Relevância legal do papel dos avós na vida dos netos

Relevância legal do papel dos avós na vida dos netos

É indiscutível que o convívio entre avós e netos se reveste de importância afetiva e emocional, estreitamente ligada a um património familiar de memórias e tradições com tem grande impacto na construção da personalidade das crianças.

Na vida do dia-a-dia, fruto de necessidades e limitações que os pais enfrentam, os avós têm vindo a desempenhar, cada vez mais, um papel muito importante no quotidiano dos netos assumindo uma função de cuidadores que ultrapassa o papel que antes desempenhavam quando, por exemplo, acolhiam os netos durante o período das férias escolares de verão.

Hoje em dia, os avós vão buscar os netos à escola, asseguram a sua condução a atividades extra-curriculares, estudam com os netos e são a presença familiar e acolhedora em casa colmatando, desta forma, o vazio que a exigência laboral dos pais, crescentemente, cria.

Para além das atividades do dia-a-dia, não resta dúvida que a relação entre avós e netos, pela sua essência, se pauta por um acolhimento afetivo de grande doçura, de paciência, de sabedoria e tranquilidade.

A lei não é alheia a este papel determinante dos avós na vida dos netos, seja no plano afetivo, seja no plano do seu papel de cuidadores disponíveis para facilitar grandemente a vida dos netos.

O superior interesse da criança, conceito sempre presente nos processos relacionados com as crianças impõe, para que seja efetivo, o seu preenchimento casuístico pelo que, numa situação em que chegue ao conhecimento de um tribunal um caso que impõe uma decisão sobre a dinâmica familiar da criança com os avós, evidentemente que o tribunal tomará em conta o papel determinante que os avós sabem ter - e querem ter – na vida dos netos, até porque ninguém esquece as memórias da infância junto dos avós.

Já aqui difundimos que a lei consagra o direito de convívio entre avós e netos salvaguardando, assim, esta relação familiar tão especial porque, a verdade é que o superior interesse da criança não pode esquecer que, mesmo em processos judiciais, as crianças continuam a ser crianças, seja na sua infantilidade, seja na sua adolescência e, independentemente das zangas, dos conflitos e das imaturidades dos pais, continuam a ter direito a um património afetivo com os avós que lhes permita, mais tarde, até quando estes já partiram, lembrar docemente a intimidade, os passeios, as guloseimas dadas para lá das proibições, a alegria do estar e conviver, a segurança, o conforto e o auxilio sempre disponível. Por isso esta referência familiar, no seu todo, levou o legislador a proteger crianças e avós.

Sendo a presença dos avós na vida dos netos tão essencial e, ao mesmo tempo, tão natural - até fruto das exigências da sociedade atual -, sempre se pode também refletir qual poderia ser o papel a atribuir, do ponto de vista legal, aos avós, pais de uma mãe ou de um pai, que faleça na menoridade de uma criança.

Percorrendo as normas legais relativas ao exercício das responsabilidades parentais é, para nós, evidente que o progenitor que sobrevive e no qual se concentram as responsabilidades parentais numa situação de morte do outro progenitor não pode equiparar os avós desse ramo ao progenitor falecido. Os pais são sempre pais, com os seus direitos e com os seus deveres e é a eles que incumbe esse papel.

No entanto, não podemos deixar de admitir e de aceitar que, com o vazio afetivo instalado em virtude da morte de uma mãe ou de um pai, o outro progenitor sabendo e devendo valorizar o património afetivo da criança com os avós chame estes, de uma forma mais efetiva, a participar na vida da criança.

Lendo as normas dos números 1 e 4 do artigo 1906º do Código Civil, podemos encontrar uma porta de legitimação para um acordo entre o progenitor sobrevivo e os avós (pais do progenitor falecido) que permita uma participação ativa desses avós na vida da criança, sendo que tal participação não pode colidir com o exercido das responsabilidade parentais por parte do progenitor sobrevivo mas já poderá incluir a participação ativa dos avós nos atos da vida corrente da criança. Fica, contudo, vedada a delegação das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância cujo exercício compete aos pais.

Este acordo terá sempre que ser judicialmente homologado devendo o tribunal, verificando que o mesmo salvaguarda os concretos interesses da criança, aprovar a solução obtida no seio familiar até porque um acordo deste tipo, na sua execução prática, tenderá a reforçar os laços familiares e a dar conforto e segurança emocional à criança cujos superiores interesses importa salvaguardar.

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A conciliação entre a vida profissional e familiar dos pais e dos cuidadores: a Diretiva (UE) 2019/1158 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/6/2019

A conciliação entre a vida profissional e familiar dos pais e dos cuidadores: a Diretiva (UE) 2019/1158 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/06/2019

É sabido que a União Europeia deve apoiar os Estado-Membros na sua ação para efeitos de efetivação da igualdade entre mulheres e homens quanto às oportunidades no mercado de trabalho e tratamento no mesmo.

Conforme decorre do considerando 6 da Diretiva em causa, a conciliação entre a vida profissional e familiar permitirá a concretização da igualdade entre mulheres e homens, promovendo a participação daquelas no mercado de trabalho através de uma partilha equitativa de responsabilidades.

Com efeito, as mulheres acabam por ter um desafio quotidiano, por vezes esgotante, no que respeita à conciliação entre o seu papel de mãe e a sua carreira profissional e, também, quanto ao seu papel de cuidadoras no seio familiar, conduzindo a falta de tempo, o cansaço e a pressão a que, mulheres profissionalmente muito aptas, abdiquem da sua carreira, para acudirem às necessidades familiares.

Esta Diretiva propõe-se criar, nas legislações dos Estados-Membros, um quadro equitativo entre mulheres e homens, que permita corrigir desigualdades resultantes de desequilíbrios acumulados.

Sinteticamente, identificam-se os direitos individuais previstos nesta Diretiva, relacionados com:

- a licença de paternidade, a licença parental e a licença de cuidador;

-os regimes de trabalho flexíveis dos trabalhadores que são pais ou cuidadores.

No que respeita à licença de paternidade, definida como «a dispensa de trabalho remunerada para os pais … por ocasião do nascimento de um filho, com a finalidade de prestar cuidados;» e, com vista a promover a criação de um vínculo entre pais e filhos desde os primeiros tempos de vida, o artigo 4º da Diretiva prevê que os Estados-Membros deverão adotar medidas para que os pais (independentemente do estado civil ou situação familiar) possam usufruir de licença de paternidade de 10 dias úteis, a qual deverá ser gozada aquando do nascimento.

A Diretiva acolhe ainda a licença parental a qual corresponde à «dispensa de trabalho dos progenitores por motivos de nascimento ou adoção de um filho, a fim de cuidar dessa criança;».

Tomando em conta que a maioria dos pais não usa este direito ou opta por transferir uma parte considerável do mesmo para as mães, para os incentivar a gozar esta licença, os Estados-Membros deverão garantir a adoção de medidas que assegurem um direito individual de cada trabalhador a uma licença parental de quatro meses, a qual deverá ser gozada antes de a criança atingir uma determinada idade, tendo como limite máximo os oito anos, assegurando que poderão fazê-lo de forma flexível e que, pelo menos, dois meses de licença parental não poderão ser transferidos.

Já no que respeita à licença de cuidador esta traduz-se na «dispensa de trabalho dos trabalhadores para prestarem cuidados pessoais ou apoio a um familiar, ou a uma pessoa que viva no mesmo agregado familiar que o trabalhador e que necessite de cuidados ou apoio significativos por razões médicas graves…».

Para efetivar o direito a esta licença, os Estados-Membros deverão adotar as medidas que garantam que cada trabalhador terá uma licença de cuidador de, pelo menos, cinco dias úteis por ano.

Finalmente, no que respeita aos regimes de trabalho flexíveis, e para que os trabalhadores que são progenitores e cuidadores possam permanecer no ativo, acautela-se a adaptação dos horários de trabalho, quer às suas necessidades, quer às suas preferências pessoais.

Estes regimes correspondem à «faculdade de os trabalhadores adaptarem os seus ritmos de trabalho, nomeadamente pela utilização de regimes de teletrabalho, horários de trabalho flexíveis ou uma redução das horas de trabalho.»

Por fim, refira-se que só com a adoção de sanções «efetivas, proporcionadas e dissuasivas» é que se poderá prevenir a violação das normas que, em cada Estado-Membro, transpuserem esta Diretiva, devendo estas sanções ter caráter administrativo e financeiro, tais como coimas, indemnizações, ou outras.

Acredita-se que a transposição desta Diretiva será um passo efetivo na aplicação do princípio da igualdade de tratamento e de oportunidades dos trabalhadores, independentemente do seu sexo.

O tempo melhor responderá quanto à eficácia destas medidas!

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Maior acompanhado - a audição do beneficiário do acompanhamento

Maior acompanhado - a audição do beneficiário do acompanhamento

Conforme resulta do disposto no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, nos processos relativos ao maior acompanhado (regime que substituiu os institutos da interdição e da inabilitação), o juiz deve proceder sempre à audição, pessoal e direta, do beneficiário do acompanhamento.

Da redação desta norma resulta, em termos literais, que tal audição é sempre obrigatória.

Mas poderá tal audição ser dispensada, impondo-se a mesma apenas quando a diligência se afigure útil, podendo-se flexibilizar a literalidade da norma com o princípio da adequação formal?

Sobre esta questão já se pronunciaram, entre outras entidades, a Ordem dos Advogados que, no parecer emitido em maio de 2018 sobre a, então, proposta de lei relativa ao regime jurídico do maior acompanhado, enfatizou que a audição do beneficiário da medida de acompanhamento é de caráter obrigatório.

Com efeito, dilucida-se do próprio regime a razão de ser da obrigatoriedade da audição, mais concretamente, encontramos a resposta quanto às razões que determinam tal obrigatoriedade no corpo do artigo 898.º do Código Civil que expressa que esta audição, pessoal e direta, visa averiguar a situação concreta do beneficiário da medida de acompanhamento, permitindo também um ajuizamento (casuístico) das medidas de acompanhamento que se mostrem adequadas e necessárias.

Mais, conforme resulta da parte final do n.º 3 do artigo 897.º, o juiz, se tal for o caso, deslocar-se-á ao local onde o beneficiário da medida de acompanhamento se encontra, permitindo-lhe assim ter um quadro real e, em tempo real, da situação deste.

Trata-se, pois, de uma ponderação do legislador dirigida à concretização de uma finalidade que é a de o juiz estar em condições de decretar uma medida de acompanhamento que sirva, de facto, as necessidades do seu beneficiário evitando-se, desta forma, as interposições indiretas ou de pouca lisura de familiares ou pessoas próximas do beneficiário, com vista a influenciar o tribunal no sentido do decretamento de uma medida de acompanhamento que, afinal, não convém ao seu beneficiário mas que poderia convir a familiares, nomeadamente, no quadro patrimonial facilitando, por exemplo, o acesso ao património do beneficiário.

Esta audição obrigatória assume, pois, um caráter garantístico que bem se justifica e para o qual o legislador esteve desperto, indo ao ponto de se consagrar que, nessa mesma audição, o juiz pode determinar que, parte da audição do beneficiário, aconteça sem a presença de outras pessoas (n.º 3 do artigo 898.º do Código Civil).

Sendo esta audição obrigatória, resulta que a omissão da mesma, conduzirá a uma nulidade processual, com as consequências daí resultantes.

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Música – porta de entrada na vida.

Música - porta de entrada na vida.

Ainda antes de nascer, é o ritmo do coração da mãe que escutamos. E a perceção que vamos tendo dos sons “cá fora”, é isenta de palavras, antes rica em estímulos e sensações que vamos distinguindo como suaves ou fortes, fluídas ou bruscas, relaxantes ou tensas. Os mesmos elementos musicais sabiamente usados, depois, pelos nossos cuidadores. Aqui - como nos antípodas - a sinfonia ancestral de inflexões da voz de quem tenta captar a atenção de um bebé, é instintivamente feita – e só - de elementos musicais. As palavras não assumem, ainda, qualquer significado. E o bebé corresponde a esse convite à relação. Cada cultura dispõe de um repertório específico: do “Jardim celeste” à “Pintinha põe o ovo”, do “Alecrim” ao “Festinha gata” – cantigas e prosódias, moldadas pelo tempo e as gerações, envolvidas em toque e movimento, que operam a vinculação afetiva do bebé, base de todo desenvolvimento saudável. O rigor musical do CD do Mozart – que terá o seu lugar – não substitui a “qualidade afetiva da voz” do cuidador, mesmo quando este crê não ser afinado. Ao bebé, pouco importa.

Durante toda a vida e, de modo particular, durante a infância, a atividade musical é potenciadora da atividade cerebral, agilizando a comunicação entre os dois hemisférios, promovendo o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. É fundamental a escola facilitar à criança a exploração musical por uma escuta ativa, pela voz, pelo corpo, pelo espaço, pela relação com os seus pares, sempre assente na relação afetiva e segura com o educador ou o professor de música. A posterior exploração dos instrumentos – como extensão da voz e do corpo – vem possibilitar o desenvolvimento de competências de progressiva complexidade, mas com o cuidado de não se substituírem à voz e ao corpo – instrumentos primeiros da expressão humana e que subjazem a qualquer aprendizagem instrumental sustentada.

Não confundamos aprendizagem musical com a aprendizagem de “coisas a ver com” a música, do tipo identifica na imagem, o clarinete, ou com canções em que a letra se desdobra a ensinar, por exemplo, o sistema urinário, ou mesmo a leitura das notas musicais. Por inquestionável a utilidade destes “organizadores do conhecimento”, em momento nenhum concorrem para os benefícios desenvolvimentais emocionais, sociais e cognitivos associados à vivência, prática e aprendizagem musical.

A leitura de pautas musicais é um processo de associação simbólica, que está para a música como a leitura de textos está para a língua. Que desenvolvimento da língua se esperaria de uma criança a quem apenas fosse permitido falar aquilo que conseguisse ler? Pelo contrário, a leitura é introduzida quando a criança já domina a sua língua. Só então, a leitura se torna um meio de aprofundamento da sua aprendizagem. O mesmo deve passar-se com a leitura musical, para que não se substitua à efetiva e desejada apropriação da música, pela criança. A leitura como um “meio” e não como “fim” da aprendizagem musical.

Quantas as histórias de músicos a quem, tirando-lhes a pauta, se lhes tira a “música”?! Como se a música, que nasceu com a humanidade, se encerrasse na escrita musical, que apenas conta uns poucos séculos. E só na cultura ocidental. Em outras culturas, a complexidade da sua música nem sequer é possível de transcrever numa pauta. Prevalece a memória musical e o desenvolvimento auditivo – os tais que queremos para o desenvolvimento harmonioso do cérebro dos nossos filhos.

Quando optamos pela aprendizagem formal de um determinado instrumento para um filho, contamos que a par com a muito maior agilidade da sua atividade cerebral, surja o treino da persistência, da disciplina e da responsabilidade. Afinal, há que cumprir o estudo, repetido e regular, cumprir o horário destas aulas, algumas vezes, acrescentado ao de um dia de escola, e ainda, trazer consigo e cuidar do seu instrumento, lembrar-se das partituras e caderno – onde são sistematizados o seu estudo e as suas aulas. Se para uma maioria de crianças, esta aprendizagem formal é um desafio que as realiza artisticamente e uma vantagem para o seu sucesso académico, para outras, pode tornar-se um pesadelo e mesmo afastá-las da prática musical.

Se a opção por a criança aprender um instrumento assenta no seu défice de atenção, hiperatividade, ou simples imaturidade, a aprendizagem formal poderá vir engrossar o rol de procedimentos em que a criança está já em esforço para corresponder, nas disciplinas obrigatórias, e a que as aulas de música vêm expô-la, uma vez mais, com consequências na sua autoestima.

Uma opção alternativa, em que a criança aprenda o instrumento segundo repertório que lhe seja apelativo - sem compromisso com as peças do programa oficial - em que o professor dilua a sua dificuldade de gestão dos materiais, facilitando-lhe partituras sobressalentes - liberto do critério de avaliação que penalizaria o esquecimento destas - e em que a criança trabalhe motivada por apresentações aos seus pares ou família - em lugar de sob a tensão de uma prova de exame - poderá garantir-lhe igual benefício e progressão da sua aprendizagem musical, progressão no seu tempo de concentração e, a prazo, com a paciência dos pais e professor, a desejada gestão de tempo e materiais. E estará sempre a tempo, quando a maturidade lho permitir, de ingressar na aprendizagem formal.

Quando a aprendizagem musical propicia a prática em conjunto - num agrupamento instrumental ou num coro – dá lugar ao desenvolvimento de competências extraordinárias. A criança tem de complementar a sua proficiência musical com a dos colegas. A contenção e as esperas, enquanto outros tocam, para logo tocar em torrente, a um sinal do maestro. A interajuda, o respeito, a paciência, a empatia, a satisfação de contruir algo maior, pela conjugação do talento e empenho de todos. Todos respiram juntos. Estudos referem que até os batimentos cardíacos se sincronizam. É uma experiência incomparável! E pode ser uma forma daquela criança tímida, com pavor de se expor, se “diluir” entre os demais e concretizar a apresentação pública do seu trabalho e progresso.

E aos pais que declinam a prática musical dos seus filhos porque “ela sai a mim, que também nunca tive jeito” - Quando é que, no nosso dia a dia, a pretensa falta de “jeito” justifica não desempenharmos uma série de outras atividades? Porque não experimentarmos, participarmos em projetos musicais com os nossos filhos? Como quando os embalávamos a cantar.

Catarina Fragoso

Professora de Música

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Violência Doméstica – do Reconhecimento à Superação

Representações sociais na violência doméstica


A teoria das representações sociais é importante na análise ao fenómeno da violência doméstica, visto que busca compreender o ser humano considerando-o como sujeito construído a partir do que o determina evolutivamente, historicamente, culturalmente e socialmente, não esquecendo que é também ele que constrói a sua realidade social.
Percebe-se que a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de comportamentos vigentes em determinada sociedade e em determinado espaço temporal, desta forma, observa-se que a violência expressa as relações sociais, não apenas na dimensão das classes, mas também das pessoas. 


Violência Doméstica – do Reconhecimento à Superação

As representações sociais da violência doméstica relacionam-se com a construção sociocognitiva, com o agir de acordo com as representações sociais próprias e que orientam os comportamentos e práticas. 
Verifica-se que um ambiente familiar hostil e desequilibrado, pode afetar a aprendizagem, o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional de todos os intervenientes diretos e até indiretos, assim, percebe-se que a cultura exercida dentro de casa, irá estabelecer normas, valores e costumes, constituindo um dos fatores para o modo como os indivíduos se relacionarão de acordo com a distribuição de poder.


Estudos demonstram a existência de uma banalização da violência doméstica



Pelo facto de a violência acontecer de forma tão sistemática, passa a ser banalizada e considerada como norma, isto é, passa a ser culturalmente legitimada e há uma confusão geral sobre o que é defesa e o que é ataque, o que é proteção e o que é agressão.
Em algumas sociedades a violência faz parte do quotidiano, existindo uma grande permissividade social referente à violência nas notícias sobre crimes, assaltos, sequestros, os quais são ouvidos pela maioria das pessoas sem que reflitam sobre a influência que tais práticas têm nas suas próprias vidas, tornando a aproximação a tais situações, assuntos relativamente banais. 


No fenómeno da violência doméstica é essencial o estudo intensivo e o planeamento de estratégias de intervenção.  
A investigação permanente que é necessária e a análise crítica por profissionais especializados com a compreensão e intervenção nas situações de violência torna-se essencial pelo facto de esta transitar dialeticamente entre as relações sociais e as interpessoais. Porém, ambas consistem na negação de direitos fundamentais e universais como liberdade, igualdade e respeito à vida”(Almeida, 2005)





O contributo Relacional nas relações violentas

A conjugalidade: 

Quando pensamos numa relação a dois, numa relação conjugal, poderá ser imediata a ideia de fusão, união e partilha.
Estas componentes são realmente importantes, uma vez que a relação de casal é um prolongamento de aprendizagem adquiridas na infância, onde nos conhecemos e nos desenvolvemos ao nível das relações humanas.
Uma relação de conjugalidade permite-nos ter contacto com partes de nós, que na maioria das outras relações sociais, não são postas à “prova”. (Talvez por isto existam indivíduos violentos apenas na conjugalidade).
A relação romântica é uma peça fundamental de nós, do nosso autoconceito, fazendo realmente parte da nossa identidade. 

Pelas características acima referidas, as relações românticas podem ser de extremo crescimento, ou pelo contrário, de manutenção das dificuldades dos padrões adquiridos previamente na infância. Sendo assim, quando falamos de relações violentas ou abusivas, curiosamente (ou não) acentuamos as polaridades: tudo ou nada; amar ou odiar.
Desta forma, as ambivalências aumentam e a dificuldade em sair da relação ou de quebrar o padrão acentua-se. 

O autoconceito de cada um dos envolvidos fica também fragilizado e os seus “demónios” (refiro-me aos esquemas – Teoria dos esquemas de Young) são amplificados, tornando a relação mais abusiva e descontrolada.


Relações-violentas

Esquemas Precoces Desadaptativos nas Relações violentas

Os esquemas referem-se a memórias, emoções, sensações corporais e cognições à volta de um tema de infância como abandono, abuso, negligencia ou rejeição. Por isso, existe uma grande componente emocional e muitas vezes inconsciente. 

Nas relações românticas, parece existir uma tendência de encaixe (vitima-agressor) onde os seus esquemas são os mesmos, mas a sua estratégia de lidar com este é aposta (ex: esquema de inferioridade: agressor lida com este por compensação, logo exibe-se grandiosamente; vitima lida com o esquema por manutenção, sentindo-se e referindo-se inferior). Ora com estas características, amplificamos as dificuldades de ambos, a vítima sente-se ainda mais inferior e o agressor aumenta a sua tendência narcísica, não resolvendo ou melhorando o seu esquema desadaptativo. 

É por estas características que caso não se intervencione em ambos os envolvidos, a relação não poderá ser curada. A prova disto é as reincidências em relações violentas (mesmo que com outro agressor). É preciso ajudar ambos os envolvidos para que não recaiam nos seus padrões e possam usufruir de relações saudáveis. 

Catarina Pires
Psícologa Clínica




“Quase morri das lágrimas que não chorei”

A equação matemática do amor-próprio


Estás preso e escrevo-te sabendo que não sentes culpa. O Juiz impõe a sentença sob uma culpa que não te faz mossa. A prisão para onde te mandaram nada fará e eu, para mim escrevo, para exclamar uma nova vida. Antes de te dizer como te venci, repito no subconsciente, mil vezes por dia, estas palavras: 

“Embora tenha o universo,
nada posso afirmar ter,
pois o desconhecido não posso conhecer,
se me agarrar ao que já conheço”


Perdi o medo e procurei ajuda especializada. Libertei-me da crença que pedir ajuda é fraqueza. Sentada na poltrona que comprei para o nosso lar, chorei as lágrimas retidas no coração. A cada gota rompi a culpa e o medo que vivi quando me batias. 


Perdi o medo e procurei ajuda especializada.

Não, essas lágrimas não são aquelas que poderia ter chorado, cada vez que me feriste! As lágrimas do presente estão envoltas de amor-próprio e perdão. Aceito a realidade do passado e não vou em cantigas que tudo já passou. Nada disso! Sei que vou estar em constante processo de auto-cura e, sempre que a dor me atormentar, aceitarei que ser Pessoa é um desafio constante.

Na Clínica Learn2be, aprendi que o coachingé uma relação de parceria que revela e liberta o meu potencial de forma a maximizar o meu desempenho. É ajudar-me a aprender ao invés de me ensinar algo” (Timothy Callwey ).

Aprendi que, para te perdoar, tinha de vencer a luta com os meus fantasmas interiores. Estou grata e comemoro-me diariamente! Munida dos recursos certos e acompanhada em segurança em todo o processo.



Descobri que o amor-próprio tem uma equação matemática: é igual à soma de dois sorrisos e de duas lágrimas.


Agora sou capaz de me valer por mim mesma. No Learn2be deixei gratidão e um até sempre. Regozijo-me por ter agarrado o desconhecido do processo de coaching e, se entrei dilacerada em vergonha, à saída senti a serenidade em estado puro.

Tivesses tu, um dia, a sabedoria de saber sorrir e chorar, como eu agora sei. Um dia, pudesses tu libertar-te da mediocridade da raiva em que vives e desse sentimento que tudo e todos te devem. Mesmo que fosses hoje solto, sete anos antes da sentença, não teria medo de te encontrar. As paredes da prisão não se comparam à tua cela mental. Vai, liberto-te... desagarro-me ao que conheço de ti (e renasço)!

Robert Fisher escreveu o livro “O Cavaleiro da Armadura Enferrujada” de onde retirei o título e o excerto deste artigo. Desejo-lhe presença de espirito, coragem e sabedoria para voltar aqui, sempre que a mediocridade de alguém a/o maltratar.

Marque a sua sessão de coaching e num espaço seguro poderá aprender todas as ferramentas da equação matemática do amor-próprio!  

Pedro Miguel Figueiredo
Life Coach



E se a violência doméstica bater à porta de quem mais gosta?

E se a violência doméstica bater à porta de quem mais gosta?

Da sua melhor amiga, do seu melhor amigo, da sua irmã, do seu irmão, da sua mãe, do seu pai. Poderia ser qualquer um deles a sofrer de violência doméstica. Já pensou como poderia ajudá-los? 

A sua intervenção pode ser fundamental para que essa pessoa ganhe coragem para falar e peça ajuda para sair do terror em que vive todos os dias: a violência doméstica. Não se esqueça que a vítima lida com esta dura realidade sozinha e é essencial sabermos identificar os sinais. 

A violência doméstica é crime, mas não se deixe levar por emoções de raiva ou de revolta. O mais importante é poder ajudar a vítima, seja sua conhecida ou não, a procurar apoio, porque é ela quem deve sentir que quer ser ajudada. Todas as decisões são sempre da própria vítima. 


Quais os sinais mais comuns de quem sofre de violência doméstica?

É importante ter a consciência de que deixar uma relação violenta pode ser muito difícil e perigoso. E ajudar uma vítima de violência doméstica não significa resolver a situação pelos seus próprios meios. 

APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,destaca os principais sinais: 

A vítima está anormalmente bastante nervosa ou deprimida; cada vez mais isolada dos amigos e familiares; muito ansiosa sobre a opinião ou comportamentos do seu/sua companheiro(a); com marcas não justificadas ou mal explicadas como, por exemplo, nódoas negras, cortes, queimaduras. 

Ou se o namorado ou namorada do seu conhecido: desvaloriza e humilha-o à sua frente e de outras pessoas; está sempre a dar-lhe ordens e decide tudo de forma autoritária; controla todo o dinheiro e os contactos e saídas sociais do seu conhecido.


O que nunca deve dizer/fazer à vítima:

Dizer que vai ficar desapontado(a) se ela não seguir os seus conselhos ou se voltar para o(a) agressor(a); fazer comentários que possam culpabilizar a vítima por ser vítima; tentar fazer "mediação" entre a vítima e o(a) agressor(a); confrontar o/a agressor/a, porque pode ser perigoso para si e também para a vítima.

Atenção e sensibilidade são fundamentais, para cuidar de quem mais amamos, e cuidar do próximo. Um desconhecido ou um conhecido nosso pode estar neste momento a sofrer de violência doméstica; o vizinho a quem apenas dizemos “bom dia” pode estar a precisar da nossa ajuda. Estamos realmente atentos às outras pessoas? Ao que se passa mesmo à nossa volta?



Se cada um de nós estiver mais desperto e disposto a ajudar os outros, estará a contribuir para um mundo melhor, mais feliz.


Para contactar APAV:116 006 (chamada gratuita); apav.sede@apav.pt


Nicole Matias
Life Coach




Reconhecer a relação violenta


Reconhecer que se está numa relação violenta não é fácil. Identificá-la de uma perspetiva exterior é algo claro e objetivo, mas reconhecê-la a partir de dentro é bem mais complexo. Isto acontece porque quando se é vitima de abuso e violência, são desencadeados processos emocionais que dificultam o reconhecimento da situação. Um destes processos é a desculpabilização das atitudes abusivas, procurando justificações para estes comportamentos. Muitas vezes, a vítima culpabiliza-se pelos comportamentos violentos do parceiro, sentindo que os provocou por algo que fez ou não fez. Geralmente este sentimento surge porque a vítima acredita e interioriza a argumentação utilizada pelo agressor. Surge também o processo de negação, um mecanismo de defesa contra a dor emocional avassaladora, que leva a que a vítima desvalorize os sinais evidentes de violência e se agarre à esperança de que a situação vai melhorar.


Reconhecer a relação violenta

Para emergir desta confusão emocional que impede o reconhecimento da situação, é necessário desconstruir as crenças que a alimentam. O ciúme, a possessividade e o controlo não são sinais de amor, nem de preocupação. Estas atitudes nascem da insegurança e do desrespeito, são doentias e são o oposto do apoio emocional, confiança e companheirismo que caracterizam uma relação amorosa saudável. A manipulação, a intimidação, a humilhação e a agressão são injustificáveis, unicamente da responsabilidade de quem as comete e são inaceitáveis. Ninguém merece ser tratado assim e nada justifica viver numa sensação de medo permanente. As atitudes abusivas não melhoram com o tempo, pelo contrário, tendem a tornar-se cada vez mais violentas, sendo por isso importante terminar a relação o mais cedo possível.


Terminar a relação violenta

Depois de reconhecer que está numa relação violenta e decidir-se a terminá-la, deve contar a situação e pedir ajuda a familiares e amigos. Nesta fase, a prioridade é garantir a sua segurança, uma vez que terminar uma relação desta natureza envolve riscos elevados. Assim sendo, é essencial a ajuda da sua rede de apoio para garantir a sua segurança física e emocional.



Denuncie a situação às autoridades competentes, a violência doméstica é um crime e deve ser encarada como tal.


Também para esta etapa, peça ajuda a familiares, amigos e/ou grupos e associações de apoio que a podem acompanhar ao longo de todo o processo judicial.


Quatro passos para curar as feridas emocionais e recuperar o controlo sobre a sua vida


Segurança: Para além de estar fisicamente afastada do agressor, é necessário tempo para voltar a recuperar o sentimento de segurança. Para isto, é importante que passe mais tempo com as pessoas que gostam e cuidam de si, como a família e os amigos.

Luto: Reconheça que o processo de recuperação demora algum tempo. Dê a si própria o tempo necessário para fazer o luto do fim desse relacionamento, bem como das expectativas e desejos que tinha em relação ao mesmo.

Aceitação: Compreenda e aceite que vão existir dias bons e dias maus. É natural que por vezes seja invadida por sentimentos de raiva, arrependimento e tristeza. Nesta fase, é importante que fale dos seus sentimentos com quem se sentir mais à vontade: amigos, família, grupos de apoio ou com um terapeuta. Isto vai impedir que se isole, que seja invadida por sentimentos de solidão e vai ajudá-la a encontrar alívio emocional e a construir uma nova perspetiva sobre o que aconteceu.

Faça algo que a acalme e lhe dê satisfação: reaproxime-se de pessoas de quem se afastou, recupere ou descubra novos hobbies, pratique exercício físico, faça atividades lúdicas com os seus filhos. Escolha o que a faz feliz e invista a sua energia nisso.

Superação: A superação do trauma começa pela cura das feridas emocionais, através da reconstrução da relação que tem consigo e com a vida. É o tempo de recuperar a sua auto-estima, deixando de se sentir culpada pelo que aconteceu e despindo o papel de vítima. Passa pela compreensão de que o que lhe aconteceu não define o seu valor pessoal, que teve a coragem de se libertar do sofrimento e de que é uma pessoa válida e capaz de construir uma vida feliz para si. É a etapa de recuperar o controlo da sua vida, interiorizando que a sua história passada não define o seu presente, nem o seu futuro.



Fazer psicoterapia nesta fase é extremamente útil. A terapia acelera o processo de cura emocional e de construção de um novo projecto de vida.


Esta é também a etapa de criar novas atitudes e expectativas face às relações amorosas, para que reconheça e invista em relações felizes, evitando que volte a envolver-se numa relação tóxica. A psicoterapia permite que as mudanças desta fase sejam mais profundas e duradouras.

Se está numa situação de Violência Doméstica, não espere mais, marque a sua sessão de Psicoterapia ainda hoje.




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Cumprimento dos alimentos em espécie

Cumprimento dos alimentos em espécie

No âmbito dos processos de família, nomeadamente, na regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas aos menores é indubitável que a intervenção do Estado, via tribunal, deve restringir-se às situações em que, em face das circunstâncias do caso concreto, se mostra absolutamente impossível obter uma solução consensual quanto ao exercício das responsabilidades parentais que salvaguarde os interesses dos menores.

Sempre que tal acordo é passível de ser alcançado, a posição do tribunal é a de, verificando que estão assegurados e salvaguardados os superiores interesses dos menores, proceder à homologação do acordo alcançado.

Estando implementado e em curso um acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais, homologado pelo tribunal, pode acontecer que, por vicissitudes várias, os progenitores tenham necessidade de acordar que durante um período de tempo o acordo alcançado seja temporariamente suspenso, num ou noutro dos seus segmentos.

Por exemplo, pode suceder que, tendo ficado acordado que o menor fica a residir com um dos progenitores circunstâncias específicas da vida desse progenitor levem a que durante, por exemplo, três meses, o menor vá residir para casa do outro progenitor a tempo inteiro.

Nestas situações não se pode falar, em termos puros, numa alteração ao acordo homologado pelo que não se mostra também necessária a intervenção do tribunal para validar esta realidade pontual.

Uma modificação deste tipo poderá ter uma consequência imediata que importa ter em conta que é a de que que, o progenitor não guardião que, durante o lapso de tempo acordado, passa a ter o menor a residir consigo poderá deixar de estar obrigado a pagar a pensão de alimentos, na medida em que esta obrigação de alimentos, nos termos legais, pode ser cumprida em espécie, o que ocorre quando o menor reside com o progenitor guardião e este provê à sua alimentação, paga todos os custos inerentes à sua residência, vestuário, saúde, etc., cumprindo, desta forma, a previsão do artigo 2003.º, nº 1 do Código Civil.

Aliás, não pode deixar de se mencionar que, nos termos do artigo 2005.º, nº 2 do Código Civil os alimentos podem ser prestados em espécie.

Deste modo, não procedendo o progenitor não guardião ao pagamento de alimentos, de que é credor o menor, durante o lapso de tempo em que ambos os progenitores acordaram que o menor residiria com esse progenitor, não se pode e não se deve falar numa situação de incumprimento do pagamento da pensão de alimentos pelo que se, mais tarde, o progenitor guardião, fazendo tábua rasa desse entendimento, viesse a dar entrada em tribunal de um incidente de incumprimento (ou de uma execução) contra o outro por não pagamento da pensão de alimentos, o progenitor não guardião poderia defender-se alegando que cumpriu com a obrigação de alimentos em espécie.

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O poder-dever de correção dos pais na educação dos filhos

O poder-dever de correção dos pais na educação dos filhos

Da leitura do artigo 1877.º, n.º 1 do Código Civil, resulta que compete aos pais, no interesse dos filhos, dirigir a sua educação.

Desta previsão legal poderá retirar-se a legitimidade para os progenitores corrigirem os filhos, correção essa cujo conteúdo abrange o direito ao castigo dos pais, enquanto educadores, em relação aos filhos.

Este direito de correção, se exercido de forma excessiva, pode vir a integrar um crime de maus tratos, previsto e punido no artigo 152.º do Código Penal.

O exercício do direito de correção, na modalidade pedagógica de castigos físicos, tem que ser adequado a atingir um fim educativo, devendo ser exercido com essa intenção, na medida em que importa sempre compatibilizar tal com a dignidade humana da criança.

Preferencialmente, o poder de correção deve ser exercido com recurso ao exemplo e ao diálogo, não devendo ser privilegiados os castigos corporais os quais, se moderados, e tendo em vista um fim exclusivamente educacional e adequados à situação, são lícitos.

O problema surge quando se sai fora do campo dessas duas intenções e, a violência e a agressividade exercida contra a criança, excedem o âmbito do direto de correção não correspondendo já a um fim educativo mas sim a uma lesão do corpo ou da saúde da criança. Numa situação destas, entra-se no campo dos abusos e dos maus tratos os quais, conforme referido, assumem relevância penal.

A delimitação das situações de abusos é evolutiva pois estas estão marcadamente relacionadas com a evolução da própria sociedade.

Se, no passado, os castigos corporais utilizados pelos pais em relação aos filhos eram um assunto do núcleo familiar, a verdade é que, hoje em dia, a nota dominante é no sentido de que os castigos corporais devem ser utilizados com prudência e com carácter subsidiário, na medida em que se deve privilegiar tipos de correção que saiam fora dos castigos corporais.

No entanto, tal não equivale a dizer que, uma mãe ou um pai se podem sentir legitimados a ignorar comportamentos graves dos filhos os quais, pela gravidade que encerram, não se bastam com advertências verbais, impondo um grau de correção que implica o recurso a uma forma de castigo corporal.

Com efeito, nestas situações, a omissão de castigo levaria a que os pais se estivessem a demitir do dever de assegurar o saudável desenvolvimento intelectual e comportamental do filho e, por essa razão (a da omissão), poderem ser objeto de procedimento com relevância no âmbito do Direito tutelar de menores.

Os tribunais, quando chamados a decidir sobre questões desta natureza, devem ter cuidado e sensibilidade na medida em que, até mediaticamente, existe uma tendência para ampliar a qualificação da desproporção dos castigos corporais dos pais em relação aos filhos.

Em síntese, devem os pais corrigir os filhos, constituindo tal correção um dever a seu cargo mas, este poder-dever de correção e de educação tem que estar em consonância com a consciencialização de que não se pode infligir maus tratos aos filhos e que o exercício deste poder dever, para não merecer censurabilidade, tem que ter como finalidade única educação e o superior interesse do filho.

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O direito de usufruto e o direito de uso e habitação

O direito de usufruto e o direito de uso e habitação

Tanto o direito de usufruto como o direito de uso e habitação são direitos reais que permitem que, quem não é proprietário de um bem, o utilize e se sirva dele.

Enquanto que o direito de usufruto é um direito que permite ao seu titular que, desde que respeite o fim económico a que o bem em causa se destina, se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem, nomeadamente (tratando-se de um imóvel), arrendando-o o direito de uso e habitação (quando incida sobre um imóvel), apenas permite ao seu titular que o utilize para a sua habitação (e da sua família) na estrita medida das suas necessidades.

Com efeito, decorre do artigo 1484º do Código Civil que, a extensão do direito de uso se mede pelas necessidades do seu titular, bem como pelas da sua família. Resulta daqui que o direito de uso e habitação não confere ao seu titular um direito de gozo pleno sobre a coisa (como acontece com o direito de usufruto), na medida em que está estabelecido como limite a este direito o critério da necessidade do titular e da sua família.

Esta referência às necessidades da família do titular do direito, na determinação da extensão do direito de uso e habitação, não implica que este direito também pertença aos elementos da família do seu titular. Pelo contrário: o direito de uso e habitação pertence apenas ao seu titular o que implica que, extinguindo-se o direito de uso e habitação em relação ao titular, o mesmo acontece em relação aos membros da sua família que, até então, em virtude do direito deste, também habitavam o imóvel sobre o qual incidia o referido direito.

Outra das características distintivas em relação ao direito de usufruto, consiste no facto de ao usuário-morador estar vedada a possibilidade de alienar ou transmitir o direito que tem. Com efeito, dispõe o artigo 1488º do Código Civil que: «O usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo.»

Como refere Carvalho Fernandes em Lições de Direitos Reais, o direito de uso e habitação, ao estar condicionado à satisfação das necessidades pessoais e familiares do seu titular, não podendo ser alienado nem onerado, é um direito pessoalíssimo.

Ao não poder ser onerado, tal significa que o direito de uso e habitação não pode ser penhorado pelo que, caso exista uma execução pendente contra o titular de um direito de uso e habitação este direito não poderá ser penhorado sendo, nesta situação, um direito “inatacável”.

O mesmo não acontece se, o imóvel sobre o qual incide o direito de uso e habitação, tiver registada uma garantia real (hipoteca, penhora, arresto, etc) anterior ao registo da constituição do direito de uso e habitação. Nesta situação, caso a garantia registada seja executada e o imóvel em causa seja vendido em execução a verdade é que o direito de uso e habitação caduca.

Com efeito, dispõe o artigo 824º, nº 2 do Código Civil que: «Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.»

Em conclusão, o direito e uso e habitação, enquanto direito real com características que o tronam um direito pessoalíssimo é, de alguma forma, inatacável em sede de execução movida contra o seu titular mas, tal inatacabilidade não se mantém quando a execução é movida contra o titular do direito de propriedade do imóvel sobre o qual o direito incide e o registo da garantia executada é anterior à constituição do direito de uso e habitação.

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O levantamento do sigilo bancário em processo civil

O levantamento do sigilo bancário em processo civil

Não raras vezes, em processos a correr em tribunal, mostra-se necessário, para efeitos de prova de determinados factos, pedir que sejam juntos ao processo extratos bancários de contas pertencentes à parte contrária.

Nestas situações, uma de duas hipóteses se coloca: ou a parte contrária consente em tal e, neste caso, o tribunal pode ordenar à entidade bancária que proceda à junção de tais documentos ou, a parte contrária opõe-se a tal junção. Nesta última situação, estamos perante um caso em que se tem que decidir se se procede ao levantamento do sigilo bancário ou se, pelo contrário, este deve imperar e não se ordenar a junção de tais documentos.

É unanime o entendimento de que o sigilo bancário visa proteger, por um lado o normal e regular funcionamento da atividade bancária (o qual tem por base a confiança e a segurança das relações entre as instituições bancárias e os seus clientes) e, por outro lado, o direito à reserva da vida privada dos clientes das instituições bancárias. A disponibilização de extratos bancários de alguém, ainda que no âmbito de um processo a correr em tribunal, expõe muito da vida privada dessa pessoa pelo que, a pessoa a quem é requerido que proceda à junção de extratos bancários num processo, pode, legitimamente, recursar-se a fazê-lo.

Numa situação destas, não existe qualquer procedimento que possa “obrigar” a pessoa a juntar ao processo tais documentos.

O tribunal, valorará, em termos de prova tal conduta e poderá, por si, ordenar à instituição bancária, que proceda à junção da referida documentação.

Numa situação destas a instituição bancária poderá recusar tal junção, argumentando com a exigência de cumprimento do dever de sigilo bancário e com a falta de autorização do titular para a junção de tais documentos.

Efetivamente, dispõe o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, no seu artigo 78º que, os membros dos órgãos da administração ou fiscalização, os colaboradores, mandatários, comissários ou outras pessoas que prestem serviços a instituições de crédito, seja a título permanente, seja a título ocasional, não podem revelar factos ou elementos respeitantes às relações da instituição com os seus clientes de que tenham tomado conhecimento exclusivamente no exercício das suas funções.

Sem autorização do cliente e no âmbito de um processo civil, a instituição de crédito apenas poderá ser obrigada a prestar informação coberta por sigilo bancário após se ter ordenado o levantamento de tal sigilo, o que deverá ser feito através de um processo especial para o efeito, na medida em que esta situação não está incluída nas situações previstas no nº 2, do artigo 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, que elenca os casos em que a informação será disponibilizada independentemente do consentimento do cliente.

Em conclusão, sendo essencial para a boa decisão da causa, a junção de documentos cobertos por sigilo bancário e verificando-se a não autorização do titular do direito terá que ser impulsionado pela parte a quem tal interessa, ou pelo próprio tribunal, um incidente de levantamento do sigilo bancário o qual corre por apenso ao processo ao qual interessa o levantamento e que, após ser devidamente instruído, será remetido, para apreciação ao Tribunal da Relação.

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Contributo para um regime processual das acções de regresso das crianças ilicitamente deslocadas ou retidas (CH 1980)

Contributo para um regime processual das acções de regresso das crianças ilicitamente deslocadas ou retidas (CH 1980)


ANTÓNIO JOSÉ FIALHO
Juiz de Direito
Membro da Rede Internacional de Juízes da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e da Associação Internacional de Juízes de Família



RESUMO

Com o objectivo de garantir as obrigações decorrentes dos instrumentos internacionais relativos à deslocação e retenção ilícita de crianças, é feita uma análise, tão exaustiva quanto possível, de algumas das questões que deverão ser incluídas num regime processual aplicável a estas providências.

Este regime processual é uma evidência face às alterações propostas no âmbito da União Europeia mas também uma exigência decorrente da necessidade de garantir processos justos e equitativos que densifiquem e acautelem a prevalência do superior interesse da criança.

ABSTRACT

In order to ensure the obligations arising from international instruments related to the illicit transfer and non-return of children abroad, we’ve carried out an examination, as exhaustively as possible, of some of the concerns to be included in the procedural norms applicable to these matters.

This procedural regime becomes an evidence in front of the changes proposed within the European Union, but also a requirement arising from the need to ensure fair and equitable judgements that emphasizes and safeguard the supremacy of the best interests of the child.

DESCRITORES

Deslocação e retenção ilícita de crianças; regime processual; cooperação judiciária.

KEYWORDS

Illicit transfer and non-return of children abroad; procedural rules; judicial cooperation.



I - INTRODUÇÃO

A crescente mobilidade transnacional das pessoas e das famílias decorrente do desenvolvimento dos meios de comunicação e de transportes, do aligeiramento ou, nalguns casos, na abolição de restrições fronteiriças, dos desequilíbrios sociopolíticos ou económicos ou mesmo a globalização das actividades profissionais coloca os Estados perante um Mundo em transformação acelerada, caracterizada por uma plurilocalização das situações jurídicas que torna inevitável a adopção de mecanismos que respondam adequadamente a estes desafios.

A liberdade de circulação das pessoas, de estabelecimento da residência ou da obtenção de melhores condições de trabalho num Mundo cada vez mais global não podia deixar de ter como consequência o aumento das uniões entre pessoas de diversas nacionalidades, situação que não poderia também deixar de ser imune à pulverização do status familiae que marca as sociedades contemporâneas e torna mais complexas as relações familiares plurilocalizadas na medida em que exigem a intervenção de dois ou mais ordenamentos jurídicos na regulação dos seus diversos aspectos.

O desmembramento desta célula familiar implica, não raras vezes, o conflito quanto ao destino dos filhos ou à manutenção da convivência familiar, marcado por uma intensa carga emocional ou por fenómenos patológicos de intenso conflito, concretizando-se em comportamentos que impedem a preservação ou o incremento dos laços afectivos com um dos ramos da família da criança.

Ciente desta realidade, a comunidade internacional, atenta às novas complexidades e dificuldades introduzidas nas relações familiares plurilocalizadas, estabeleceu como um dos direitos da criança e como uma referência fundamental na densificação do seu superior interesse o direito à reunião familiar em caso de separação dos pais, obrigando os Estados a adoptar ou a aderir a mecanismos bilaterais ou multilaterais destinados a impedir a deslocação ou a retenção ilícita de crianças (artigo 11.º da Convenção dos Direitos da Criança).

Nas últimas décadas, a protecção da família e da infância tem determinado um fenómeno de internacionalização do direito da família e das crianças com o objectivo de ultrapassar a descontinuidade ou relatividade espacial das situações jurídico-familiares plurilocalizadas e permitir uma unificação progressiva de regras que escapam ao domínio exclusivo da soberania de um Estado.

É neste contexto que foi concluída na Haia, em 25 de Outubro de 1980, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças [1], produto dos trabalhos da 14.ª sessão da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado [2], com o objectivo essencial de assegurar o regresso imediato de crianças deslocadas ou retidas ilicitamente de um Estado Contratante [3] (designado por Estado onde a criança tinha a sua residência habitual [4], fazer respeitar efectivamente nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita que existiam naquele Estado (da residência habitual) [5] e, paralelamente, evidenciando o princípio da confiança e do respeito mútuo pelas decisões dos diversos Estados, através da institucionalização de um mecanismo de colaboração de autoridades centrais e, mais recentemente, através das redes judiciais e do estabelecimento de comunicações judiciais directas.


[1] Designada de Convenção da Haia de 1980.

[2] Até ao momento, a Convenção da Haia de 1980 foi subscrita por 100 Estados e constitui, por isso e indubitavelmente, um dos instrumentos internacionais adoptados no seio da Conferência da Haia que, até ao presente momento, conheceu maior êxito, sobretudo pelo consenso gerado em torno da deslocação e retenção ilícita de crianças, bem como pela inegável simplicidade técnica e actualidade da globalidade do seu texto, justificando um vasto leque de Estados Contratantes, bem como de novas adesões. Apenas entre 1995 e 2007, resultaram da Conferência da Haia trinta e nove instrumentos internacionais em diferentes áreas do direito internacional privado, designadamente no direito da família e das crianças, direito comercial, direito das obrigações e no direito processual civil.

[3] Portugal é, desde 1 de Dezembro de 1983, um dos Estados Contratantes da Convenção da Haia de 1980 (Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de Maio).

[4] A residência habitual da criança corresponde ao local que revelar uma determinada integração desta num ambiente social e familiar, tendo-se em conta a duração, a regularidade, as condições e as razões da sua permanência no território de um Estado e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade da criança, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado.
Essa presença não pode ser temporária ou ocasional pois deve evidenciar um carácter estável que a permita considerar como o centro permanente ou habitual dos seus interesses.
Considerando as circunstâncias especiais de uma criança em idade lactente que se encontra com um dos progenitores apenas há alguns dias num Estado Contratante diferente do da sua residência habitual, para o qual foi deslocada, deverão ser tidas em consideração: a duração, a regularidade, as condições e as razões da estadia no território desse Estado Contratante e da mudança desse progenitor para o referido Estado; a idade da criança, as origens geográficas e familiares do progenitor, bem como as relações familiares e sociais mantidas por esta e pela criança no mesmo Estado Contratante.
Cabe ao órgão jurisdicional nacional do Estado respectivo fixar a residência habitual da criança tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas para cada caso (neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 2009, proc. n.º C-523/07, Caso A.; Acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Dezembro de 2010, proc n.º C-497/10 PPU, Caso Barbara Mercredi vs Richard Chaffe).

[5] Artigo 1.º da Convenção da Haia de 1980.


A deslocação ou retenção ilícita da criança ocorre quando (artigos 3.º, 4.º e 5.º da Convenção da Haia de 1980):

a) Tenha havido uma deslocação de uma criança com menos de 16 anos [6], de um Estado onde tinha a sua residência habitual, para outro Estado;

b) A deslocação ou retenção da criança tenha sido efectuada com violação do direito de custódia atribuído pela lei do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual;

c) O direito de custódia ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da deslocação ou retenção, ou devesse estar a ser exercido, se não se tivesse verificado a deslocação [7].

A Convenção da Haia de 1980 impõe aos tribunais que ordenem o regresso da criança ao Estado da sua residência habitual se esta foi deslocada ou retida em violação de um direito de custódia exercido de forma efectiva, quer este resulte de uma atribuição de pleno direito, de uma decisão judicial ou administrativa ou de um acordo vigente segundo o direito daquele Estado, a menos que:


[6] Este instrumento internacional não é aplicável quando a criança tenha mais de 16 anos de idade (artigo 4.º, § 2.º da Convenção da Haia de 1980).

[7] Prescinde-se, assim, da discussão em torno da residência da criança (ou do direito de decidir sobre o lugar da sua residência) a qual é relegada para o processo próprio, junto dos tribunais do Estado da residência da criança, uma vez restabelecido o status quo ante (artigos 16.º e 19.º) (Pinheiro, Luís Lima, “Deslocação e Retenção Internacional Ilícita de Crianças”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 74, 2014, Volume III/IV, Jul.-Dez. 2014, p. 683; Oliveira, Elsa Dias, “Convenções Internacionais e direito comunitário no domínio do direito de menores”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 1, 2.º semestre de 2004, pp. 53-76).


a) A parte que pede o regresso da criança não esteja a exercer, de maneira efectiva, o direito de guarda ou tenha consentido ou concordado com a deslocação ou retenção (artigos 3.º, alínea b) e 13.º, alínea a) da Convenção);

b) Exista um grave risco de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável (artigo 13.º, alínea b) da Convenção);

c) A criança tenha atingido já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas objecções ao regresso (artigo 13.º, alínea b) da Convenção);

d) O pedido para o regresso não tenha sido apresentado no Estado em que a criança se encontra dentro do período de um ano após a deslocação ou retenção ilícitas e a criança esteja já integrada no seu novo ambiente (artigo 12.º da Convenção); ou

e) O regresso da criança não seja consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (artigo 20.º da Convenção).

As excepções que poderão justificar uma recusa de regresso ao abrigo do artigo 13.º da Convenção da Haia de 1980 deverão ser objecto de uma interpretação restritiva [8].

Adicionalmente, a Convenção da Haia de 1980 propõe-se ainda tornar efectivos os direitos de visita reconhecidos no ordenamento de um dos Estados Contratantes, permitindo aos tribunais do Estado em que a criança se encontra organizar ou proteger esse direito de convivência e assegurar o respeito pelas condições a que o exercício possa estar sujeito, tornando desnecessária a obtenção de uma nova decisão adaptada às novas circunstâncias, mediante o ajustamento apropriado junto dos tribunais do Estado competente para a sua execução, assegurando, assim, o direito da criança à convivência com o progenitor que não reside consigo e com as pessoas com quem tenha relações afectivas profundas ou próximas, de modo a não aliar uma deslocação do seu modo de vida a um afastamento prolongado ou definitivo (artigos 7.º, alínea c) e 21.º da Convenção da Haia de 1980) [9].


[8] Pérez Vera, Elisa, Rapport explicatif sur la Convention de La Haye de 1980 sur l'enlèvement international d'enfants, disponível em https://www.hcch.net/es/publications-and-studies/details4/?pid=2779; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 2 de Novembro de 2010 (3.ª secção), proc. n.º 7239/08, Miranda Van der Berg e Noa Sarri vs Holanda; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2010, proc. n.º 622/07.9TMBRG.G1.S1, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2012, proc. n.º 1534/11.7TMLSB-A.L1-7, Cristina Coelho.

[9] Em muitos Estados, é apenas consagrada a imposição para as autoridades centrais no sentido de colaborarem com os interessados na instauração dos procedimentos necessários à outorga dos direitos de visita, sem que isso permita a possibilidade dos tribunais ordenarem o regresso imediato da criança, na medida em que a Convenção da Haia de 1980 teria sido fundamentalmente gizada para garantir a restituição definitiva da criança ao Estado da sua residência habitual e a restauração do direito de custódia, dando cumprimento a objectivos dissuasores e tutelando o valor da estabilidade familiar da criança e não propriamente para preservação do direito de visita.
Contudo, é justificado um entendimento mais amplo do exercício deste direito na medida em que permite aos tribunais do Estado em que a criança se encontra organizar ou proteger esse direito de convivência e assegurar o respeito pelas condições a que o seu exercício possa estar sujeito, tornando desnecessária a obtenção de uma nova decisão adaptada às novas circunstâncias, mediante o ajustamento apropriado junto dos tribunais do Estado competente para a sua execução.
O exercício efectivo deste direito tanto pode ser alcançado através da fixação de um regime de convívio da criança com o progenitor com quem não reside, quer através da efectivação de um regime que se mostra já estabelecido (artigos 7.º, alínea c) e 21.º da Convenção).
A efectiva salvaguarda do superior interesse da criança implica que esteja também assegurado o seu direito de convivência com o progenitor que não reside consigo e, eventualmente, com as pessoas com quem a criança tenha relações afectivas próximas ou profundas, de modo a não aliar uma deslocação do seu centro de vida a um afastamento prolongado no tempo ou mesmo definitivo.
Assim, no âmbito de regime de convivência da criança com os membros da sua família ou outras pessoas, é consensual que as mesmas são de fulcral importância para o equilíbrio presente e futuro da criança na medida em que consubstanciam a preservação do seu património familiar, genético e espiritual (artigo 2.º, alínea a) da Convenção sobre as relações pessoais relativas às crianças, adoptada no Conselho da Europa e aberto à assinatura em 5 de Maio de 2003, instrumento ainda não ratificado por Portugal).


Mercê de outras obrigações assumidas por Portugal, a aplicação da Convenção da Haia de 1980 deve ainda ser complementa ou conjugada com a aplicação de outros instrumentos internacionais cujas normas são importantes para completar o quadro de protecção da infância em caso de deslocação ou retenção ilícita:

a) O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e de Responsabilidade Parental (artigos 2.º, n.º 11, 10.º, 11.º, 40.º, 41.º, 42.º, 60.º e 61.º) (JO L 338, de 23/12/2013) (aplicável em toda a União Europeia excepto na Dinamarca) [10];

b) A Convenção da Haia de 19 de Outubro de 1996 relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção de Crianças (aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro) (artigos 7.º, 12.º, 35.º e 50.º) [11].

Nenhum destes instrumentos, de aplicação complementar nas situações de deslocação ou de retenção ilícita de crianças, definem o encadeado processual que deve regular as acções de regresso das crianças junto dos tribunais portugueses e, ao contrário do que sucede noutros Estados, o direito interno português não prevê um procedimento específico para o efeito.


[10] Designado por Regulamento Bruxelas II bis.

[11] Designada por Convenção da Haia de 1996.


Assim, cabe ao direito adjectivo interno prever, designadamente [12]

a) Um procedimento simplificado na medida em que o objecto desta acção não vista discutir os direitos de custódia mas apenas os pressupostos positivos e negativos para decidir ou recusar o regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida;

b) Um procedimento que acautele as garantias do contraditório por se tratar de um princípio basilar do direito processual civil e que nenhum dos instrumentos internacionais dispensa (artigo 11.º, n.º 5 do Regulamento Bruxelas II bis);

c) Um processo urgente, célere e expedito, exigência estabelecida nos diversos instrumentos internacionais, tendo como referência temporal o prazo das seis semanas para a tomada de decisão [13] (artigos 2.º e 11.º da Convenção da Haia de 1980, 11.º, n.º 3 do Regulamento Bruxelas II bis e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) [14];

d) Um procedimento que garanta a possibilidade da criança, com a idade e a maturidade suficientes, ser ouvida e exprimir livremente e de forma adequada a sua opinião (artigos 12.º e 13.º da Convenção da Haia de 1980 e 11.º, n.º 2 do Regulamento Bruxelas II bis).


[12] Ao longo de todo o processo, a interpretação e aplicação das normas sobre a deslocação e retenção ilícita de crianças deverão ter em conta os critérios estabelecidos na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, designadamente o critério da primazia do superior interesse da criança em todas as decisões que lhe digam respeito (artigo 3.º, n.º 1), o direito da criança separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se isso se mostrar contrário ao seu interesse (artigo 9.º, n.º 3), as obrigações dos Estados em combater a deslocação e a retenção ilícita de crianças (artigo 11.º) e o direito de audição da criança em todas as questões que lhe digam respeito (artigo 12.º).
Como a jurisprudência tem afirmado, as normas internacionais e nacionais que se destinam a evitar ou a intervir nas situações de deslocação ou de retenção ilícita de crianças devem ser integradas e interpretadas de forma uniforme num sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais, em particular os direitos da criança como sujeito de direitos [Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de Abril de 2003, proc. n.º 56673/200, Iglesias Gil e A.U.I. vs Espanha; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Junho de 2003 (3.ª secção), proc. n.º 48206/99, Maire vs Portugal; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 22 de Junho de 2006, (5.ª secção), proc. n.º 7548/04, Bianchi vs Suiça; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21 de Fevereiro de 2012, (3.ª secção), proc. n.º 16965/2010, Karrer vs Romenia; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 3 de Maio de 2012, (12.ª secção), proc. n.º 60328/09, Ilker Ensar Uyanik vs Turquia; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Novembro de 2013, proc. n.º 27853/09, X vs Letónia].

[13] Numa feliz comparação, a Convenção da Haia de 1980 “is like an ambulance car that comes into play in emergency situation, if one of the parents retains or removes that child against the will of the other parent” (ŽUPAN, Mirela/PORETTI, Paula, “Concentration of Jurisdiction in Cross-Border Family Matters - Child Abduction at Focus”, New Developments in the EU and National Labour Law, p. 346).

[14] A urgência do procedimento deve estar presente não apenas no prazo da decisão mas também na rapidez da sua execução [Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21 de Setembro de 2010 (4.ª secção), proc. n.º 49337/07, Mijušković vs Montenegro; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 22 de Dezembro de 2009 (3.ª secção), proc. n.º 20272/06, Tapia Gasca e D. vs Espanha; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 1 de Dezembro de 2009, proc. n.º 8673/05, Eberhard e M. vs Eslovenia; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 17 de Janeiro de 2012 (1.ª secção), proc. n.º 1598/06, Kopf e Liberda vs Austria].


No direito interno, as questões processuais relativas às responsabilidades parentais são reguladas pelo Regime Geral do Processo Tutelar Cível
[15] o qual estabelece a tramitação aplicável à regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitante, a instauração de tutela e da administração de bens, a entrega judicial de criança, a autorização de actos a praticar em nome desta, a inibição ou a limitação do exercício das responsabilidades parentais ou a regulação dos convívios da criança com irmãos ou ascendentes, atribuindo-lhes a qualificação de providências tutelares cíveis especiais ou comuns (artigo 3.º).

Na prática judiciária, não se prevendo uma forma especial de processo tutelar cível aplicável às acções de regresso, tem sido normalmente usada a providência tutelar cível comum (artigo 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) a qual apenas dispõe que o juiz pode ordenar as diligências que repute necessárias antes de proferir decisão final. [16]

Esta solução não é isenta de dificuldades na medida em que atribui ao juiz a responsabilidade por uma gestão do processo que lhe permita uma decisão justa, com a maior celeridade e a menor complexidade que o caso justifique mas, ao mesmo tempo, imprimindo-lhe uma certa indefinição e insegurança processual que não tem sido imune a entendimentos diversos na jurisprudência nacional ou mesmo a censuras por parte das instâncias internacionais. [17]

Os processos internos de aplicação destes instrumentos apresentam complexidades próprias, não apenas pela necessidade de conjugar diversos instrumentos normativos mas também pela existência de inúmeros conceitos jurídicos indeterminados não preenchidos ou concretizados pelo direito interno, a que acresce a circunstância de, felizmente, não serem processos que ocorram frequentemente em todos os tribunais e, pela sua urgência e celeridade, não permitem ao juiz uma avaliação ponderada de todas as questões que lhe são submetidas.


[15] Aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro (alterado pela Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio).

[16] Sobre a propriedade do meio processual, Fialho, António José, “Execução das decisões de regresso proferidas no âmbito da Convenção da Haia de 1980”, disponível em https://csm.org.pt/rijh/wp-content/uploads/2016/04/execucaodecisoes_ch1980.pdf; Magalhães, Gonçalo de Oliveira, “Aspectos da acção destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, p. 45.

[17] Por exemplo, a falta de realização de uma diligência probatória considerada essencial perante a alegação de consequências emocionais graves para as crianças caso fosse decidido o seu regresso ao Estado da residência habitual foi fundamento da condenação do Estado Português (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 5 de Fevereiro de 2015, (1.ª secção), proc. n.º 66775/11, Phostira Efthymiou e Ribeiro Fernandes vs Portugal).


Os processos de regresso têm por objecto o regresso da criança que foi deslocada ou retida ilicitamente noutro Estado ao Estado de origem, não dizendo respeito aos aspectos relativos ao exercício das responsabilidades parentais e, por conseguinte, não tendo o mesmo objecto nem a mesma causa de pedir que uma acção destinada a determinar esse exercício. [18]

A experiência de outros Estados que adoptaram mecanismos processuais internos de execução destes instrumentos [19] tem-se traduzido em ganhos de eficácia nas decisões, uniformização nos procedimentos, melhorias no estabelecimento de mecanismos de comunicação e de confiança mútua entre as autoridades envolvidas, incremento da certeza e segurança jurídicas relativamente aos intervenientes, facilidade na adopção e utilização dos meios de resolução alternativa, em suma, num conjunto significativo de vantagens que não nos pode deixar indiferentes face a uma solução semelhante a adoptar no nosso país.

Deste modo, um regime processual interno deverá ter em conta, entre outras questões, este conjunto de benefícios experimentados noutros ordenamentos jurídicos, bem como outros instrumentos processuais que poderão facilitar ou simplificar a tarefas das diversas autoridades centrais e das redes judiciárias, designadamente em matéria de comunicação das decisões, existência de uma base de dados sobre a jurisprudência proferida sobre estas matérias ou um melhor uso das comunicações judiciais directas.

Este contributo não tem como objectivo a formulação de um articulado para um regime processual mas apenas enunciar alguns aspectos que, na nossa opinião, deverão justificar a adequada reflexão pelos órgãos legislativos caso estes optem pela adopção desse modelo, sem olvidar a necessária ponderação sobre os trabalhos em curso para a revisão do Regulamento Bruxelas II bis. [20]


[18] Acórdão do Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2010 (2.ª secção), proc. n.º 256/09, Bianca Purrucker vs Guillermo G. Vallés Pérez; Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2014 (3.ª secção), proc. n.º 376/14 PPU, C. vs M..

[19] De que são exemplo, entre outros, a Austrália, Japão, Singapura, Espanha, Holanda, Reino Unido, África do Sul, Argentina, Uruguai, Panamá, República Dominicana, Chile e Singapura (Estados com diversas tradições jurídicas).

[20] A este propósito, Gonçalves, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 51-68.



II - COMPETÊNCIA INTERNA E CONCENTRAÇÃO DE COMPETÊNCIAS

A competência de um tribunal é o complexo de poderes que lhe são atribuídos para o exercício da função jurisdicional sendo definida em função do pedido formulado pelo autor e pela causa de pedir ou fundamentos em que aquele se apoia, ou seja, pela relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial.

É a lei de processo que fixa os factores de que depende a competência dos tribunais e esta considera-se fixada no momento em que a acção é proposta [21], sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 1, ambos da Lei da Organização do Sistema Judiciário e 9.º, n.º 9 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível [22]).

Para decretar as providências tutelares cíveis, é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado; sendo desconhecida a residência da criança, é competente o tribunal da residência dos titulares das responsabilidades parentais e, se estes tiverem residências diferentes, é competente o tribunal da residência daquele que exercer as responsabilidades parentais mas, no caso de exercício conjunto, é competente o tribunal da residência daquele com quem residir a criança ou, em igualdade de circunstâncias, o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar; se alguma das providências disser respeito a duas crianças, filhas dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar mas, se alguma das providências disser respeito a mais do que duas crianças, filhas dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente do tribunal da residência do maior número delas (artigo 9.º, n.os 1 a 6 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

Caso a criança resida no estrangeiro no momento da instauração do processo e o tribunal português for internacionalmente competente [23], é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido mas quando estes residam no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, o conhecimento da causa pertente ao juízo central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa (artigo 9.º, n.os 7 e 8 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).


[21] Consagra regra semelhante à que se encontra prevista no artigo 16.º do Regulamento Bruxelas II bis.

[22] Neste caso, sem prejuízo das regras de conexão e do que se encontre previsto em lei especial.

[23] A competência internacional dos tribunais portugueses depende da circunstância de não ser afastada por nenhum instrumento de direito internacional que prevaleça sobre a lei interna portuguesa (neste sentido, Fialho, António José, “A competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidade parental”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 14-15).


Os factores de atribuição da competência internacional previstos na lei interna só se aplicam se não houver outro instrumento de direito internacional que não previna essa competência (artigos 8.º da Constituição da República Portuguesa e 59.º do Código de Processo Civil) pelo que, quando estejam em causa situações jurídicas plurilocalizadas que abranjam outros ordenamentos jurídicos de Estados Contratantes da Convenção da Haia de 1996 ou da União Europeia, deverão prevalecer as regras de competência previstas nesta convenção ou no Regulamento Bruxelas II bis.

Estabelece o artigo 113.º, n.º 1 do Regime aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [24] que para a execução de convenções internacionais em que a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais é autoridade central [25], são competentes os juízos de família e menores mas, nos municípios não integrados na área de competência territorial dos juízos de família e menores, a execução de convenções internacionais é da competência dos respectivos juízos da instância local (n.º 2 do mesmo artigo).

Deste modo, os processos em que Portugal seja Estado requerido e em que esteja em causa uma decisão de regresso no âmbito de uma situação de deslocação ou retenção ilícita de crianças, um pedido de reconhecimento e execução de uma decisão estrangeira proferida no âmbito do Regulamento Bruxelas II bis ou um pedido de transferência de competências para aplicação de medida de protecção ou de responsabilidades parentais são agora tramitados por cerca de 112 tribunais diferentes [26], com diferentes níveis de especialização.

Ao optar por um determinado modelo de organização do sistema judiciário, o legislador deverá estabelecer, entre outras coisas, um compromisso entre a especialização dos tribunais e a proximidade destes face às populações abrangidas [27] mas, quando estejam em causa este tipo de processos, as orientações, recomendações e práticas de organismos internacionais ou de outros ordenamentos jurídicos, aconselham que se privilegie a especialização em detrimento da proximidade.


[24] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março (alterado pelo Decreto-Lei n.º 86/2016, de 27 de Dezembro, pela Lei n.º 19/2019, de 19 de Fevereiro, e pelo Decreto-Lei n.º 38/2019, de 18 de Março).

[25] Entre outras competências, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais exerce as funções de Autoridade Central no âmbito da Convenção da Haia de 1980, da Convenção da Haia de 1996 e do Regulamento Bruxelas II bis.

[26] Correspondem, neste momento, a 51 juízos de família e menores e 61 juízos locais.

[27] Efectuando uma reflexão muito completa sobre a especialização dos tribunais e os seus limites, Matos, José Igreja/Lopes, José Mouraz/Mendes, Luís Azevedo/Coelho, Nuno, Manual de Gestão Judicial, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 148-151.


Com efeito, essas orientações estabelecem que os Estados Contratantes devem concentrar a competência quanto a esses processos em um ou mais tribunais, em função das respectivas estruturas internas de administração da justiça, com o objectivo de concluir, o mais rapidamente possível, os processos relativos ao regresso da criança ao abrigo da Convenção da Haia de 1980.

A concentração de competências ou de jurisdição consiste em atribuir a um número limitado de tribunais a competência para apreciar e julgar um determinado tipo de questões. [28]

A concentração de competências num número limitado de tribunais de um Estado Contratante tem-se afirmado como um instrumento eficaz e fundamental para acelerar o tratamento dos processos por rapto de crianças em vários Estados, na medida em que os juízes que devem apreciar um grande número destes processos desenvolvem competências específicas.

Consoante a estrutura do sistema jurídico, a competência para apreciar e decidir os processos relativos à deslocação ou retenção ilícita de crianças pode ser concentrada num único tribunal para todo o país ou num número limitado de tribunais, utilizando, por exemplo, o número de tribunais de recurso existentes como ponto de partida e concentrando a competência por este tipo de processos num único tribunal de primeira instância por cada área de jurisdição de um tribunal de recurso.

A interpretação e a aplicação das normas jurídicas relativas aos processos em que esteja em causa uma decisão de regresso de uma criança ao abrigo da Convenção da Haia de 1980 podem suscitar dificuldades ao juiz e, deste modo, apenas um modelo adequado de especialização e de concentração de competências se mostra passível de obviar a essas dificuldades. [29]

Por outro lado, a prática judiciária de outros Estados tem demonstrado que, ainda que as partes (e os seus advogados) se vejam obrigadas a percorrer longas distâncias para se deslocarem ao tribunal, estas afirmam frequentemente que essa deslocação não constitui um problema, na medida em que, desta forma, têm a certeza de que apresentam o seu caso perante um tribunal mais especializado e habilitado pelo que, deste ponto de vista, a especialização melhora o grau de satisfação das pessoas envolvidas.


[28] A exemplo do que já sucede com os Tribunais de Execução de Penas (numa dimensão regional), do Tribunal da Propriedade Intelectual, do Tribunal Marítimo, do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão e do Tribunal Central de Instrução Criminal (numa dimensão nacional).

[29] No mesmo sentido, Massena, Ana, “Reflexão conjunta sobre a aplicação da Convenção da Haia de 1980 à luz do princípio do superior interesse da criança”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 2, 2.ª semestre de 2014, Lisboa: Almedina, pp. 133-170; Almeida, João Gomes de, “O Regulamento Bruxelas II bis e a celeridade das decisões de regresso”, Actualidade e Tendências na Cooperação Judiciária Civil e Comercial, E-Book editado pela Direcção-Geral de Política de Justiça, pp.11-14, disponível em https://issuu.com/justicainternacional/docs/caderno_digital_-_dia_europeu_da_ju.


Os processos de regresso da criança apresentam complexidades próprias não apenas pela necessidade de conjugar instrumentos normativos internacionais mas também pela existência de inúmeros conceitos jurídicos indeterminados não preenchidos ou concretizados pelo direito interno [30], bem como pela existência dos interesses antagónicos em presença, exigindo uma resposta rápida e célere [31] de forma a obviar ao risco de enfraquecimento das relações afectivas entre a criança e o progenitor requerente (left behind parent). [32]

Assim sendo, a futura opção por uma concentração de competências ou de jurisdição quando estejam em causa processos relativos ao rapto internacional de crianças é uma inevitabilidade a que, mais cedo ou mais tarde, o legislador terá que dar a devida atenção, nem que seja pela imposição das orientações e recomendações de direito europeu.

Contudo, essa é uma discussão em que também devem estar presentes os juízes, os magistrados do Ministério Público e os advogados pois a opção que venha a ser seguida não pode (nem deve) ser indiferente para nenhum deles na medida em que qualquer estrutura de concentração de competências exige um determinado grau de especialização e esta tanto pode ser feita ao nível da especialização de tribunais ou da especialização de determinados juízes num limitado grupo de tribunais.


[30] Para além da inexistência de uma concentração de competências no direito interno português, o aplicador é ainda confrontado com a inexistência de um modelo processual adequado a estes processos.

[31] Na feliz expressão de Sir Mathew Alexander Thorpe (Lord Justice of Appeal de Inglaterra e País de Gales), “confiar um pedido de regresso a um juiz que nunca tratou de casos ao abrigo da Convenção é o melhor meio de cometer um erro ou de emitir uma sentença inexequível”.

[32] Sobre as vantagens no modelo de concentração de competências, Fialho, António José, “A concentração de competências nos processos de rapto internacional de crianças”, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/04/Microsoft-Word-20170406-ARTIGO-JULGAR-Concentra%C3%A7%C3%A3o-de-compet%C3%AAncias-rapto-internacional-Ant%C3%B3nio-Fialho.pdf; Lortie, Philippe, “Concentration of jurisdiction under the Hague Convention of 25 October 1980 on the Civil Aspects of International Child Abduction”, The Judges’ Newsletter on International Child Protection, Volume XX, Summer - Autumn 2013, pp. 2-3, disponível em https://assets.hcch.net/upload/newsletter/nl2013tome20en.pdf



III - O PAPEL E A FUNÇÃO DAS AUTORIDADES CENTRAIS

As autoridades centrais são os organismos designados pelos respectivos Estados para executar as funções decorrentes de um dado instrumento legal às quais compete a obrigação de velar pelo regular cumprimento dos procedimentos instituídos no quadro dos instrumentos de direito internacional assinados e ratificados por esse Estado. [33]

A intervenção da Autoridade Central ocorre sempre que seja solicitada quer a nível nacional - em que atua na qualidade de requerente - quer a nível internacional - em que atua na qualidade de requerida.

A actividade das autoridades centrais (na qualidade de requerente ou de requerida) consubstancia-se ainda no acompanhamento processual e na prestação, às partes envolvidas, de toda a informação adicional no âmbito dos processos em que esteja em causa o pedido de regresso da criança de acordo com a Convenção da Haia de 1980.

Em Portugal, a Autoridade Central no âmbito da Convenção da Haia de 1980 é a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais [34] (Aviso n.º 364/2010 publicado no Diário da República I.ª Série, n.º 241, de 15 de Dezembro de 2010). [35]

Estabelece o artigo 7.º da Convenção da Haia de 1980 que as autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respectivos Estados, por forma a assegurar o regresso imediato das crianças e a realizar os outros objectivos Convenção, devendo tomar, directamente ou através de um intermediário, [36] todas as medidas apropriadas para:


[33] Desenvolvendo o tema, Cóias, João d'Oliveira, “O papel da Autoridade Central na Convenção da Haia de 1980”, Revista Julgar, disponível em http://julgar.pt/o-papel-da-autoridade-central-na-convencao-da-haia-de-1980-2/

[34] A Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais exerce também as funções de Autoridade Central para a Convenção da Haia de 1996 e para o Regulamento Bruxelas II bis.

[35] A Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais é um serviço central integrado na orgânica do Ministério da Justiça (Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de Dezembro) ao qual compete, entre outras atribuições, contribuir para a elaboração de instrumentos de cooperação judiciária internacional e assegurar o cumprimento de procedimentos resultantes de convenções em que seja autoridade central (artigo 3.º, alínea j) do Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de Setembro).
No âmbito dos serviços centrais da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, encontram-se definidas as unidades orgânicas flexíveis (artigo 10.º da Portaria n.º 118/2013, de 25 de Março) sendo o Gabinete Jurídico e de Contencioso (GJC) a unidade orgânica responsável pelo apoio técnico-jurídico aos órgãos e serviços daquela direcção-geral, competindo-lhe ainda representar a mesma enquanto Autoridade Central Portuguesa em matéria de rapto parental e promoção e protecção de crianças e jovens (7.1. alínea a), do Despacho n.º 9954/2013 publicado no Diário da República 2.ª série de 30 de Julho de 2013).

[36] As entidades intermediárias serão todas aquelas que poderão ser convocadas para colaborar com a autoridade central no âmbito das suas atribuições, designadamente as autoridades policiais ou os serviços da segurança social.
“(…) tendo ainda como base orientadora o Relatório Pérez-Vera, a formulação escolhida para a redacção do artigo 7.º da Convenção decorreu do compromisso entre as delegações das diversas partes contratantes divididas entre Estados que atribuem uma maior amplitude de poderes à sua autoridade central, podendo esta desenvolver, por si própria, as diligências que considere adequadas à tramitação da fase consensual, ou seja, uma autoridade central com maior liberdade e ampla iniciativa - e aqueles Estados que consideram que à autoridade central estão apenas atribuídos poderes meramente administrativos para facilitar a acção das partes, o que reflecte, sobremaneira, as profundas diferenças que existem entre os sistemas representados na Conferência da Haia.


a) Localizar uma criança deslocada ou retida ilicitamente;

b) Evitar novos danos à criança, ou prejuízos às partes interessadas, tomando ou fazendo tomar medidas provisórias;

c) Assegurar a reposição voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável;

d) Proceder à troca de informações relativas à situação social da criança, se isso se considerar de utilidade;

e) Fornecer informações de carácter geral respeitantes ao direito do seu Estado, relativas à aplicação da Convenção;

f) Introduzir ou favorecer a abertura de um procedimento judicial ou administrativo que vise o regresso da criança ou, concretamente, que permita a organização ou o exercício efectivo do direito de visita;

g) Acordar ou facilitar, conforme as circunstâncias, a obtenção de assistência judiciária e jurídica, incluindo a participação de um advogado;[37]

h) Assegurar no plano administrativo, se necessário e oportuno, o regresso sem perigo da criança;

i) Manterem-se mutuamente informados sobre o funcionamento da Convenção e, tanto quanto possível, eliminarem os obstáculos que eventualmente se oponham à aplicação desta.


Optou-se, deste modo, por uma solução que permita à autoridade central de cada Estado Contratante actuar de acordo com o direito e as atribuições que lhe estão conferidas internamente e, deste modo, só assim se poderá interpretar a possibilidade de recurso, por parte da autoridade central, a um “intermediário”.
Deste modo, na ordem jurídica portuguesa, nada obsta, a nosso ver, que a autoridade central desenvolva, por iniciativa própria, todas as diligências necessárias à tramitação da fase pré-contenciosa, ainda que, eventualmente, possa recorrer ao apoio de outras entidades, designadamente, aos órgãos policiais, à segurança social ou às comissões de protecção de crianças e jovens em perigo e, ainda assim, sem que tal pedido constitua qualquer forma de delegação dos seus poderes destinando-se apenas, em consonância com o dever de colaboração entre as entidades públicas, a obter os elementos necessários à melhor execução daquela fase do pedido formulado pela autoridade central de outro Estado Contratante.” (Massena, Ana, “Reflexão conjunta sobre a aplicação da Convenção da Haia de 1980 à luz do princípio do superior interesse da criança”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 2, 2.ª semestre de 2014, Lisboa: Almedina, pp. 133-170).

[37] Em relação ao apoio judiciário no contexto da União Europeia deverá ter-se em consideração a Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços, através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.
Esta Directiva foi transposta para o ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei n.º 71/2005, de 17 de Março, sendo o Instituto da Segurança Social I.P. a Autoridade Central nesta matéria.


Contudo, a enumeração do artigo 7.º da Convenção da Haia de 1980 não se deve considerar exaustiva pelo que, estando em causa o principal objectivo de assegurar o regresso imediato da criança deslocada ilicitamente, logo que a autoridade central receba o pedido apresentado nos termos do artigo 8.º desta Convenção, deve implementar um procedimento de natureza urgente no âmbito do qual desenvolva as diligências que considere adequadas à boa execução das atribuições que lhe cabem, podendo até transmitir directa e imediatamente o pedido à autoridade central de outro Estado Contratante quando se apure que a criança esteja nesse Estado, comunicando a situação à autoridade central do Estado requerente. [38]

Ao estabelecer, de forma meramente exemplificativa, qual o procedimento da autoridade central perante o pedido que lhe é formulado, o artigo 7.º da Convenção da Haia de 1980 impõe a existência de uma fase pré-contenciosa [39], da exclusiva competência da Autoridade Central [40], com vista a obter o regresso voluntário da criança.

No âmbito da Convenção da Haia de 1996, compete ainda à autoridade central cumprir as obrigações impostas pela convenção, directamente ou através das autoridades públicas ou de outros organismos, designadamente (artigo 31.º):


[38] Em comentário ao artigo 7.º da Convenção da Haia de 1980, o Relatório Pérez-Vera refere expressamente que “são as circunstâncias do caso concreto que irão determinar as diligências a realizar pelas autoridades centrais…” consagrando-se o “dever da autoridade central tentar encontrar uma solução extrajudicial para o caso”, sendo a autoridade central a entidade que dirige a evolução do problema logo, é a mesma que decide em que momento falharam as tentativas feitas, seja para assegurar a entrega voluntária da criança, seja para facilitar uma solução amigável”.

[39] Consagra-se ainda “o dever das Autoridades Centrais procurarem encontrar uma solução extrajudicial para o caso” (Pérez Vera, Elisa, Rapport explicatif sur la Convention de La Haye de 1980 sur l'enlèvement international d'enfants).

[40] Contudo, esta fase pré-contenciosa ou extrajudicial poderá não ter lugar quando as diligências prévias coloquem em risco o regresso da criança, designadamente por receio de nova deslocação, quando a criança já tenha sido sujeita a anterior deslocação ou se venha a apurar que está iminente nova deslocação (Considerando 25 do Regulamento Bruxelas II bis).
Estas situações excepcionais deverão estar devidamente documentadas para, posteriormente, poderem vir a ser alegadas na providência tutelar cível a instaurar, justificando a ausência daquela fase pré-contenciosa.
Em suma, parece-nos que a melhor interpretação que deve ser conferida aos artigos 7.º e 10.º da Convenção da Haia de 1980 aponta no sentido de privilegiar a solução amigável com a entrega voluntária da criança devendo, para tal e no âmbito da fase pré-contenciosa e extrajudicial, a autoridade central desenvolver as diligências que considere adequadas com vista a alcançar esse objectivo.
Não se trata, todavia, de uma obrigação absoluta, pois a autoridade central deve, em cada caso, avaliar em que medida tais diligências são, ou não, susceptíveis de pôr em causa o objectivo final do procedimento, isto é, o regresso da criança ao país da sua residência habitual evitando, a todo o custo, uma nova deslocação da criança.
Deste modo, de acordo com a avaliação que faz da situação concreta, a autoridade central pode optar por suscitar, desde logo, a intervenção judicial se entender que a realização de qualquer diligência pré-contenciosa pode criar o perigo fundado de uma nova deslocação da criança, frustrando o seu regresso e entrega ao Estado da residência habitual.


a) Colaborar mutuamente e promover a cooperação entre as autoridades competentes para atingir os objectivos da convenção;

b) Adoptar os procedimentos adequados para fornecer informações sobre a legislação e serviços disponíveis em matéria de protecção de crianças;

c) Facilitar as comunicações e oferecer o auxílio previsto nos artigos 8.º e 9.º e 29.º a 39.º da convenção;

d) Facilitar ou promover através das entidades adequadas, a mediação, a conciliação ou qualquer outro meio análogo, com vista à obtenção de soluções de mútuo acordo para a protecção da pessoas ou dos bens da criança nas situações abrangidas pela convenção;

e) Prestar auxílio às autoridades competentes de outros Estados Contratantes na localização de uma criança quando se verificar que esta se possa encontrar em território nacional e necessitar de protecção;

f) Fornecer relatórios sobre a situação de uma criança que resida habitualmente ou permaneça habitualmente em território nacional ou solicitar à autoridade competente que analise a necessidade de adoptar medidas para a protecção da pessoa ou dos bens da criança.

A proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis atribui ainda às autoridades centrais a competência para, no prazo de seis semanas, preparar o processo com as informações necessárias para intentar ou remeter ao tribunal um processo para obter o regresso da criança o que pode não ocorrer relativamente a todas as autoridades centrais que não disporão dos meios para cumprir essa obrigação. Cabendo aos Estados-Membros garantir que as autoridades centrais disponham dos meios necessários ao cumprimento das obrigações emergentes daquele instrumento internacional, torna-se evidente a necessidade de reestruturação de algumas das autoridades centrais dos Estados-Membros, [41] incluindo a Autoridade Central portuguesa.

Finalmente, é ainda conveniente que um modelo processual de aplicação das convenções defina concretamente o âmbito do apoio administrativo prestado pela autoridade central no âmbito do regresso da criança, bem como a intervenção de outras entidades que possam ser chamadas a executar uma decisão de retorno proferida pelos tribunais portugueses.


[41] Neste sentido, Gonçalves, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 67-68.



IV - A URGÊNCIA DO PROCEDIMENTO

Estabelece o artigo 11.º, § 1.º da Convenção da Haia de 1980 que as autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança fixando um prazo de seis semanas para que seja proferida uma decisão.

Também o artigo 11.º, n.º 3 do Regulamento Bruxelas II bis dispõe que as autoridades devem acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional, devendo o tribunal pronunciar-se sobre o pedido de regresso o mais tardar num prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, excepto em caso de circunstâncias excepcionais que o impossibilitem. [42]

Este prazo de seis semanas suscitou uma enorme diversidade interpretativa por parte dos Estados-Membros, em parte justificada pela dificuldade em cumprir este prazo mas, ao mesmo tempo, reconhecendo-se que, nos casos que envolviam crianças de tenra idade, a evolução física e psicológica destas, num curto período de tempo, é mais rápida pelo que os laços emocionais com o progenitor de quem ficou separada podem desaparecer e, deste modo, ficarem irremediavelmente afectados. [43]

A exigência deste processo urgente, célere ou expedito tem sido salvaguardada através da atribuição de carácter urgente ao procedimento tutelar cível instaurado (artigo 13.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) [44] mas raras vezes essa natureza tem permitido observar o prazo de seis semanas, mais ainda quando haja recurso da decisão em que os prazos não beneficiam de qualquer redução ou prazo máximo para que seja proferida decisão pelo tribunal de recurso.

Consciente de uma abordagem mais realista, a proposta de Regulamento prevê um prazo de seis semanas para a instrução do pedido pela autoridade central, incluindo a assistência para determinar o paradeiro da criança, promover a mediação ou, em certos casos, indicar ao requerente um advogado qualificado para levar o caso a tribunal.


[42] Almeida, João Gomes de, “O Regulamento Bruxelas II bis e a celeridade das decisões de regresso”, Atualidade e Tendências na Cooperação Judiciária Civil e Comercial, Direção-Geral de Política de Justiça, pp. 11-14, disponível em https://issuu.com/justicainternacional/docs/caderno_digital_-_dia_europeu_da_ju

[43] Gonçalves, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 56-57; Acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2008 (3.ª secção), proc. n.º C-195/08 PPU, Inga Rinau.

[44] E também como fundamento de rejeição de meios de prova dispensáveis, injustificados ou dilatórios (Beleza, Maria dos Prazeres, Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças, Revista Julgar, n.º 24, Setembro-Dezembro 2014, p. 81; Borges, Beatriz Marques, Rapto parental internacional: prática judiciária no tribunal de família e menores, Revista Lex Familiae, Ano 8, n.º 16, 2011, pp. 82-83)


Em seguida, o tribunal disporá também de um prazo de seis semanas para decidir o regresso ou a recusa do mesmo, utilizando o procedimento mais expedito disponível ao abrigo da legislação nacional.

Finalmente, havendo recurso, a decisão que ordena o regresso da criança deve ser igualmente decidida em seis semanas após a instauração do recurso, num só grau, salvaguardando-se, em todos os casos, a existência de circunstâncias excepcionais que possam impossibilitar o cumprimento dessas exigências temporais.

Por outro lado, o tribunal pode declarar executória, a título provisório, uma decisão que ordena o regresso da criança, ainda que tenha sido interposto recurso dessa decisão, mesmo que o direito nacional não contemple essa executoriedade provisória.

Esta solução, que não é inteiramente coincidente com a atribuição de efeito meramente devolutivo da decisão recorrida (artigo 32.º, n.º 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), deve ser decidida em nome do superior interesse da criança, com a finalidade de promover maior celeridade ao regresso da criança e “neutralizar os efeitos negativos para a criança de um recurso da decisão de regresso que tenha manifestamente uma finalidade dilatória”. [45]

A atribuição de efeito meramente devolutivo aos recursos destas decisões tem sustentado o entendimento de que o recurso não releva para o cômputo do prazo das seis semanas. [46]

Contudo, a definição de prazos diferenciados para o processo na fase pré-judicial e nas fases judiciais em 1.ª instância e no tribunal de recurso prejudica este entendimento e, deste modo, justifica igualmente a conveniência de uma densificação normativa que garanta a observância destas regras.

Deste modo, a adopção de alguns instrumentos processuais que garantam um processo expedito e célere que respeite os prazos máximos de decisão que possam vir a ser estabelecidos, com a necessária segurança jurídica e observância dos direitos processuais básicos também constitui uma referência a observar no modelo processual que possa ser adoptado.


[45] GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, p. 57.

[46] BELEZA, Maria dos Prazeres, “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, Revista Julgar, n.º 24, Setembro-Dezembro 2014, p. 61; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2011, proc. n.º 1534/11.7TMLSB-A-L1-7, CRISTINA COELHO.



V - A OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO

Estabelece o artigo 11.º, n.º 5 do Regulamento Bruxelas II bis que o tribunal não pode recusar o regresso da criança se a pessoa que o requereu não tiver tido a oportunidade de ser ouvida.

Um processo equitativo e justo [47] deve assegurar a cada uma das partes a possibilidade de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão, ou seja, o reconhecimento do direito a que os seus interesses processuais não sejam preteridos sem que tenham tido a oportunidade de ser ouvidos. [48]

O princípio do contraditório traduz-se na garantia de uma participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o processo mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todas as fases e elementos do processo que se encontrem em ligação com a causa e que possam ser relevantes para a decisão (princípio da influência), afirmando os seus factos, contradizendo os factos alegados pela outra parte, proporem os meios de prova relevantes para o apuramento desses factos e, de igual modo, se pronunciarem sobre os fundamentos de direito em que se baseia a questão.

A observância do princípio do contraditório num processo em que esteja em causa o regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida decorre igualmente de um princípio geral do processo civil (artigo 3.º do Código de Processo Civil) e do processo tutelar cível (artigo 25.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).


[47] Uma decisão justa e equitativa é aquela que é tomada num prazo razoável o que:
1.ª - Evidencia a necessidade dos tribunais do Estado requerido tomarem as medidas necessárias ao regresso da criança em tempo útil, se necessário adoptando imediatamente medidas provisórias que garantam a convivência entre a criança e o progenitor que ficou privado desse contacto em consequência da deslocação ou retenção ilícitas;
2.ª - Permite concluir que as delongas na tomada de decisões de regresso e na execução podem ter consequências irremediáveis nas relações entre a criança e o progenitor privado da convivência com esta (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 25 de Janeiro de 2000, (1.ª secção), proc. n.º 31679/96, Ignaccolo Zenide vs Roménia; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Junho de 2003 (3.ª secção), proc. n.º 48206/99, Maire vs Portugal);
3.º - Obriga os Estados a adoptar medidas necessárias para a execução coerciva da decisão de regresso, ou seja, a adopção de procedimentos de urgência não apenas para a tomada de decisão mas também para a sua execução (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Junho de 2003 (3.ª secção), proc. n.º 48206/99, Maire vs Portugal; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 1 de Fevereiro de 2011 (12.ª secção), proc. n.º 775/08, Dore vs Portugal; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 1 de Fevereiro de 2011, (12.ª secção), proc. n.º 23205/08, Karoussiotis vs Portugal).
Na apreciação da questão, os critérios de compatibilidade da decisão com a Convenção dos Direitos da Criança e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem determinam que o tribunal proceda a uma ponderação justa dos interesses em causa, ou seja, do interesse da criança, do interesse dos progenitores e do interesse de ordem pública que não deixa de estar subjacente a estas questões, com natural prevalência do primeiro (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 6 de Julho de 2010, Neulinger e Shuruk vs Suíça; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Novembro de 2013, proc. n.º 27853/09, X vs Letónia), com base na integração da criança no Estado para onde foi deslocada ou ficou retida e se o tribunal, ao decretar o regresso, fez um exame cuidadoso da situação da família e de todos os factores relevantes.

[48] Este é um princípio que tem sido preocupação dos jurisconsultos desde tempos imemoriais pois “quem decide um caso sem ouvir a outra parte não pode ser considerado justo, ainda que decida com justiça.” (Lúcio Aneus Séneca).


Este princípio foi afirmado em diversas decisões dos tribunais, não apenas no plano internacional da exigência de um processo justo e equitativo [49] mas também no plano nacional. [50]

Conjugar o exercício deste princípio com as exigências de celeridade perante um modelo processual desprovido de regras normativas precisas não tem sido uma tarefa inteiramente bem-sucedida, tal como demonstram estas decisões pois a prática judiciária tem evidenciado algumas dificuldades, sobretudo quando ocorre o obstáculo da língua utilizada nos Estados envolvidos ou quando os mecanismos formais de comunicação no processo encontram dificuldades ou outros constrangimentos.

Deste modo, a previsão de um conjunto de regras precisas que salvaguardem a observância do princípio do contraditório ao longo de todo o processo e, em especial, quando esteja em causa uma decisão de recusa de regresso da criança, deve fazer parte de qualquer modelo processual mas agilizado e simplificado de forma a que não seja excessivamente prejudicada a celeridade do processo.

Em suma, nestas situações, deve ser garantido um processo justo e equitativo que permita uma decisão em prazo razoável, garantia que talvez evite a anulação de decisões por preterição daquele princípio estruturante e, deste modo, implica sempre que essa decisão venha a ser tardiamente proferida ou executada.


[49] Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 1 de Fevereiro de 2011 (12.ª secção), proc. n.º 775/08, Dore vs Portugal.

[50] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Abril de 2018, Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, tomo II, pp. 5-10; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 8395/10.1TBCSC.L1-7, MARIA JOÃO AREIAS.



VI - A AUDIÇÃO DA CRIANÇA

O direito da criança a ser ouvida implica o reconhecimento a todas as crianças, dotadas de capacidade de discernimento, do direito de exprimirem livremente as suas opiniões sobre as questões que lhes digam respeito, de acordo com a sua idade e maturidade, de participarem nessas mesmas decisões onde deva ser tida em conta a sua opinião e, bem assim, o direito de serem ouvidas nos processos que lhes respeitam.

No plano internacional, a audição e a participação da criança encontra-se expressamente consagrada nos artigos 12.º da Convenção dos Direitos da Criança, nos artigos 3.º e 6.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, na Recomendação 1864 (2009) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, na Recomendação CM/Rec (2012) do Comité de Ministros do Conselho da Europa, nas Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça Adaptada às Crianças, no artigo 24.º, n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Recomendação da Comissão Europeia de 20 de Fevereiro de 2013 (2013/112/EU).

A complexidade e a natureza das questões abordadas nos instrumentos internacionais em matéria de deslocação e retenção ilícita de crianças impõem que a audição e a participação da criança nos processos que lhe digam respeito tenham em conta as razões que podem fundamentar uma recusa de regresso da criança quando esta manifeste a sua oposição e aquela tenha uma idade e um grau de maturidade que justifique que se tome em consideração a sua opinião sobre o assunto (artigos 13.º da Convenção da Haia de 1980 e 11.º, n.º 2, 12.º e 13.º, todos do Regulamento Bruxelas II bis) ou enquanto condição essencial para a executoriedade das decisões relativas aos direitos de custódia ou de convivência da criança com os seus progenitores (artigos 23.º, n.º 2, alínea b) da Convenção da Haia de 1996 e 23.º, alínea b), 41.º, n.º 3, alínea c) e 42.º, n.º 2, alínea a), todos do Regulamento Bruxelas II bis). [51]

No ordenamento jurídico nacional, o direito de audição e de participação da criança encontra-se expressamente previsto nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, constituindo estas disposições normativas a referência para os artigos 84.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, [52] 47.º e 96.º da Lei Tutelar Educativa [53] e 3.º e 54.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do Regime Jurídico do Processo de Adopção. [54]

Nem a Convenção da Haia de 1980 nem o Regulamento Bruxelas II bis estabelecem os procedimentos que devem ser observados na audição de crianças ilicitamente deslocadas ou retidas já que a cultura jurídica neste domínio pode ser diversa para cada um dos Estados, considerando-se apenas essencial que a criança possa exprimir livremente a sua opinião.

Por outro lado, essa audição tem objectivos diferentes daqueles que estão em causa noutros processos em que o tribunal seja chamado a decidir sobre a protecção da criança ou o exercício das responsabilidades parentais na medida em que, nos procedimentos de regresso, o que pode estar em causa são as objecções da criança a esse regresso, compreender as suas causas, bem como avaliar se, e em que medida, a criança pode estar perante uma situação intolerável ou de grave risco caso seja determinado o seu regresso ao Estado da residência habitual.


[51] CASANOVA, José Fernando de Salazar, “O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho e o princípio da audição da criança”, Scientia Iuridica, tomo LV, n.º 306, Ab.-Jun. 2006, Braga: Universidade do Minho, pp. 205-239; QUENTAL, Ana Margarida/VAZ, Marcela/LOPES, Luís, “O direito de audição da criança no âmbito de processos de rapto parental internacional”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2013, II, pp. 181-200.

[52] Aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto, pela Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro, pela Lei n.º 23/2017, de 23 de Maio, e pela Lei n.º 26/2018, de 5 de Julho.

[53] Aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, alterada pela Lei n.º 4/2015, de 15 de Janeiro.

[54] Aprovado pela Lei n.º 14372015, de 8 de Setembro.


É igualmente importante que a pessoa que realize essa audição disponha de formação adequada, sabendo como deve comunicar com a criança e estar ciente do risco da influência e das pressões que os progenitores possam exercer sobre a criança.

A criança deva ainda receber toda a informação necessária sobre a forma de exercer eficazmente o seu direito, devendo ser-lhe explicado que a sua audição não condicionará, necessariamente, a decisão final que venha a ser tomada, sendo os meios utilizados adaptados à sua capacidade de comunicação, ao ritmo e à capacidade de atenção da criança, com a utilização de uma linguagem clara e simples, adequada à idade e ao nível de compreensão da criança.

A audição da criança num processo judicial não deixa de representar um momento extraordinariamente intenso para a criança, mas também particularmente exigente para os profissionais que o realizam, não apenas pela necessidade de habilitação com formação e experiência adequada à realização dessa audição, como também à eventual necessidade de interpretação de comportamentos não-verbais ou de um razoável conhecimento sobre as diversas variáveis que poderão estar presentes nessa audição (o ambiente, a condução da entrevista, o nível de desenvolvimento da criança e, finalmente, aquelas que são relativas aos adultos que realizam essa audição). [55]

Cada processo tem um nome e a este corresponde um rosto e uma voz ou qualquer outra forma de expressão. Ainda que diga respeito à criança, o processo faz parte do mundo dos adultos e a audição e a participação da criança nesse processo, ainda que seja um direito seu, com regras que desconhece, não pode contribuir para a sua fragilidade e exposição ou se torne numa experiência traumatizante.

A audição deve decorrer num ambiente informal e reservado, não intimidatório, potenciando a espontaneidade e a sinceridade da criança, se necessário com o apoio de assessoria especializada.

Este conjunto de orientações, já presente noutros procedimentos internos em que deva ser ouvida a criança, deve ser igualmente garantido nos processos em que esteja em causa a decisão de regresso da criança, não apenas para garantir o cumprimento das obrigações internacionais assumidas sobre esta matéria mas também para conferir a possibilidade de supressão de exequatur às decisões proferidas.


[55] Desenvolvendo estas variáveis, AGULHAS, Rute/ALEXANDRA, Joana, Audição da Criança - Boas Práticas, disponível em https://crlisboa.org/2017/imagens/Audicao-Crianca-Guia-Boas-Praticas.pdf.



VII - O USO DA MEDIAÇÃO

A mediação familiar é o processo no qual os interessados pedem voluntariamente a ajuda de uma terceira pessoa neutra e qualificada, para resolver o seu conflito, de maneira aceitável e que lhes permita estabelecer um acordo durável e equilibrado, que tome em linha de conta os interesses de todos os membros da família, especialmente os das crianças.

A mediação exige o pleno domínio do processo pelos interessados, princípio que é, simultaneamente, o seu fundamento pois assenta na ideia de que é nos sujeitos envolvidos que reside a solução adequada ao litígio.

A Recomendação n.º R (98) 1 do Comité de Ministros dos Estados Membros do Conselho da Europa sobre a Mediação Familiar (adoptada em 21 de Janeiro de 1998) reconhece as características específicas dos litígios familiares, designadamente o envolvimento de pessoas que irão manter relações interdependentes que se irão prolongar no tempo, o contexto emocional penoso em que surgem os conflitos familiares e a circunstância da dissociação familiar ter impactos sobre todos os membros da família, em particular sobre as crianças.

Também a Directiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Maio de 2008 relativa a certos aspectos da mediação em matéria civil e comercial refere a vantagem no estabelecimento de mecanismos que preservem uma relação amigável e estável entre as partes com vista ao seu cumprimento voluntário.

O modelo processual adoptado para as providências tutelares cíveis apresenta como um dos traços essenciais a solução consensual das questões que devam ser apreciadas e julgadas pelo tribunal (artigo 4.º, n.º 1, alínea c) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) não cabendo ao juiz avaliar ou decidir se a busca dessa solução é ou não adequada.

O uso da mediação é também afirmado no artigo 7.º, n.º 2, alínea c) da Convenção da Haia de 1980 quando dispõe que as autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respectivos Estados, por forma a assegurar o regresso imediato das crianças e a realizar outros objectivos das convenções, devendo tomar, directamente ou através de um intermediário, todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável.

No âmbito da Convenção da Haia de 1996, o artigo 31.º, alínea b) dispõe que a autoridade central de um Estado Contratante deverá, directamente ou através das autoridades públicas ou de outros organismos, fazer todas as diligências apropriadas no sentido de facilitar, através da mediação, conciliação ou qualquer outro meio análogo, as soluções de mútuo acordo para a protecção da pessoa ou dos bens da criança, em situações abrangidas pela convenção.

A utilidade da mediação no contexto dos conflitos parentais plurilocalizados e relativos à deslocação ou retenção ilícita de crianças é, nomeadamente, ilustrada através as seguintes situações fácticas típicas: [56]

a) Em contexto próprio de deslocação ou de retenção, a mediação entre o progenitor cujo direito de custódia foi violado e o progenitor raptor pode facilitar o regresso voluntário da criança ou outra solução de mútuo acordo, contribuindo para uma decisão com base no consentimento das partes envolvidas na fase pré-judicial ou mesmo perante o tribunal;

b) Em idêntico contexto, caso o progenitor cujo direito de custódia foi violado esteja disposto a dar o seu consentimento para a alteração da residência da criança e os seus direitos de convivência sejam assegurados, evitando um regresso ao Estado da residência habitual;

c) Durante o processo de regresso da criança, com vista a estabelecer um quadro menos conflitual e facilitar a convivência da criança entre o progenitor cujo direito de visita foi violado e a criança na pendência do processo;

d) Após a decisão de regresso, a mediação entre os progenitores pode ajudar a facilitar o regresso rápido e seguro da criança; e

e) Finalmente, numa fase mais precoce do conflito familiar, a mediação pode prevenir a deslocação da criança, auxiliando os progenitores a considerar a mudança e as respectivas alternativas, ajudando-os a alcançar uma solução de mútuo acordo.

Deste modo, qualquer modelo processual a adoptar deverá incluir a mesma solução que se encontra prevista para as providências tutelares cíveis (artigo 24.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), ou seja, permitindo o uso da mediação em qualquer estado do processo e sempre que o juiz o entenda conveniente.


[56] É importante ter igualmente em conta o Guia de Boas Práticas sobre Mediação nos termos da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças cuja versão em português pode ser consultada em https://assets.hcch.net/upload/mediation_pt.pdf



VIII - A GARANTIA DO DIREITO DE CONVIVÊNCIA NA PENDÊNCIA DO PROCESSO

O objectivo prevalecente da Convenção da Haia de 1980 é o de garantir o restabelecimento da situação alterada pela acção daquele que deslocou ou reteve ilicitamente a criança, sendo o regresso desta a providência essencial a ser considerada pelos tribunais do Estado requerido, prescindindo de qualquer discussão sobre a residência ou o exercício das responsabilidades parentais a qual é relegada para o processo próprio, nos tribunais do Estado da residência habitual e quando se mostre restabelecimento o status quo ante. [57]

Subjacente aos objectivos da Convenção da Haia de 1980 está a ideia de que a principal vítima do rapto internacional é a criança que é retirada “do meio social e familiar que conhece, das suas rotinas e amigos, que é privada da convivência com um dos pais ou de um ramo da família, que é muitas vezes instrumentalizada por um dos pais como forma de atingir o outro, que é levada para um país que não conhece, não falando por vezes o idioma, para conviver com pessoas que lhe são estranhas”. [58]

Alguns regimes processuais prevêem expressamente uma audiência preliminar entre os progenitores, sujeita ao princípio da imediação e da oralidade, a realizar num prazo muito curto, no qual o juiz tenta obter uma solução consensual, encaminhar os pais para a mediação ou, caso não seja possível, identificar cada uma das questões que impedem um regresso voluntário, podendo ainda sinalizar a situação junto dos serviços de protecção de crianças. [59]

Nesta audiência preliminar, o juiz pode ainda propor ou determinar o direito de convivência da criança com o progenitor privado desse contacto por força da deslocação ou retenção ilícita, designadamente durante a pendência do processo ou aproveitando a presença deste progenitor para a realização da audiência.


[57] MAGALHÃES, Gonçalo de Oliveira, “Aspectos da acção destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 39-40; FIALHO, António José, “Execução das decisões de regresso proferidas no âmbito da Convenção da Haia de 1980”, disponível em https://csm.org.pt/rijh/wp-content/uploads/2016/04/execucaodecisoes_ch1980.pdf

[58] GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, p. 52.

[59] Um bom exemplo desta solução é o que se encontra previsto no regime processual da Holanda aprovado pelo International Child Abduction Implementation Act.


Esta solução permite não apenas eliminar os efeitos nefastos decorrentes da falta de convivência da criança com o progenitor que se viu privado desse contactos pessoais mas também permite aferir se eventuais excepções que possam ser deduzidas relativamente ao regresso ou à convivência da criança são providas de algum fundamento.

A eventual conveniência ou necessidade de acautelar um regime de convivência entre a criança e o progenitor privado desses contactos, por força da deslocação ou retenção ilícita, pode ser justificada não apenas pela exigência de execução de um regime de visitas que possa ter sido implementado noutro Estado [60] mas também, na falta deste, pela necessidade de não quebrar os laços afectivos que a mudança ilícita da residência da criança sempre implicaria.

Este é mais um argumento para considerar que o processo tutelar comum com carácter urgente, atribuindo ao juiz uma grande amplitude de actos ou de diligências processuais, é mais adequado a servir de referência a um futuro modelo processual do que a providência tutelar cível de entrega judicial de criança, particularmente vocacionada para um determinado objectivo mas limitando o poder de gestão processual do juiz, para além de que este processo não é considerado adequado para a entrega da criança ao progenitor a quem se encontra confiada. [61]

Com efeito, não obstante os esforços para que o prazo das seis semanas seja tendencialmente observado, a verdade é que os tempos de duração média destes processos excedem em muito esse prazo justificando qualquer iniciativa que permita garantir a convivência durante o processo e reduzir os efeitos nefastos da separação entre a criança e o left-behind parent.


[60] E que constitui também um dos objectivos da Convenção da Haia de 1980 (artigo 1.º, alínea b)).

[61] Neste sentido, RAMIÃO, Tomé d’Almeida, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, 3.ª edição, Lisboa: Quid Juris, 2017, p. 216.



IX - O RECURSO DA DECISÃO

Os procedimentos tutelares cíveis são processos de jurisdição voluntária (artigo 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) o que significa que lhes são aplicáveis as regras previstas nos artigos 292.º a 295.º e 986.º a 988.º, todos do Código de Processo Civil.

Estabelece o artigo 989.º, n.º 2 do Código de Processo Civil que das resoluções proferidas segundos critérios de conveniência ou de oportunidade, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista [62] e o fundamento específico do recurso de revista é a violação de lei substantiva ou processual (artigo 674.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil) pelo que, não estando em causa qualquer violação de lei substantiva ou adjectiva, nos casos em que as resoluções tenham sido proferidas segundo critérios de conveniência ou de oportunidade, não será admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. [63]

Assim, “a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nos processos de jurisdição voluntária cinge-se à apreciação dos critérios normativos de estrita legalidade subjacentes à decisão, de modo a verificar se se encontram preenchidos os pressupostos ou requisitos legalmente exigidos para o decretamento de certa medida ou providência, em aspectos que se não esgotem na formulação de um juízo prudencial ou casuístico, iluminado por considerações de conveniência ou oportunidade a propósito do caso concreto.

Enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei substantiva ou adjectiva, o Supremo Tribunal de Justiça não pode apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade.

Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram. Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação, a lei restringiu a admissibilidade de recurso até à Relação.

A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É, nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído”. [64]


[62] Artigo 46.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

[63] Esta disposição normativa deve ser interpretada à luz do entendimento que tinha sido adoptado no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Abril de 1965, processo n.º 60184 (ALBERTO TOSCANO), Diário do Governo, 1.ª série, n.º 93, 28 de Abril de 1965, pp. 605-606, segundo o qual “nos processos de jurisdição voluntária em que se faça a interpretação dos preceitos legais em relação a determinadas questões de direito, as respectivas decisões são recorríveis para o Tribunal Pleno”.
Uma análise histórica muito completa desta interpretação pode ser consultada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2008, processo n.º 08B1203, MARIA DOS PRAZERES BELEZA.

[64] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Outubro de 2010, processo n.º 327/08, ÁLVARO RODRIGUES.


Tratando-se dos pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, a apreciação da respectiva verificação cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça.

Deste modo, a recorribilidade, em sede de revista nos processos de jurisdição voluntária, limita-se à aplicação de critérios de legalidade estrita. Em relação às outras, regidos segundo critérios de conveniência ou de outros com ampla margem de discricionariedade, não existe a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. [65]

Isto significa que os processos de regresso da criança admitem recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça quando não esteja em causa a aplicação de critérios de conveniência e de oportunidade o que pode subordinar o objectivo de regresso imediato da criança à condição de esgotamento dos meios processuais admitidos pela legislação nacional do Estado-membro em que a criança esteja ilicitamente retida ou tenha sido deslocada, [66] circunstância que não é inteiramente garantida pela atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso (artigo 32.º, n.º 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

A proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis define a existência de um único recurso, unificando esta questão em todos os Estados-Membros, independentemente da lei nacional, limitando assim as possibilidades de utilização do recurso como uma medida dilatória [67] e, deste modo, tornando igualmente necessária a definição de um regime de recursos destas acções de regresso no modelo processual interno.


[65] Sobre os critérios distintivos entre a jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária nesta questão, FIALHO, António José, Conteúdo e Limites do Princípio Inquisitório na Jurisdição Voluntária, Lisboa: Petrony, 2016, pp. 38-40.

[66] Acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2008 (3.ª secção), proc. n.º C-195/08 PPU, Inga Rinau.

[67] GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa, “A retenção ou deslocação ilícita de crianças na proposta de alteração do Regulamento Bruxelas II bis”, Revista Julgar, n.º 37, Janeiro-Abril 2019, pp. 56-57.


De igual modo, a urgência do procedimento pode justificar a atribuição de efeito devolutivo ao recurso das decisões proferidas. [68]


X - AS COMUNICAÇÕES JUDICIAIS DIRECTAS

A internacionalização das questões jurídicas e a procura de mecanismos adequados e eficazes de cooperação jurídica e judiciária internacional nem se consegue acompanhar ou ultrapassar a rapidez e a complexidade das relações familiares plurilocalizadas. É sabida a rapidez e a facilidade com que se pode viajar entre países, obter trabalho ou residência num país diferente, realizar ou completar os estudos ou formação, contrair casamento ou ter filhos mas a cooperação judiciária, nalguns casos, ainda continua dependente de instrumentos antigos, quase medievais ou pós-vestefalianos.

Apesar da complexidade e diversidade de ordenamentos jurídicos, é sempre através dos tribunais e dos juízes que os espaços de liberdade e de administração da justiça se hão-de concretizar e afirmar, por força de um sentimento partilhado de cooperação entre os juízes dos Estados envolvidos nessa cooperação, com o recurso a troca de experiências, ao cruzamento de conceitos e práticas, de culturas partilhadas sobre a justiça, moldadas pelos mesmos valores de abertura, partilha, compatibilidade, cooperação, confiança mútua e, acima de tudo, fazendo uso dos mais recentes, eficazes e informais meios de comunicação.

A cooperação judiciária assente nas redes judiciárias e nas comunicações judiciais directas tem demonstrado ser um elemento essencial ao estabelecimento de uma confiança mútua nos ordenamentos jurídicos envolvidos, no respeito pelas decisões proferidas pelas autoridades competentes dos Estados, harmonizando soluções jurídicas orientadas por princípios e boas práticas comuns.

Com o objectivo de facilitar a execução e o cumprimento das convenções relativas à protecção da criança, bem como de adoptar instrumentos de comunicação entre os juízes, a Rede Internacional de Juízes da Conferência da Haia permite estabelecer uma ligação entre os juízes envolvidos, apoiar, assistir ou cooperar com as autoridades centrais ou promover comunicações judiciais directas [69] que permitam obter informações sobre o estado dos processos, sobre a transferência de competências, trocas de opiniões ou de informações sobre a lei aplicável ou competência dos tribunais, sobre os direitos de custódia ou de visita, para evitar situações de litispendência ou para harmonizar decisões preventivas ou protectivas justificadas pela garantia do superior interesse da criança.


[68] Assim, caso seja interposto recurso da decisão de regresso pela pessoa que retirou ou reteve ilicitamente a criança, deve ser-lhe fixado efeito devolutivo (artigos 14.º da Convenção da Haia de 1980, 21.º do Regulamento Bruxelas II bis, artigo 23.º da Convenção da Haia de 1996 e 32.º, n.º 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) (neste sentido, BORGES, Beatriz Marques, “Rapto parental internacional: prática judiciária no tribunal de família e menores”, Revista Lex Familiae, Ano 8, n.º 16, 2011, pp. 82-83; BELEZA, Maria dos Prazeres, “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, Revista Julgar, n.º 24, Setembro-Dezembro 2014, p. 81).

[69] Sobre as Orientações relativas ao desenvolvimento da Rede Internacional de Juízes da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e aos Princípios Gerais das Comunicações Judiciais, incluindo as salvaguardas comummente aceites para as Comunicações Judiciais Directas em casos específicos, no âmbito da Rede Internacional de Juízes da Conferência da Haia (versão portuguesa disponível em http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/conferencia-da-haia-guia/downloadFile/attachedFile_f0/ORIENTACOES_COMUNICACOES_JUDICIAIS_DIRETAS.pdf?nocache=1442402293.94).


As comunicações judiciais directas são normalmente realizadas com o recurso a meios tecnológicos ao alcance dos juízes da rede que permitam uma comunicação segura, rápida e eficiente, devendo o método e a linguagem utilizados, na medida do possível, observar as preferências declaradas pelo destinatário.

A confiança mútua constitui um factor essencial neste tipo de comunicações, incentivando soluções pragmáticas e imaginativas que são, normalmente, aceites por força do conhecimento pessoal, dos contactos e da assistência recíproca prestada entre os juízes da rede entre si e os juízes nacionais.

Deste modo, também o regime processual deverá prever os procedimentos legais que devam ser observados nas comunicações judiciais directas e na intervenção das redes judiciárias, [70] respeitando as orientações internacionais que se encontram implementadas e em execução há vários anos.


[70] Um bom exemplo desta previsão no ordenamento jurídico espanhol consta do artigo 4.º da Ley n.º 24/2015, de 30 de Julho (aprova a Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Civil) e dos artigos 76.º a 85.º do Regulamento 5/95, de 7 de Junho, do Consejo General del Poder Judicial, que aprova a Rede Judiciaria de Cooperação Internacional em Espanha), alterado pela Resolução Normativa 5/2003, de 28 de Maio, da Assembleia Plenária do Consejo General del Poder Judicial.



XI - A COMUNICAÇÃO DAS DECISÕES

A providência tutelar cível de regresso é iniciada pelo Ministério Público [71] junto do juízo de família e menores ou do juízo local da área onde se encontre a criança [72] instruída com o expediente remetido pela autoridade central portuguesa.

Recebido o requerimento, o juiz verifica os pressupostos de que depende o prosseguimento da providência e determina as diligências que considere necessárias o que inclui, normalmente, a comunicação ao Sistema de Informação SCHENGEN dos dados de identificação da criança e do progenitor com quem se encontra com vista a evitar nova deslocação, a audição da criança e desse progenitor e outras diligências probatórias que o caso justifique.

Caso seja decidido o regresso da criança ao Estado de origem, o tribunal comunica normalmente a decisão à autoridade central com vista à sua intervenção na articulação dos procedimentos de regresso mas, por diversas vezes, ocorrendo o regresso voluntário ou sendo este recusado, não é feita qualquer comunicação à autoridade central portuguesa, nem por iniciativa do tribunal, nem por iniciativa do Ministério Público que recebeu o expediente, sendo ainda esta omissão ainda mais evidente em caso de recurso.

É também sabido que as decisões judiciais publicadas correspondem a uma parcela muito limitada do total das decisões judiciais que são produzidas nos tribunais portugueses, sobretudo tendo em conta que essa reduzida amostragem se restringe às decisões finais proferidas pelos tribunais superiores, inexistindo qualquer forma de adequado conhecimento das decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância.

Este desconhecimento sobre a tramitação processual seguida nestas acções, sobre os critérios concretos de decisão, sobre as dificuldades manifestadas perante alguns problemas, sobre a forma e o modo como se interpretam e aplicam determinados conceitos jurídicos, aliado à pulverização das competências dos tribunais portugueses, tem dificultado uma análise pormenorizada sobre a aplicação concreta das disposições da Convenção da Haia de 1980 e dos instrumentos que a complementam.


[71] É também justificada uma referência à eventual necessidade de um conjunto de orientações por parte do Ministério Público relativamente à especial posição que este ocupa no âmbito da providência de regresso da criança, não apenas pela legitimidade activa que lhe cabe mas também pelas competências que lhe estão atribuídas de representação da criança, de controlo da legalidade e demais interesses de ordem pública subjacentes a estes procedimentos.

A Circular de la Fiscalia n.º 6/2015, de 17 de Novembro, sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, adoptada pelo Ministério Público de Espanha, constitui um bom exemplo de uma iniciativa bem fundamentada e completa destinada a facilitar o trabalho dos magistrados do Ministério Público quanto tenham que intervir nestes procedimentos. Explicitando o processo espanhol e a aposta na celeridade resultante desta circular, FORCADA MIRANDA, Francisco Javier, “El nuevo proceso español de restitución o retorno de menores en los supuestos de sustracción internacional: La decidida apuesta por la celeridad y la novedosa Circular de la Fiscalía 6/2015 (Parte II)”, Bitácora Millenium, n.º 3 (2016), disponível em http://www.millenniumdipr.com/archivos/1499935876.pdf

[72] Artigo 113.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 86/2017, de 27 de Dezembro, e pela Lei n.º 19/2019, de 19 de Fevereiro, e 9.º, n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.


Assim, a exemplo doutros Estados, um modelo processual de aplicação destas normas deverá prever um mecanismo de comunicação obrigatória de todas as decisões proferidas no âmbito destes processos que permita a obtenção de informação adequada a criar uma base de dados completa e segura sobre as matérias abordadas, não apenas para facilitar as tarefas atribuídas às redes judiciárias e às autoridades centrais mas também para facilitar o estudo e análise da jurisprudência produzida sobre o assunto.


XII - A DECISÃO E EXECUÇÃO DE REGRESSO PELO ESTADO REQUERENTE

A Convenção da Haia de 1980 é aplicada nas relações entre os Estados-Membros da União Europeia mas, com excepção da Dinamarca, essa aplicação deve ser complementada pelas disposições do Regulamento Bruxelas II bis quando esteja em causa uma deslocação ou retenção ilícita de crianças (artigos 2.º, n.º 11 e 11.º, ambos do Regulamento).

Considerando a interpretação restritiva que deve ser conferida às excepções que impedem o regresso da criança, os tribunais do Estado-Membro requerido devem proferir uma decisão de regresso e garantir a sua execução logo que possível mas, se o tribunal desse Estado-Membro proferir uma decisão de retenção da criança, deve enviar uma cópia dessa decisão ao tribunal competente do Estado-Membro de origem, o qual notificará as partes (artigo 11.º, n.os 6 e 7 do Regulamento Bruxelas II bis).

Nestes casos, o Regulamento Bruxelas II bis prevê um procedimento especial o qual determina que o tribunal de origem deve notificar as informações recebidas às partes e convidá-las a apresentar as suas observações, no prazo de três meses a contar da data de notificação, para indicarem se pretendem que o tribunal do Estado-Membro de origem analise a questão da residência da criança.

Se as partes não apresentarem observações, o processo é imediatamente arquivado pelo tribunal de origem mas este tem o dever de examinar a questão, o mais rapidamente possível se, pelo menos, uma das partes apresentar observações.

O juiz do tribunal de origem deve proceder a uma justa representação os elementos mais importantes, sublinhando os factores que influenciaram a decisão de retenção, designadamente as provas que fundamentaram a decisão como os relatórios sociais elaborados, as actas de audição da criança e outros elementos probatórios.

O tribunal de origem que profere uma decisão dispõe de competência para apreciar o mérito da causa, não se restringindo à decisão sobre a residência mas também podendo abranger os direitos de visita, aplicando determinadas regras processuais durante a apreciação da acção cuja conformidade permitirá depois emitir uma declaração executória (artigo 42.º, n.º 2 do Regulamento Bruxelas II bis).

O juiz do tribunal de origem deverão garantir que: 

a) Todas as partes tenham a oportunidade de ser ouvidas;

b) A criança tenha a oportunidade de ser ouvida, excepto se essa audição for considerada inadequada em função da sua idade ou maturidade;

c) A sua decisão deve ter em conta a justificação e as provas que fundamentam a decisão contra o regresso da criança.

Assim, pode tornar-se necessário estabelecer uma cooperação entre os dois juízes para que o juiz do Estado-Membro de origem disponha de todos os elementos necessários para aferir os fundamentos e as provas que justificam a decisão de retenção da criança no Estado-Membro requerido, o que pode ser concretizado através da comunicação entre ambos ou com o recurso às redes judiciárias ou às autoridades centrais.

Se o tribunal de origem proferir uma decisão que não implique o regresso da criança, o processo é arquivado mas se, pelo contrário, proferir uma decisão que implique o regresso da criança, a mesma é directamente reconhecida e executória no outro Estado-Membro, desde que acompanhadas de uma certidão, dispensando o requerimento de exequatur e impossibilitando a contestação do reconhecimento dessa decisão.

O procedimento de execução é regido pelo direito nacional sendo apenas exigido que as autoridades nacionais apliquem normas que garantam uma execução rápida e eficaz da decisão proferida por forma a não prejudicar os objectivos da Convenção da Haia de 1980 [73], procedimento esse ainda inexistente no regime processual português.


[73] Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de Abril de 2003 (4.ª secção), proc. n.º 56673/2000, Iglesias Gil e A.U.I. vs Espanha; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 25 de Janeiro de 2000 (1.ª secção), proc. n.º 31679/96, Ignaccolo Zenide vs Roménia; Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26 de Junho de 2003 (3.ª secção), proc. n.º 48206/99, Maire vs Portugal.



XIII - O ADVOGADO DA CRIANÇA E DOS PAIS

O patrocínio forense é considerado um elemento essencial à boa administração da justiça tendo subjacente o reconhecimento da função social do advogado na administração da justiça, assegurando o exercício do ius postulandi, ou seja, a representação jurídica das partes e condução técnico-jurídica do processo (artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa).

As normas de organização judiciária estabelecem que o patrocínio forense por advogado constitui um elemento essencial na administração da justiça, sendo admissível em qualquer processo e não podendo ser impedido perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada (artigo 12.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

O advogado é o profissional do foro cuja actividade se desdobra em “três vertentes: de apoio e informação jurídica, de instância de resolução amigável de conflitos e de mandatário processual das partes”. [74]

Ao estabelecer que o patrocínio forense é exclusivamente exercido por advogados mas, ao mesmo tempo, admitindo a existência de excepções, a opção expressa do legislador admite que, nalguns casos, a constituição de advogado não seja obrigatória, quer pelo valor económico dos conflitos, pela natureza dos interesses controvertidos ou pela inexistência de discussões de âmbito jurídico.

A qualificação das providências tutelares cíveis em que esteja em causa o regresso de crianças ilicitamente deslocada ou retidas como processos de jurisdição voluntária implica que não é obrigatória a constituição de advogado, salvo na fase de recurso (artigos 986.º, n.º 4 do Código de Processo Civil e 18.º, n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

Contudo, é obrigatória a nomeação de advogado à criança quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto, sejam conflituantes, e ainda quando a criança com maturidade adequada o solicitar ao tribunal (artigo 18.º, n.º 2 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).


[74] ARNAUT, António, Iniciação à Advocacia - História, Deontologia, Questões Práticas, 11.ª reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 35.


Esta obrigação consta igualmente do artigo 103.º, n.º 2 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo [75] e destina-se a concretizar as obrigações decorrentes do artigo 9.º, n.º 2 da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças e da Directriz 37 das Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça adaptada às Crianças [76] as quais determinam a nomeação de advogado à criança quando:

a) Os interesses da criança, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes;

b) A criança com a maturidade adequada o solicitar ao tribunal. 

A exemplo do que sucede noutros Estados, é nosso entendimento que a natureza dos interesses em conflito no âmbito das providências de regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida e as questões jurídicas que podem ser suscitadas deveriam justificar a necessidade de constituição obrigatória de advogado ou a nomeação de patrono nestes processos.

A especialização também deve ser exigida no plano da assistência técnico-jurídica e esta só se mostra possível com a intervenção no processo de advogados preparados para lidar com a especificidade destas questões jurídicas, conhecedores dos instrumentos processuais ao seu alcance e, principalmente, habilitados a conhecer os ordenamentos jurídicos que possam estar em causa e, deste modo, prestar o apoio técnico-jurídico aos pais que lhes permitam escolhas mais conscientes sobre as opções que lhes possam ser colocadas nestes processos.

Não vislumbramos nenhum fundamento de natureza jurídica ou económica para solução diversa, ou seja, que justifique a desnecessidade de constituição obrigatória de advogado nos processos em que esteja em causa a deslocação ou retenção ilícita de crianças ou o exercício do regime de convivência envolvendo uma situação jurídica plurilocalizada.

Se o fundamento da desnecessidade de constituição obrigatória de advogado reside na circunstância de não se suscitarem questões jurídicas relevantes nos processos de jurisdição voluntária, esse fundamento não se verifica nos processos de regresso já que as questões jurídicas podem assumir complexidades que os pais não conseguirão ultrapassar sem o necessário aconselhamento especializado que só o advogado pode fornecer e, por outro lado, perante um modelo processual em que cabe ao Ministério Público a iniciativa para instaurar estas acções, não é possível considerar que este representa os interesses do progenitor requerente ainda que deduza o pedido em função da iniciativa deste no Estado de origem.


[75] É ainda a obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de patrono no debate judicial aos pais quando esteja em causa a aplicação de medida de confiança judicial com vista a futura adopção e, em qualquer caso, à criança ou jovem (artigo 103.º, n.º 4 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, na redacção dada pela Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro).

[76] RAMIÃO, Tomé d’Almeida, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, 3.ª edição, Lisboa: Quid Juris, 2017, pp. 70-71.


A questão económica não pode deixar de ser considerada já que alguns pais poderão não ter dispor de recursos para constituir um advogado habilitado a representá-los num processo desta natureza tornando assim essencial uma resposta no âmbito da assistência judiciária, obrigação que decorre do artigo 26.º da Convenção da Haia de 1980 e à qual Portugal não formulou qualquer reserva ou objecção.

Assim, também a discussão desta solução deve envolver todos os interessados uma vez que o plano da especialização dos advogados, há muito reclamado, não é indiferente às demais profissões jurídicas e, por maioria de razão, aos próprios advogados.


XIV - NOTAS FINAIS SOBRE A TRAMITAÇÃO PROCESSUAL

As orientações e recomendações aprovadas no âmbito da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado relativamente aos regimes processuais que sejam definidos pelos Estados Contratantes referem um conjunto de princípios que se podem resumir nas seguintes ideias:

1.ª - Qualquer modelo processual adoptado deverá respeitar os objectivos da Convenção da Haia de 1980 e os demais instrumentos internacionais relativos ao superior interesse da criança e dos direitos fundamentos desta e dos progenitores, tal como se encontram consagrados nas disposições que vinculam cada um dos Estados;

2.ª - Os procedimentos de regresso deverão ter lugar perante tribunais especializados, na 1.ª instância e na fase de recurso, sendo recomendada a concentração de competências em qualquer uma das fases;

3.ª - O procedimento deverá garantir o direito de audição e de participação da criança, de acordo com a sua idade e maturidade, garantindo que a mesma seja realizada num ambiente adequado, por profissionais especializados e, caso se justifique, sendo assegurada a assistência técnico-jurídica da criança;

4.ª - Qualquer modelo processual deverá garantir o adequado cumprimento das obrigações estabelecidas para as autoridades centrais, incluindo o dever de colaboração que deva ser prestado por outras entidades na prossecução das especiais atribuições que competem àquelas;

5.ª - O modelo processual escolhido deverá garantir um procedimento rápido e expedito que, preferencialmente, garanta a obtenção de uma decisão num prazo razoável (preferencialmente num período de seis semanas);

6.ª - Quando se mostre possível, devem ser incentivadas e garantidas as condições necessárias para um regresso voluntário da criança, em qualquer fase do processo de regresso, designadamente através da mediação;

7.ª - As excepções ao pedido de regresso devem ser objecto de uma interpretação restritiva e esse regresso não deve ser recusado se o Estado requerente as condições necessárias a proporcionar um retorno seguro da criança e a adopção de medidas de protecção que, no caso concreto, se mostrem necessárias;

8.ª - O recurso da decisão que determine o regresso deve ser apreciado num prazo muito curto e, preferencialmente, deve existir um único grau de recurso;

9.ª - Na pendência do processo de regresso, devem ser garantidos os direitos de acesso da criança com o progenitor que ficou privado desse contacto, de acordo com o conceito de que os mesmos abrangem o direito de ter a criança consigo durante um determinado período de tempo ou lugar diferente do lugar em que esta se encontra; este direito só pode ser limitado ou restringido se for justificado pelo superior interesse da própria criança;

10.ª - Os juízes envolvidos nos processos de regresso ou de exercício dos direitos de convívio devem poder dispor dos mecanismos de comunicação judicial directa, através das redes judiciárias e dos respectivos juízes de ligação ou pontos de contacto nacionais, mecanismo de que as partes deverão ter conhecimento.

Boa parte destes princípios é já defendida pela doutrina [77] e pela jurisprudência nacionais pelo que não será difícil a sua concretização num modelo processual específicos para os processos de regresso ou em que esteja em causa a execução da Convenção da Haia de 1980.

Outros carecem de adequada densificação ou concretização, exigência que consideramos inquestionável não apenas pelo sucesso dos ordenamentos jurídicos estrangeiros que adoptaram os seus próprios modelos processuais mas também por via das obrigações que irão ser estabelecidas nalguns instrumentos internacionais que complementam a Convenção da Haia de 1980.


[77] BELEZA, Maria dos Prazeres, “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, Revista Julgar, n.º 24, Setembro-Dezembro 2014, pp. 67-87; BORGES, Beatriz Marques, “Rapto parental internacional: prática judiciária no tribunal de família e menores”, Revista Lex Familiae, Ano 8, n.º 16, 2011, pp. 65-83; MASSENA, Ana, “Reflexão conjunta sobre a aplicação da Convenção da Haia de 1980 à luz do princípio do superior interesse da criança”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 2, 2.ª semestre de 2014, Lisboa: Almedina, pp. 133-170; FIALHO, António José, “Execução das decisões de regresso proferidas no âmbito da Convenção da Haia de 1980”, disponível em https://csm.org.pt/rijh/wp-content/uploads/2016/04/execucaodecisoes_ch1980.pdf


Este contributo deixou intencionalmente de fora outras questões igualmente carecidas de densificação adjectiva no plano interno, nomeadamente os procedimentos de reconhecimento de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidades parentais que o Regulamento Bruxelas II bis atribui aos juízos de família e menores, a execução do direito de convivência previsto no artigo 21.º da Convenção da Haia de 1980 e a tramitação dos pedidos de transferência de competência previstos nos artigos 8.º e 9.º da Convenção da Haia de 1996 e 15.º do Regulamento Bruxelas II bis.

É certo que esta ausência de densificação normativa não tem impedido a aplicação ou execução destes instrumentos de direito internacional mas, ao mesmo tempo, também não tem sido imune às dificuldades que procurámos enunciar neste trabalho, para além de que, a breve trecho, irão colidir ou ter dificuldade em se adequar a determinadas obrigações assumidas especialmente no âmbito da União Europeia.

São obrigações e exigências decorrentes da necessidade de garantir processos justos e equitativos que permitam decisões num prazo razoável mas, sobretudo, são obrigações e exigências que deverão também permitir uma melhor densificação do superior interesse da criança que seja ilicitamente deslocada ou retida e, deste modo, procure garantir que as suas heranças culturais e nacionais sejam asseguradas por todos os Estados envolvidos.

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