A Diplomacia e o Direito da Família

A Diplomacia e o Direito de Família

 

O princípio da não ingerência foi sempre um princípio basilar das relações diplomáticas – no respeito pela independência e soberania dos povos e a sua liberdade – que era omnipresente no âmbito do Direito da Família nas relações entre a Família e o Estado.

Progressivamente, vem-se assistindo a uma cada vez maior interferência, nomeadamente por uma enorme “vaga” de legislação cuja minuciosidade e tecnicidade não deixa de assustar quem com ela lida diariamente, do Estado na Família.

Não quer dizer que isso seja necessariamente novo, mas a verdade é que nunca como hoje, o Estado correu tanto o risco de ter uma secção pública dentro de cada “casa” de família, com todos os custos e riscos que isso envolve, nomeadamente da perda do sentido de ambas as instituições.

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Quanto mais recorre o legislador a novas figuras no âmbito do direito de família (veja-se o caso da violência doméstica ou do abuso de menores) mais complexas se tornam as questões e mais demorada se torna a resolução das mesmas. Além de que, esses instrumentos, muitas vezes por força da malícia humana ou falta de educação, em vez de fatores de resolução passam a ser fatores de pressão ou “expedientes“ para obter outros resultados muitas vezes alheio ao que verdadeiramente está em discussão.

Não creio que, enquanto não houver uma enorme intolerância, seja da família, seja dos próprios técnicos do Estado (nomeadamente julgadores) a comportamentos abusivos, incoerentes ou mal-educados e que haja uma perceção clara do público a essa intolerância, seja possível alterar “o estado das coisas”.

A família, tal como o corpo de um doente, cada vez que tem uma crise – que justifique a intervenção e o envolvimento do Estado com todos os custos inerentes – ou se deixa que em tempo útil e por si só seja capaz de resolver o problema, ou senão, a intervenção do “médico” deve ser rápida e imediata para permitir que depois desse auxílio aquela, por si mesma consiga restabelecer a função para que foi criada – apoiar e desenvolver a realização plena de cada membro que a compõem no conjunto de todos.

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Vale a este propósito meditar num texto do último livro do Cardeal Robert Sarah (em matéria de família muito se pode aprender com os africanos) a “Força do Silêncio” onde o mesmo relata o testemunho de uma Mãe sobre liberdade e ingerência na educação:

“Quando os meus filhos eram pequenos, e eu pensava por eles e decidia por eles, tudo era fácil: só estava em causa a minha liberdade. Mas quando chegou a altura em que me apercebi de que o meu papel consistia em habituá-los a escolhas progressivas, senti-depois de ter consentido nisso-que se instalava em mim a inquietação. Deixando que os meus filhos tomassem as suas próprias decisões, e portanto se sujeitassem aos seus próprios riscos, sujeitei-me eu também ao risco de ver surgir outras liberdades para além da minha. Embora, demasiadas vezes tenha continuado a optar em vez dos meus filhos, fazia-o, devo confessá-lo, para poupá-los ao sofrimento resultante de  uma opção que eles provavelmente viriam a lamentar, mas também, talvez mais, para não correr eu o risco de passar por uma discordância entre a opção deles e  aquela que eu tinha gostado que eles seguissem. Uma falta de amor da minha parte, portanto, porque agindo dessa forma eu queria sobretudo proteger-me de um possível sofrimento, aquele que senti sempre que os meus filhos seguiram um caminho diferente daquele que me parecia ser o melhor para eles”

Desta forma, pelo respeito profundo pela liberdade de todos e pela responsabilização dos seus atos se evitará a crescente desresponsabilização da Família e de todos os seus diferentes membros, que por as “descarregarem” no Estado leva a que paradoxalmente, este quanto mais tem para fazer menos faz….

 

João Perry da Câmara

Partner da Rogério Alves & Associados

Responsável pelo núcleo de Direito da Família e Sucessões

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Onde deve ser pedida a alteração da decisão de atribuição da utilização da casa de morada de família?

Onde deve ser pedida a alteração da decisão de atribuição da utilização da casa de morada de família?

 

Nos termos do artigo 990º, nº 4 do Código de Processo Civil, ainda que estejam findos os autos de divórcio, deve correr por apenso aos mesmos, o pedido de alteração da decisão de atribuição da utilização da casa de morada de família, na medida em que se está perante uma competência por conexão, o que significa que a competência de um tribunal pode ser alargada por via de um vínculo estabelecido em função das partes ou do objeto da causa.

Desta competência por conexão resulta que, a alteração da decisão de atribuição da utilização da casa de morada de família, não está incluída nas competências atribuídas às Conservatórias do Registo Civil, no Decreto-Lei 272/2001 de 13 de outubro.

Mais, não se deve entender que, nos casos em que estejam findos os autos de divórcio, a previsão do nº 4, do artigo 990º do Código de Processo Civil, colide com a previsão do artigo 5º, nº 1, alínea b) e nº 2 do mencionado Decreto-Lei 272/2001.

Ou seja, se o processo de divórcio tiver corrido na Conservatória do Registo Civil e, assim, aí tenha sido homologado o acordo relativo à atribuição da utilização da casa de morada de família, a alteração deste acordo, também por consenso, pode ser pedida perante a Conservatória do Registo Civil, nos termos do Decreto-Lei 272/2001.

Diferentemente, se não existir acordo quanto à alteração, este pedido já não será da competência da Conservatória do Registo Civil, mas sim dos Tribunais de Familia e Menores, fundando-se esta competência no nº 4, do artigo 990º do Código de Processo Civil, tomando em conta que com o Decreto-Lei 272/2001 a competência das Conservatórias do Registo Civil se cinge aos procedimentos tendentes à formação do acordo das partes.

Por fim, caso o divórcio tenha sido judicialmente decretado, a alteração da decisão relativa à atribuição da utilização da casa de morada de família, terá que correr por apenso aos autos de divórcio, ainda que já estejam findos, mesmo que exista consenso quanto à alteração a pedir.

Este é, nomeadamente, o entendimento sufragado no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 7 de fevereiro de 2017, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/75fd999c412cfa90802580df0052714a?OpenDocument

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Audição da criança

AUDIÇÃO DA CRIANÇA

Rute Agulhas[1] & Joana Alexandre[2]

 

As crianças têm o direito a ser ouvidas. Sim, estamos perante um direito, e não uma obrigação. O direito a expressar a sua opinião, pensamentos e sentimentos. O direito a exprimir a sua vontade, os seus desejos, os seus receios.

Estudos conduzidos com crianças após serem ouvidas demonstram que estas expressam mais sentimentos positivos, maior confiança no processo judicial e percecionam as decisões finais como mais equitativas, mesmo quando estas não traduzem a sua vontade. Porque sentem que fizeram parte do processo de tomada de decisão. No entanto, este output positivo apenas é observado quando o processo de audição cumpre determinados requisitos. Quando as crianças são bem ouvidas. Caso contrário, estamos perante um processo em que é elevada a probabilidade de revitimização da criança.

Como assegurar que este processo é bem conduzido? Que aspetos devem ser tidos em conta?

Hoje é dia 1 de junho, Dia Mundial da Criança e como forma de assinalar este dia apresentamos publicamente o “Guia de Boas Práticas para a Audição da Criança”[3]. Neste, para além de um enquadramento legal sobre o processo de audição da criança, elaborado pelo Juiz de Direito António Fialho, sistematizamos aquelas que podem considerar-se Boas Práticas nesta matéria.

De uma forma geral, identificam-se quatro áreas com um impacto significativo na forma como o processo de audição da criança decorre. Passamos a apresentar cada uma destas áreas.

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Variáveis ambientais

As variáveis ambientais relacionam-se com o setting onde decorre a audição. Este deve ser privado, informal e garantir a confidencialidade, para além de disponibilizar alguns materiais que possam ser facilitadores do processo de comunicação (especialmente com crianças mais novas) e, ainda, contribuir para reduzir a ansiedade da criança. Materiais adequados são, por exemplo, material de desenho, bonecos que representem a família (dos dois sexos e de, pelo menos, três gerações – crianças, pais e avós; idealmente, também de diferentes origens populacionais), legos, plasticina ou blocos de madeira. Ou seja, materiais que permitem que a criança se projete, e que não contenham em si qualquer narrativa prévia.

A decoração do espaço deve ser neutra, com poucos elementos distratores. Adultos e criança devem estar sentados ao mesmo nível, preferencialmente sem uma mesa pelo meio.

Relativamente ao número de entrevistadores, é sugerido que este seja o menor possível. Podemos imaginar como se sente uma criança perante quatro, cinco, às vezes ainda mais adultos…

Se estes devem, ou não, estar trajados, depende também da forma como cada criança em particular perceciona essa questão. Se, por um lado, existem crianças para quem os trajes podem ser sentidos como intimidatórios e geradores de ansiedade, por outro, existem crianças que reagem de forma tranquila e positiva face a esta situação. O traje do juiz ou do advogado não é mais do que isso mesmo. Um traje. Tal como o traje do bombeiro, do médico ou do polícia. Para algumas crianças, ser entrevistada por um adulto trajado é até sentido como motivo de orgulho. Assim, no que respeita a esta questão em particular, sugerimos que os entrevistadores perguntem à criança como se sente mais confortável. Quando não sabemos como proceder, perguntar à criança é geralmente uma boa opção.

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Variáveis da entrevista

Não chega proporcionar um ambiente tranquilo e adequado às necessidades de desenvolvimento da criança. É fundamental que a entrevista seja conduzida de uma forma adequada, o que implica uma sequência de diferentes fases, com objetivos distintos.

Ainda antes do início da entrevista deve existir uma primeira fase de preparação, com uma clara sistematização das áreas que irão ser abordadas, tendo em conta a natureza concreta do processo. Segue-se uma fase de estabelecimento de relação, em que o entrevistador se apresenta, a si e aos outros (eventuais) adultos presentes, e explica todos os procedimentos, desde os objetivos da entrevista até à forma de registo da mesma (escrito, áudio ou vídeo). As expectativas da criança devem também ser avaliadas, na medida em que, muito frequentemente, observam-se expectativas desajustadas. Por fim, devem ser clarificadas as regras da entrevista. Estas regras relacionam-se com o facto de ser importante a criança saber que pode responder que não sabe, não se lembra ou não tem a certeza. A criança deve ainda ser ajudada a compreender que deve apenas responder com a verdade e sobre aquilo que se recorda. Não deve tentar adivinhar ou inventar respostas. Pode também colocar questões ou dúvidas, caso sinta essa necessidade.

A esta primeira fase deve seguir-se um outro momento em que pretende conhecer-se aquela criança. Estabelecer uma relação de confiança enquanto se exploram temas neutros, como a escola, as atividades preferidas, os amigos. Esta fase deve ser conduzida com recurso a questões abertas, promovendo um relato livre e espontâneo. Pretende-se também avaliar de que forma a criança se expressa, como narra eventos, que vocabulário utiliza, e se consegue responder a questões como ‘O quê’, ‘Onde’, ‘Quando’, ‘Quem’ e ‘Como’.

Após esta fase o entrevistador deve, então, começar a explorar o chamado cerne da entrevista, que se relaciona com o processo em causa. Sejam as dinâmicas familiares com suspeita de qualquer forma de mau trato, os conflitos em contexto de regulação das responsabilidades parentais, um processo de adoção, um processo tutelar educativo, ou outro. Em qualquer uma dos casos, deve procurar-se promover um relato espontâneo, com recurso a questões abertas que serão, de forma progressiva, substituídas por questões mais focadas e diretivas. Questões sugestivas, que contém em si uma sugestão de resposta, questões formuladas na negativa, múltiplas questões ou questões coercivas são totalmente inapropriadas, na medida em que podem contaminar o relato da criança, deixá-la confusa ou, ainda, potenciar sentimentos de culpa e vergonha.

Algumas estratégias facilitadoras de comunicação, como o resumo, a paráfrase e as afirmações empáticas devem ser utilizadas de forma articulada com as questões. A audição da criança não deve ser um interrogatório. A criança deve sentir que lhe é dado tempo e espaço para pensar e para relatar os factos de uma forma compreensiva.

Após recolha de toda a informação que se considere pertinente, é importante fazer um resumo geral que permita, à criança, corrigir ou acrescentar algo ao que foi dito.

A entrevista deve terminar de uma forma novamente mais aberta e com temas neutros, permitindo o esbatimento gradual da ansiedade.

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Variáveis da criança

A entrevista deve ser adequada à idade e nível de desenvolvimento da criança - cognitivo, emocional, moral, social e motivacional. Isto implica, por parte do entrevistador, saber integrar aquilo que é normativo, ou comummente esperado numa determinada idade, com as especificidades e idiossincrasias de cada criança em particular. Qual a sua noção de tempo e espaço? Em que medida consegue compreender e responder a questões mais abstratas? De que forma consegue aceder às suas memórias e narrá-las de uma forma lógica e coerente?

Sobre as variáveis da criança, o “Guia de Boas Práticas para a Audição da Criança” apresenta uma sistematização das principais características de funcionamento na idade pré-ecolar, idade pré-escolar e adolescência, períodos de desenvolvimento que encerram, em si, desafios muito diversos.

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Variáveis do entrevistador

Nesta secção procura-se que o leitor tenha conhecimento de um conjunto de processos mais automáticos que influenciam a emissão de julgamentos e os processos de tomada de decisão. Atendendo à enorme quantidade de informação com que todos nós somos diariamente confrontados, habitualmente socorremo-nos de um conjunto de “atalhos mentais” que nos ajudam a simplificar e a interpretar a informação recebida. Falamos não só de heurísticas e de enviesamentos, mas também do modo como as nossas crenças, estereótipos e preconceitos podem moldar a forma como olhamos uma dada situação. Um dos erros mais comuns consiste em associarmos dois aspetos que podem não ter uma associação entre si; por exemplo considerar que se a criança não chora então não está em sofrimento; trata-se de um exemplo das chamadas correlações ilusórias. Tomar consciência de processos que são em si automáticos permite tomar conhecimento sobre algumas variáveis que influenciam o modo como se pensa uma dada entrevista e o modo como se olha inicialmente para um dado caso. A literatura mostra também que após uma primeira impressão a tendência é para procurar e reter informação de forma seletiva, coerente com a (primeira) impressão já construída. Somos, de facto, resistentes a informação contrária às nossas expectativas, por isso é fundamental ter consciência sobre estes processos,

No final do Guia de Boas Práticas é apresentada uma checklist que sistematiza os principais aspetos relativos a estas quatro grandes variáveis. De preenchimento rápido e fácil, permite ao entrevistador efetuar uma auto-avaliação e monitorizar a forma como conduz a audição de cada criança, permitindo, desta forma, identificar aspetos positivos e aspetos a melhorar. Porque é importante aumentar conhecimentos sobre como ouvir crianças. Mas isso não chega. É fundamental monitorizarmos a nossa prática, de modo a desenvolver competências de entrevista.

Para que as crianças sejam bem ouvidas.

 

[1] Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicoterapia e Psicologia da Justiça. Terapeuta Familiar e perita forense. Professora assistente convidada e investigadora no ISCTE-IUL.

[2] Disponível para download gratuito no site do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.

 

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