redação do artigo 1791º do mesmo Código, que eliminou a referência ao cônjuge declarado único ou principal culpado -, deve ser considerado que esta se encontra tacitamente revogada na parte em que faz depender a caducidade da doação da exigência de o divórcio ter ocorrido por culpa do beneficiário da mesma sendo este considerado cônjuge único ou principal culpado.

Deste modo, a interpretação que deve ser feita da alínea c) do nº 1 do artigo 1766º do Código Civil é a de que, a doação entre casados, caduca sempre por efeito do divórcio. Neste sentido, encontramos o parecer nº 44/CC/2014, do Instituto dos Registos e do Notariado, datado de 18 de agosto de 2014. Também no sentido de que se deve fazer uma interpretação revogatória ou ab-rogante da alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil refere-se, a título de exemplo, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21 de fevereiro de 2017.

Conforme resulta do referido parecer, operando a caducidade por efeito do divórcio, terá que ser feito um novo registo de aquisição, pelo doador, invocando como causa a caducidade da doação, por forma a extinguir o direito na esfera jurídica do beneficiário da doação.

Caducando a doação, o doador pode determinar que esta reverta para os filhos do casamento, conforme previsão do artigo 1791º, nº 2 do Código Civil, com o que se pretende proteger os interesses dos filhos do casamento, fazendo-se reverter a doação a favor destes.

Seguindo de perto o aludido parecer nº 44/CC/2014 neste segmento, resulta que: «o registo a fazer, na sequência da caducidade da doação, deverá ser de aquisição a favor dos filhos do casamento, tendo por base a declaração de vontade do doador destinada a operar em face do divórcio, do efeito patrimonial extintivo em tabela e da existência de filhos comuns do dissolvido casal

As questões que acabámos de referir, apesar de não esgotarem o tema das doações entre casados, são as que, em termos gerais, se apresentam como mais relevantes e que, por isso, cumpre assinalar.

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O processo de inventário subsequente à dissolução da sociedade conjugal

O PROCESSO DE INVENTÁRIO SUBSEQUENTE À DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL

E quando chega ao fim?

 

O processo de inventário para partilha de bens, decretada que esteja a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio ou declarado nulo ao anulado o casamento, é tramitado, desde 2 de Setembro de 2013, nos Cartórios Notariais.

De facto, com a publicação da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (RJPI), concretizou-se a pretensão legislativa anunciada desde a Lei 29/2009 de 29 de Junho, de conferir aos processos de inventário uma tramitação primordialmente não judicial, vindo tal Lei a ser regulamentada pela Portaria nº 278/2013, de 26 de Agosto, posteriormente alterada pela Portaria nº 46/2015, de 23 de Fevereiro.

            Assim, o inventário para separação de meações, destinado a partilhar os bens comuns do casal, nomeadamente em caso de divórcio, à luz daquela Lei, passou a ser tramitado no Cartório Notarial sediado no município do lugar da casa de morada de família (nos termos do artigo 3º, nº 6, do RJPI; na falta desta, o cartório notarial competente é aquele que vem referido nos termos da alínea a) do número 5 do artigo 3º e, assim, o Cartório da situação dos bens a partilhar).

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Dispõe o artigo 1688.º do Código Civil que «As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento, sem prejuízo das disposições deste Código relativas a alimentos; havendo separação judicial de pessoas e bens, é aplicável o disposto no artigo 1795.º-A.».

Ora, havendo que proceder à partilha do património comum do casal e liquidação do passivo da sociedade conjugal, por cessarem aquelas relações patrimoniais entre os cônjuges, o processo adequado é o previsto nos artigos 79º e 80º do RJPI.

Este processo de inventário segue a tramitação prevista para o processo comum de inventário, nos termos do artigo 79º, nº 3, 1ª parte, com as especificidades decorrentes do fim a que se destina, da natureza do património a partilhar, bem como as aludidas nos mencionados artigos 79º e 80º e, assim, designadamente, com a possibilidade de o Notário, em qualquer estado da causa, poder remeter o processo para mediação, relativamente à partilha de bens garantidos por hipoteca, salvo quando alguma das partes expressamente se opuser a tal remessa.

Este processo tem uma tramitação nos Cartórios Notarias e, chegada a fase de ser proferida sentença homologatória da partilha, o mesmo é remetido para o Tribunal da Comarca do Cartório Notarial onde o processo foi apresentado, sendo aí distribuído (artigos 66º, nº 1, 3º, nº 7, 83º do RJPI e artigo 212º §7 do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho).

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O Tribunal de 1ª instância da Comarca do Cartório Notarial intervirá no processo de inventário, para além do momento em que deva proferir decisão homologatória da partilha (artigo 66º do RJPI), também para conhecer dos recursos que venham a ser interpostos da decisão do Notário (Cfr., designadamente, artigos 16º, nº 4, 57º, nº 4).

Intervenção diversa desta, que nada tem que ver com a intervenção na sequência da distribuição acima referida, é o conhecimento, pelos tribunais de 1ª instância das acções que lhes vierem a caber, sempre que, ao abrigo dos artigos 16º,nºs 1 , 17º, nº 2, 36º, nº 1 e 57º, nº3, seja caso de remessa dos interessados para os meios judiciais comuns.

Assim, a competência para a tramitação a cargo dos Notários, não abrange todos os actos a praticar no âmbito do processo de inventário, por um lado e, por outro, assiste às partes o direito de acção judicial para as questões que, atenta a sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito devam ser decididas nos meios comuns.

No primeiro caso, a intervenção judicial cabe ao Tribunal da Comarca do Cartório Notarial (artigo 3º, nº 7, do NRJPI). No segundo caso, a tramitação destas acções judiciais caberá aos Tribunais competentes de acordo com as regras gerais sobre a competência do artigo 59º e segs do CPC.

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Este novo regime legal trouxe alterações significativas, designadamente, no paradigma de intervenção do Juiz, com repercussão nos papéis atribuídos aos demais intervenientes processuais, como é o caso do Ministério Publico, cuja intervenção foi mitigada.

Para a sua análise, importa que não percamos de vista a génese deste regime e os pressupostos que lhe estão subjacentes.

Efectivamente, esta tramitação a «duas mãos», efectuada à luz de uma Lei em muitas matérias omissa e que convoca, assim, a aplicação do Código de Processo Civil (82º RJPI), importa, para além das dificuldades naturais da articulação entre os dois regimes, a dificuldade acrescida de interpretar o regime supletivo à luz de um novo paradigma da intervenção do Juiz.

Uma nota importa que se deixa a este propósito: a necessidade de não se perder de vista que a opção legislativa pela referida dualidade de intervenientes, pelo formato a atribuir ao processamento do inventário, designadamente, no que toca à intervenção do tribunal e à articulação entre a função notarial e a função jurisdicional, foi sendo sedimentada à luz da necessidade de expurgar qualquer anátema de inconstitucionalidade do diploma.

E esta questão coloca-se a propósito daquela que é a intervenção principal do Juiz no processo de inventário, constituída pela decisão homologatória da partilha.

Subjaz à decisão da partilha o despacho determinativo da forma da partilha, o mapa da partilha e as operações de sorteio, destinando-se a sentença a homologar tais operações.

Poderá ocorrer a não homologação, pelo Juiz, da partilha, para o que mencionará fundamentadamente os motivos determinantes da não confirmação dos actos anteriormente praticados, desencadeando, em sede notarial, a realização de novos actos de partilha ou a prática de actos que, por omitidos, impedem aquela homologação (previsão que não se mostra presente no RJPI e que encontrávamos enunciada na Lei 29/2009, de 29 de Junho: «A decisão de não homologação deve ser fundamentada e propor a forma da realização da nova partilha pelo conservador ou notário.», artigo 60º, nº 2, da Lei 29/2009, de 29 de Junho).

De facto, impende sobre o Juiz o dever de verificar a legalidade da partilha, do ponto de vista substantivo (cumprimento das disposições legais substantivas) e processual (nulidades e excepções de conhecimento oficioso), o que foi expressamente reconhecido no Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República de 12.12.2012, sobre a Proposta de Lei nº 105/XII, que antecedeu a Lei 23/2013, de 5 de Março, nos seguintes termos: «(…) algumas normas da Proposta suscitaram dúvidas quanto à sua constitucionalidade (…). O que está em causa é a alegada violação do princípio constitucional da reserva jurisdicional (…), não só porque pode entender-se que o juiz perde o controlo geral do processo, que passa para o notário, mas também porque este último passa a realizar verdadeiros julgamentos e facto e de direito, apreciando a prova documental e testemunhal apresentada, exercendo, nessa medida, verdadeiros poderes jurisdicionais, que a Constituição reserva exclusivamente aos tribunais. (…) essas indicadas dúvidas ou desconformidade podem suavizar-se ou ultrapassar-se com o poder de homologação da partilha que o art 66°. da Proposta confere ao juiz. Com o despacho que, a final, tem de proferir, o juiz deve verificar a legalidade de todos os atos praticados, validando-os e confirmando-os ou não e conferindo-lhes depois força de sentença. (…) Com a presente proposta, qualquer questão litigiosa ou indevidamente decidida pelo notário, acabará sempre e em última instância (por maioria de razão se as partes assim o desejarem com uma impugnação ou com um recurso) por ser apreciada e escrutinada por um juiz.»

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A atribuição aos Cartórios Notariais da competência para efectuar o processamento dos actos e termos do processo de inventário é, inequivocamente, a tónica dominante deste novo regime (artigo 3º).

O Notário, órgão próprio da função notarial, exerce as suas funções em nome próprio e sob sua responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha, cabendo-lhe praticar alguns dos actos que, na previsão do Código de Processo Civil, eram antes do RJPI praticados pelo Juiz.

Nesta medida, pela ordem porque deverão ser praticados num processado típico, cabe ao Notário: a nomeação do cabeça de casal (artigo 22.º), excepção feita aos casos em que se verifique a previsão do artigo 2083º do Código Civil; Tomar as declarações de cabeça de casal (artigo 24.º); Receber a relação de bens (artigo 25.º); Determinar a realização das citações (artigos 28.º e 29.º); Receber as oposição e impugnações ao inventário e reclamações contra a relação de bens ( artigos 30.º a 32.º), as respostas do cabeça de casal sobre as reclamações (artigo 35.º); Decidir as reclamações ou determinar que é caso de remessa para os meios judiciais comuns (artigos 35.º e 36.º); Resolver as questões suscitadas que possam influir na partilha e determinados os bens a partilhar; Designar data para a realização de conferência preparatória da conferência de interessados (artigo 47.º); Sendo caso, determinar a avaliação dos bens (artigo 33.º); Conhecer dos pedidos de adjudicação de bens (artigo 34.º); Presidir à conferência preparatória (artigos 47.º e 48.º); Designar data e presidir à conferência de interessados; Proferir despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha (artigo 57º, nº 2 ); Proceder à organização do mapa da partilha (artigo 59º); Decidir as reclamações contra o mapa da partilha (artigo 63º); Presidir ao sorteio de lotes, sendo caso de a tal proceder (artigo 64º); Proceder à emenda da partilha, havendo acordo de todos os interessados ou proceder à rectificação de erros materiais que a mesma contenha (artigo 70º); Proceder à partilha adicional (artigos 74º e 75º) e à partilha em casos especiais (Inventário em consequência de justificação de ausência – artigos. 77.º e 78.º - e Inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento – artigo 79.º).

Pode ocorrer, por determinação do Notário, a remessa para os meios comuns, a requerimento dos interessados ou oficiosamente.

No que a tal remessa diz respeito, importa atentar no que estabelece, desde logo, o artigo 16.º, nos termos do qual o Notário, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, pode entender que existem questões insusceptíveis de serem decididas no processo de inventário, caso em que poderá remeter as partes para os meios comuns.

Assim, o Notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade (artigo 16º, nº 1).

Para tanto, o Notário deverá fundamentar tal remessa, elencando os fundamentos porque as questões não devam se decididas no processo de inventário, concluindo pelo convite à interposição da acção para resolução da questão em apreço.

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Sobre a remessa para os meios comuns estatui, também, o artigo 17º, nº 2.

Nos termos estabelecidos neste preceito, poderá o Notário determinar a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes.

Caberá ao Notário, também aqui, efectuar um juízo de conveniência sobre a resolução da questão e a eventual redução das garantias das partes.

A estas duas normas acresce uma outra que, igualmente, prevê tal remessa.

Assim, tendo sido deduzida reclamação contra a relação de bens e sendo insuficientes as provas para as decidir, estatui o artigo 36º nos seguintes termos: quando a complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º, a decisão incidental das reclamações, o notário abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns (nº1). Nesta circunstância, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu ( nº2).

Cabe aqui a possibilidade de o Notário, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações (à semelhança da admissibilidade de resolução provisória prevista no artigo 17º, nº 2), com ressalva do direito às acções competentes (artigo 36º, nº 3).

Estamos aqui, novamente, perante a necessária realização de um juízo de conveniência.

Concluindo-se pela inconveniência da decisão incidental, por implicar redução das garantias das partes, decidirá o Notário que a resolução da questão deverá ser feita em acção autónoma, que acautele estas garantias, em consequência do que remete os interessados para os meios comuns. Também aqui a decisão do Notário deverá ser fundamentada, explicitando-se o motivo porque a decisão incidental poria em causa as garantias das partes.

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Por fim, encontramos a previsão da remessa para os meios comuns no artigo 57º, nº 3, que não prescinde, igualmente, da formulação de um juízo de conveniência e da necessária fundamentação da decisão de remessa para os meios comuns.

O momento adequado para a remessa para os meios comuns que encontra previsão neste preceito ocorre depois de realizadas as conferências – preparatória e de interessados-, e quando o processo se encontra na fase da partilha.

Cabendo ao notário proferir despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha, cabe-lhe igualmente resolver todas as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha.

A remessa para os meios judiciais comuns, que deverá ser devidamente fundamentada, constitui uma excepção à regra de que cabe aos Notários praticar os actos e termos do processo de inventário (artigo 3º, nº 1) e justifica-se apenas em circunstâncias excepcionais em que a resolução das questões a decidir careçam de uma indagação que se não compadeça com a natureza incidental da tramitação em inventário.

Estas acções deverão ser interpostas nos Tribunais competentes à luz das regras de repartição de competência do Código de Processo Civil, acções estas com total autonomia do processo de inventário.

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Detemo-nos, de seguida, nas duas conferências que poderão ocorrer no processo de inventário: a conferência preparatória e, não terminando o processo nesta conferência, nos termos permitidos pelo artigo 48º, nº 6, a conferência de interessados.

A conferência preparatória da conferência de interessados, com previsão nos artigos 47.º e 48º, é designada logo que resolvidas as questões suscitadas que sejam susceptíveis de influir na partilha e determinados que foram os bens a partilhar.

Destina-se esta conferência à deliberação sobre as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados; à indicação das verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio; ao acordo sobre a venda total ou parcial dos bens.

Esta conferência é, ainda, o momento próprio para os interessados deliberarem sobre a aprovação do passivo.

À semelhança do que já acontecia no regime do Código de Processo Civil, o inventário pode findar na conferência (artigo 48º, nº 6, do RJPI).

Neste caso, se o inventário findar por acordo na conferência preparatória, deverão os autos ser remetidos para tramitação judicial, por forma a que seja proferida sentença homologatória da partilha; Poderá equacionar-se, todavia que, havendo acordo, procedam as partes a um acordo de partilha que prescinda da intervenção judicial.

A conferência de interessados, prevista no artigo 49º, destina-se à adjudicação dos bens e tem lugar nos 20 dias posteriores ao dia da conferência preparatória, devendo a sua data ser designada pelo Notário.

A adjudicação dos bens em processo de inventário faz-se por acordo (afectando-se determinados bens a integrar o quinhão de cada um dos herdeiros) por sorteio (sendo os quinhões preenchidos pelos bens que venham a caber em sorte a cada um dos herdeiros) ou em resultado da venda dos bens, adjudicação esta que é o objecto da regulação do artigo 49º.

A adjudicação a que se refere o artigo 49º é efectuada mediante propostas em carta fechada, devendo o Notário, pessoalmente, proceder à respectiva abertura, salvo nos casos em que aquela forma de alienação não seja admissível, sendo que o valor a propor não pode ser inferior a 85% do valor base dos bens.

Se não forem apresentadas propostas em carta fechada, ter-se-á que proceder à venda mediante negociação particular, a realizar pelo Notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à venda executiva por negociação particular, na mesma medida em que se aplicara à venda por abertura de propostas em carta fechada as regras da venda executiva (artigos 50º, nº 2 e 51º, in fine).

Encerrada a conferência de interessados, eis-nos chegados ao momento da efectivação da partilha, que culminará com decisão homologatória da partilha (artigo 66º), momento em que os autos são remetidos para tramitação judicial.

Para além de proferir sentença homologatória da partilha, incumbe ao Juiz a prática dos seguintes actos no processo de inventário: a) Com previsão na Lei 23/2013, de 5 de Março: Homologação do acordo dos interessados que põe fim ao processo na conferência preparatória (48º, nº 7 e 66º, nº 1 RJPI); Decisão homologatória da partilha (66º, nº 1 RJPI); Decisão do recurso interposto da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios comuns (artigo 16º, nº 4 RJPI); Decisão do recurso interposto do despacho determinativo da forma da partilha (57º, nº 4 RJPI); Decisão, a final, sempre que as questões revistam especial complexidade, do pagamento de um valor superior de taxa de justiça, dentro dos limites estabelecidos na Tabela do RCP ( 83º, nº 1, RJPI); b) Com previsão na Portaria 46/2015, de 23 de Fevereiro (que Regulamenta o processamento dos actos e os termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março): Decisão sobre os valores dos honorários previstos para os processos de inventário de especial complexidade, bem como para os incidentes de especial complexidade (18º, nº 4 e 5, da Portaria 46/2015, de 23 de Fevereiro); Decisão da reclamação da nota final de honorários e despesas (24º da Portaria 46/2015, de 23 de Fevereiro); c) Com previsão no Código Civil: Designar cabeça de casal quando todas as pessoas referidas no artigo 2080º do Código Civil se escusarem ou forem removidas (2083º do Código Civil); d) Com previsão no Código de Processo Civil: Apreciação da legitimidade da escusa com fundamento em sigilo profissional e incidente de dispensa do dever de sigilo, nos termos do artigo 135.º, do Código de Processo Penal, junto do Tribunal da Relação respectivo, que dela deva conhecer (417º, nº 3, c) e nº 4 do CPC e artigo 135.º, do Código de Processo Penal); Decisão dos recursos interpostos das decisões dos Notário, nos casos em que cabe recurso de apelação (76º, nº 2, 1ª parte, RJPI e 644º CPC).

A sentença homologatória de partilha, uma vez transitada em julgado, põe, em regra, termo ao processo de inventário.

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Após o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, o Cartório Notarial, que retoma a tramitação do processo, emite a nota final de honorários e despesas e, após o pagamento da 3.ª prestação de honorários e de eventuais despesas em falta, procede ao encerramento do processo de inventário, competindo-lhe emitir a respectiva certidão (artigo 25º da Portaria citada).

Aqui chegados, tendo-se efectuado referência aos novos paradigmas da intervenção a cargo do Notário e do Juiz, importa referir que os advogados e solicitadores mantêm a intervenção que as normas do Código de Processo Civil já prescreviam pelo que, quanto a estes intervenientes, a intervenção mantém-se inalterada.

De facto, nos termos estatuídos pelo artigo 13º, é obrigatória a constituição de advogado no inventário se forem suscitadas ou discutidas questões de direito, bem como em caso de recurso de decisões proferidas no processo de inventário.

Assim, sempre que se interponha recurso ou se suscitem questões de direito, é obrigatória a intervenção de advogado.

Os advogados-estagiários, os solicitadores e as partes podem fazer requerimentos onde não se suscitem questões de direito – artigo 32.º, n.º 2 do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 82.º do RJPI.

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Concluindo se dirá que à beira de se completarem 4 anos sobre a entrada em vigor da Lei nº 23/2013 de 5 de Março, a prática dos Cartórios Notariais, a prática junto destes de actos pelos demais intervenientes processuais, como os advogados, os solicitadores e a intervenção do Juiz são e serão determinantes na efectivação da mudança preconizada por esta Lei.

Só pelos reflexos da aplicação deste novo regime se poderá aferir da bondade da opção legislativa, ditada pela necessidade de descongestionamento dos tribunais e pela necessidade de atribuir celeridade a um processo particularmente moroso.

Se a evolução legislativa no sentido de que os conflitos familiares saiam da esfera do judiciário - e bem sabemos que o processo de inventário se encontra, na maioria das vezes, eivado de conflitos familiares de intensidade acentuada -, não está isenta da criticas, aqui chegados, aprovada que está a Lei, importa que procuremos olhar para este novo regime recentrando a discussão e colocando-a ao serviço do cidadão.

 

«Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.»

 

                                                                                 Lisboa, 10 de Março de 2017

Carla Câmara

 

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