Falsas memórias e sugestionabilidade infantil nos contextos de alienação parental

Falsas memórias e sugestionabilidade infantil nos contextos de alienação parental 

Fernanda Molinari[1]

Modesto Mendes[2]

 

Introdução

Pela perspectiva psicodinâmica, a Alienação Parental é caracterizada por um conjunto sintomático, pelo qual o progenitor alienador modifica a consciência do seu filho, através de estratégias de atuação, algumas de natureza inconsciente, com o objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir seus vínculos com o outro progenitor (Freitas, 2014).

Na esteira desses entendimentos, a Alienação Parental consiste em programar uma criança para odiar, sem motivo, um de seus genitores até que a própria criança ingresse na trajetória de desconstrução desse genitor (Molinari & Trindade, 2014).

Todo este processo, inevitavelmente, provoca um desequilibrio emocional na criança, afetando o seu desenvolvimento. A criança vê nascer em si, contra a sua vontade, assente em motivos falsos, um sentimento de revolta, um ódio perante o progenitor, com todas as consequências comportamentais e perturbação interior que tal estado implica, constituindo um fator de perigo ou, pelo menos, de perturbação do equilíbrio emocional da criança (Sá; Silva, 2011).

 Alienação Parental: considerações sobre a sua psicodinâmica

A Alienação Parental, enquanto fenômeno social, psicológico e jurídico, tem sido uma constatação frequente no âmbito do direito de família. Esse ramo da prática forense, aliás, é aquele em que fenômenos relacionados à Psicologia Forense adquirem grande evidência, sendo que a Alienação Parental, até há poucos anos desconhecida, encontra-se hoje teoricamente identificada (Dias, 2010; Feitor, 2012; Freitas, 2014; Gardner, 1985; Podevyn, 2001; Madaleno & Madaleno, 2013; Trindade, 2014; Sá & Silva, 2011; Souza, 2014) e com seus efeitos jurídicos, no Brasil, regulados.

Logo após a separação, quando ainda o nível de conflitualidade é intenso, é comum surgirem problemas e preocupações com as primeiras visitas dos filhos ao outro progenitor, pois fantasias, medos e angústias ocupam o imaginário dos pais e dos próprios filhos, ainda não acostumados com as diferenças impostas pela nova organização da família (Trindade, 2014).

A ruptura conjugal afeta de diferente forma cada um dos elementos da família, obrigando à redefinição dos papéis (Machado & Sani, 2014). O divórcio não significa a extinção da família, mas antes uma reorganização e reestruturação de novas dinâmicas familiares, com diferentes graus de complexidade, e adaptação para cada um dos seus membros (Rosmaninho, 2010). Neste novo contexto relacional, o divórcio deverá ser entendido como um processo que ocorre no ciclo vital da família, alterando a sua estrutura, mas que não é o fim da família, apenas a transforma (Cano, Gabarra, Moré, & Crepaldi, 2009).

O conceito de Alienação Parental foi formulado pelo psiquiatra infantil forense Richard A. Gardner, professor de psiquiatria clínica no Departamento de Psiquiatria Infantil na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, a partir do seu trabalho como perito particular. Gardner (1985; 1991; 1998), durante a sua atuação profissional, verificou um grande número de pais – sobretudo mães – que tentavam excluir o outro genitor da vida dos filhos, implantando ódio ou intensificando ressentimentos existentes nos filhos com relação ao genitor não guardião (Barbosa & Castro, 2013).

O reflexo dessas ações nos filhos foi denominada por Gardner (1985; 1991) de Síndrome de Alienação Parental, a qual conceituou como “o transtorno pelo qual um progenitor transforma a consciência dos seus filhos, mediante várias estratégias, com objetivo de impedir, ocultar e destruir os vínculos existentes com o outro progenitor, que surge principalmente no contexto da disputa da guarda e custódia das crianças, através de uma campanha de difamação contra um dos pais, sem justificação”.

Baker e Darnell (2006), fazendo alusão ao conceito de Gardner (1985), referem que a primeira manifestação do fenômeno da Alienação Parental consiste na campanha de denegrir a imagem que a criança tem do outro progenitor, campanha essa sem justificação, a qual é acompanhada do processo de lavagem cerebral e doutrinamento da mente da criança.

Trata-se de abuso emocional de consequências graves sobre os filhos. Esse abuso traduz o lado sombrio da separação dos pais. O filho é manipulado para odiar o outro genitor, o que está em oposição ao seu desenvolvimento psicológico saudável (Fiorelli & Mangini, 2012; Ribeiro, 2007a; Venosa, 2012).

Victor Reis (2009), nos seus estudos sobre crianças e jovens em risco, refere que devido à criança ser dependente e indefesa, é o elemento no seio da família com maior vulnerabilidade, tornando-se assim um alvo fácil para todo o tipo de violência. A violência consiste, acima de tudo, num abuso de poder, quer seja físico, material ou emocional.

A propósito, o que está em causa não é a ausência de vinculação afetiva que o progenitor alienador mantém com o filho, mas a forma perversa como exerce a parentalidade, sendo que a criança é submetida há uma série de provas de lealdade, em que para não desiludir o progenitor com quem vive, é quase que obrigada a confirmar sua pretensão (Ribeiro, 2007b; Sá & Silva, 2011).

Com o intuito de definir o que é Alienação Parental, mediante a fixação e parâmetros para a sua caracterização, a par de estabelecer medidas a inibir sua prática, foi aprovada, em 26 de agosto de 2010, a Lei Brasileira nº 12.318, que dispõe sobre a alienação parental determinando, no artigo 2º, aquilo que juridicamente a conceitua.

Pela perspectiva legal brasileira, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

É importante ressaltar que a Alienação Parental não se configura apenas e tão somente com a prática de uma única conduta de forma isolada, mas sim de um padrão de condutas que se estenda ao longo do tempo com o objetivo de enfraquecer ou extinguir os laços parentais entre genitor e filho (Blanco 2008; Dias, 2013).

Falsas memórias e Sugestionabilidade na especificidade da Alienação Parental

Nos contextos em que esteja presente o fenômeno da Alienação Parental, o filho é convencido da existência de determinados fatos e levado a repetir o que lhe é informado como tendo realmente acontecido, sendo induzido a afastar-se de quem o ama. Nem sempre consegue discernir que está sendo manipulado e acaba acreditando naquilo que lhe foi dito de forma insistente e reiterada. Com o tempo, nem o alienador distingue mais a diferença entre verdade e mentira. A sua verdade passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantando-se, assim, falsas memórias (Dias, 2010; Trindade, 2014).

A questão assume particular importância quando a falsa memória é utilizada para fundamentar uma imputação de abuso sexual através de profissionais pouco familiarizados com a problemática da falsa memória. Em se tratando de crianças, a questão se torna ainda mais delicada, porque envolve aspectos como a sugestionabilidade e a satisfação consciente ou inconsciente do desejo do adulto que possui a tarefa de ouvir a criança, além de preconceitos e/ou da adoção de uma ótica setorial sobre esse complexo problema (Trindade, 2014).

Estudos relacionados com a sugestionabilidade infantil apontaram que a maior incidência para ocorrência de falsas denúncias de abuso sexual envolviam crianças com a faixa etária entre os 03 e 07 anos de idade, levando-se em consideração não possuírem desenvolvimento cognitivo suficiente para compreender a situação, sendo mais vulneráveis a manipulações e implantações de falsas memórias (Amendola, 2009; Brandt, 2009; Guazelli, 2010).

Amendola (2009, p. 138) realizou pesquisa com 10 pais acusados de abusarem sexualmente de seus filhos, relacionando seus achados aos estudos anteriormente realizados por Wallerstein e Kelly (1998), com relação à faixa etária das crianças supostamente abusadas:

Digno de nota é a associação entre o número de filhos por pai acusado e o número de filhos que efetivamente foram considerados vítimas de abuso. Em nossa amostra de pais, todos foram acusados de abusar sexualmente de uma única criança, não obstante a maioria ter dois ou mais filhos. A observação dos dados nos mostrou que apenas três pais tiveram mais de um filho com a mãe denunciante e que, nesses casos, a criança mais nova era o foco da suspeita de violência paterna, independentemente do sexo. Portanto, nos demais sete casos em que o pai tivera um único filho com a mãe denunciante, a acusação fica restrita a esta criança.

As crianças consideradas vítimas de abuso sexual encontravam-se na faixa de três a seis anos na ocasião da denúncia, sendo sete do sexo feminino e três do sexo masculino, o que nos remete aos estudos de Wallerstein e Kelly (1998) que abordam a possibilidade de haver uma relação entre a idade da criança e sua capacidade para ser sugestionada e formar um alinhamento com o genitor guardião, ou seja, quanto mais jovem for a criança, maior a chance de formar alianças intensas com a mãe-guardiã.

Para elucidar a sugestionabilidade infantil, Dias (2013), de acordo com os estudos de Piaget (1994), refere que a criança de tenra idade acredita que a ordem emanada de um adulto é “justa” e, portanto, deve ser obedecida. A partir de seis anos a criança embora reconheça uma ordem “injusta”, compreende que ainda assim deverá cumpri-la. E somente a partir de nove anos a criança compreende que pode desobedecer uma ordem quando a perceber injusta. Transpondo este contexto para a Síndrome de Alienação Parental, vê-se que o processo de formação do dever moral resta comprometido.

Silva (2011) refere que quando se iniciam os processos de Síndrome de Alienação Parental, e seu subsídio simbólico, as falsas acusações de abuso sexual, todo esse processo de estruturação da autonomia moral fica flagrantemente comprometido: se a indução do alienador a formular as falsas acusações ocorrer em tenra idade da criança, a criança tornará seu relato verossímil (para adquirir credibilidade), mas não terá a noção de que isto trará consequências prejudiciais à pessoa que está sendo acusada - pai/mãe alienado (a) –, e este processo perdurará por mais tempo: a criança considerará que somente as regras impostas pelo adulto alienador serão as “justas”, e perderá a noção de que autoridade e justiça são elementos independentes.

Tendo como referencia a Psicologia Forense e do Testemunho, outro aspecto importante a ser considerado centra-se no discurso da criança envolvida em uma falsa acusação. O relato é pautado em fatos que nunca ocorreram, padecendo de espontaneidade, muitas vezes denotando de imediato estar influenciado (Dias, 2013). Frequentemente, a criança repete frases presentes no discurso do progenitor alienador. Dobke (2001, p. 42) enfatiza que:

No relato, a criança abusada apresentará linguagem compatível com seu desenvolvimento e compatível também com uma visão infantil dos fatos. A linguagem utilizada pela criança será a sua linguagem. O uso de linguagem não compatível com a sua idade sugere influência de pessoa adulta. A visão sobre o abuso também estará em harmonia com a idade da vítima.

Nesta perspectiva, o genitor alienador não é capaz de individualizar, de reconhecer em seus filhos seres humanos separados de si, sendo incapaz de ver e tratar a situação de outro ângulo que não o seu (Calçada, 2008). A criança, neste contexto, é palco de projeções dos sentimentos do progenitor alienador, passando a viver, pensar em sentir de forma condicionada. (Dolto, 2005; Freitas, 2014). A criança resulta incapaz de habilidades identificatórias genuínas, pois é fruto de um discurso que remete sempre ao falso, eis que pautado na mentira, criando uma realidade que não é sua, e memórias de situações que nunca viveu (Molinari & Trindade, 2014).

 

Considerações Finais

A memória ajuda a definir quem somos. Na verdade, nada é mais essencial para a identidade de uma pessoa que o conjunto de experiências armazenadas em sua mente. A facilidade com que ela acessa esse arquivo é vital para que possa interpretar o que está à sua volta e tomar decisões. Com efeito, o que se reconstitui é aquilo que é passível de ser dito, falado e evocado: não os fatos, mas a memória dos fatos (Trindade, 2014).

Manter memórias intactas e depois poder invocá-las constitui um ato complexo, pois depende da condição do sujeito no tempo e no modo do registro mnêmico, no tempo e no modo do seu arquivamento, no tempo e no modo da sua evocação (Trindade, 2014). Essas operações não ocorrem em sequência, são processos interdependentes, que se influenciam reciprocamente. Lembranças do passado não reconstroem literalmente os eventos; elas constroem memórias influenciadas por expectativas e crenças da pessoa, com influência, inclusive, de informação do presente (Calçada, 2014).

Portanto, a memória é uma variável dependente das funções da subjetividade e da atividade psíquica do indivíduo. Dessa maneira, a memória pode ser um sentimento (um afeto agradável ou desagradável), um cheiro (sensopercepção), uma palavra (linguagem), um lugar (orientação), uma ideia (pensamento) ou comportamento (Trindade, 2014).

Cumpre, assim, face à pluralidade de elementos que compõem a matéria, a adoção de máxima cautela quando as falsas memórias surgirem no espectro de um fator de risco, a Síndrome de Alienação Parental, pois não é raro que a notícia de abuso sexual contra a criança seja a acusação máxima do alienador contra o cônjuge alienado (Molinari & Trindade, 2014).

Inegável que a psicologia, nesse campo, tem muito a dizer ao direito. Não apenas porque dividem o mesmo objeto, mas, principalmente, porque direito e psicologia necessitam estabelecer um diálogo permanente para que os frutos da justiça possam ser plenamente alcançados.

Por fim, reafirmamos a necessidade de um olhar multidisciplinar, não apenas para uma compreensão da conflitualidade que envolve adultos num processo de divórcio, mas, principalmente, para entender a criança, cuja proteção deve ser integral.

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=7yKQL99vorY

 

Referências

 

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[1] PhD em Psicologia Forense pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Mediadora de Conflitos pela CLIP. Advogada. Psicanalista Clínica. Docente e Supervisora no Curso de Formação de Mediadores de Conflitos da CLIP. Especialista em Direito de Família pela PUC/RS. MBA em Direito Civil e Processo Civil pela FGV. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Vice-Presidente da Associação Brasileira Criança Feliz.  Diretora do IBDFAM/RS. Coordenadora do Núcleo de Mediação em contextos de Alienação Parental, da CLIP. Sócia fundadora da AMARGS Associação de Mediadores, Árbitros e Conciliadores do Rio Grande do Sul. Membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança, na Universidade do Minho/Portugal.  E-mail: fernanda.molinari@outlook.com

[2] Graduado em Administração e Gestão de Empresas pela Universidade Católica Portuguesa. Pós Graduado em Gerenciamento de Projetos com ênfase em Tecnologia de Informação, pela PUC/RS. Empresário na área de informática para negócios. Especializado em Psicologia Forense, pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Diretor de Relações Institucionais da ABCF. Docente no Curso de Formação de Mediadores da CLIP. Autor do livro "História de Amor entre um Advogado e uma Juíza" e de artigos sobre Alienação Parental e Mediação de Conflitos. E-mail: modestomendes@hotmail.com

 

Práticas alienantes familiares

Práticas alienantes familiares

A «síndrome de alienação parental» foi descrita em 1985 por Richard Gardner, para designar um sentimento de rejeição sistemático de uma criança em relação a um dos progenitores, por influência do outro, de modo a deformar a imagem da criança em relação ao progenitor «alienado» (denegrido, desprezado). Esta situação ocorre sobretudo nos casos de divórcio litigioso.

A formulação inicial de Gardner definia essa «síndrome» como constituída po vários elementos, a seguir enumerados:

- Campanha de difamação e ódio contra o progenitor-alvo;

- Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para justificar esta depreciação e ódio;

- Falta da ambivalência usual sobre o progenitor-alvo (ou seja ausência de afirmação da criança sobre aspetos positivos e negativos do progenitor em causa, como é habitual; nestes casos o pai visado só aparece como «mau»);

- Afirmações fortes de que a decisão de rejeitar o pai é só da criança (fenómeno "pensador independente");

- Apoio ao pai favorecido no conflito familiar;

- Falta de culpa quanto ao tratamento dado pela criança face ao progenitor alienado;

- Uso de situações e frases cedidas pelo progenitor alienante;

- Difamação não apenas do progenitor visado, mas direcionada também para a família e aos amigos do mesmo.

Nas situações de ruptura conjugal conflitual, o progenitor «alienante» entende o divórcio como uma guerra permanente, que tem de ser ganha em todas as circunstâncias, mesmo que o custo desse combate venha a ser a doença emocional do filho. A arma preferida é sempre a criança. A presença menos frequente do pai junto do filho impedem o progenitor alienado de se defender com êxito das acusações falsas. Os exemplos de alienação incluem a interferência constante em conversas telefónicas, a obstrução à presença em reuniões familiares, a crítica à tentativa de mostrar fotografias do pai visado e, sobretudo, a obstrução sistemática e continuada a uma presença continuada do progenitor criticado junto do filho.

De 1985 até aos nossos dias tem havido bastante controvérsia científica sobre a existência deste «síndrome». Muitos alegam a existência de uma verdadeira perturbação mental, outros defendem que tal não ocorre, ou sustentam que não existem ainda estudos sistemáticos desta situação.

A minha posição é a de que as crianças nada ganham com esse tipo de discussões. Haja ou não síndrome, as «práticas alienantes familiares», com escreveu Linares, são evidentes em muitas situações. Importa que todas as famílias as tenham presentes, defendendo os interesses das crianças.

O grande desafio é também para os Tribunais de Família e Menores. É condenável que se perca tempo a ver se há síndrome ou não, quando o importante para a criança é fazer uma avaliação contextual alargada e rigorosa, que permita detetar as práticas alienantes, protegendo a criança da exclusão de um progenitor.

Como já tive ocasião de denunciar no meu livro «O tribunal é o réu», os tribunais portugueses não procedem a uma avaliação sistémica das situações e muitos casos de grave alienação parental escapam a uma decisão correta, porque todos perdem tempo a discutir a «síndrome».

É urgente dotar os nossos tribunais de assessorias técnicas competentes e neutras, que ajudem os magistrados nas decisões e tornem os juízos de família locais onde se pratica justiça.

 

Daniel Sampaio

Professor Catedrático Jubilado de Psiquiatria e Saúde Mental

Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

 

 

           

 

 

 

Doações entre marido e mulher

Doações entre marido e mulher

Um tema que não é muito falado, mas que, nem por isso, deixa de ter relevância, é o das doações efetuadas entre cônjuges.

Em que termos podem ser feitas, quais as suas restrições, qual a validade destas doações, são algumas das perguntas que se colocam e que importa esclarecer.

Desde logo, o primeiro aspeto a considerar, prende-se com o regime de bens do casamento pois, sempre que o regime da separação de bens resulte, não de uma escolha de ambos, mas de uma imposição legal - nos casos em que não foi precedido do processo preliminar de casamento ou nos casos em que, um dos nubentes tenha, à data do casamento, 60 anos - as doações, que sejam feitas entre marido e mulher, são nulas nos termos do artigo 1762º do Código Civil.

Importa, também, salientar que são proibidas as doações de bens comuns, resultando esta proibição do princípio da imutabilidade do regime de bens, com o qual se pretende proteger o património comum do casal, proteção esta que pode assumir relevância em matéria de salvaguarda dos direitos de credores de ambos os cônjuges.

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Sendo possível a doação entre cônjuges, uma das especificidades a ter em conta é a de que o doador pode, a todo o tempo, revogar a doação, sendo este direito irrenunciável, o que se explica pelo facto de se pretender evitar que, através de ascendente físico, intelectual ou moral, de um dos cônjuges sobre o outro, o cônjuge beneficiário da doação, possa extorquir - ao outro - bens conseguindo, por esta via, modificar o regime de bens em que casou.

Para acautelar este perigo de extorsão nas doações entre casados, a lei consagrou a livre revogação destas, sem necessidade de o cônjuge revogante ter que invocar qualquer justificação para tal, permitindo assim que, caso a doação tenha sido fruto da pressão do outro cônjuge, o doador possa destruir a doação feita, sem que o outro tenha que ter conhecimento de tal revogação e sem que se possa opor à mesma.

Este direito de livre revogação, encontra-se previsto apenas para as doações efetuadas entre casados, não separados judicialmente de pessoas e bens.

Com efeito, a separação judicial de pessoas e bens, apesar de não dissolver o vínculo conjugal, extingue o dever de coabitação entre os cônjuges e, quanto aos bens, a separação produz os mesmos efeitos que se produziriam com a dissolução do casamento.

Assim, numa situação de separação judicial de pessoas e bens, já não se verificam os riscos de extorsão que levaram à consagração legal da livre revogabilidade das doações entre casados, razão porque o direito de livre revogação se encontra previsto apenas para as doações entre casados, não separados de pessoas e bens.

Por completude quanto ao regime da livre revogabilidade previsto na lei, refira-se que, os herdeiros do cônjuge doador não podem revogar a doação que este haja feito.

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Outro aspeto a considerar é o de que as doações de um cônjuge ao outro, não se comunicam, seja qual for o regime de bens, o que equivale a dizer que, ainda que o regime seja o da comunhão geral de bens, o bem doado, por exemplo, pela mulher ao marido, será sempre considerado bem próprio deste.

Já quanto ao regime da caducidade das doações entre casados, a lei prevê, no artigo 1766º do Código Civil, três situações em que esta caducidade opera automaticamente:

- quando o cônjuge beneficiário da doação morra antes do doador, exceto se este confirmar a doação nos três meses seguintes à morte daquele;

- quando o casamento seja declarado nulo ou anulado;

- quando seja decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens.

Tomando em conta a redação da alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil, que refere que a doação entre casados caduca em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens «por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado» e, tomando em conta que, com a Lei nº 61/2008, de 31 de outubro de 2008 deixou de existir o divórcio litigioso fundado na culpa de um dos cônjuges, colocou-se a questão de saber se, não podendo o divórcio ocorrer por culpa do cônjuge beneficiário da doação - não podendo este vir a ser considerado cônjuge único ou principal culpado pelo divórcio -, a causa de caducidade prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil devia, ou não, operar em caso de divórcio.

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A resposta a esta questão encontra-se na previsão do artigo 1791º, nº1 do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela referida Lei nº 61/2008 que, a seguir se transcreve:

«1 – Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.».

Ou seja, por efeito do divórcio, os cônjuges perdem todos os benefícios, não carecendo o cônjuge de ser declarado, como era antes da entrada em vigor da Lei nº 61/2008, único e principal culpado. Um dos benefícios é o da doação que tenha sido feita entre casados.

Tomando em conta que, crê-se, por lapso, não foi alterada a redação da parte final da alínea c) do nº 1 do artigo 1766º do Código Civil, - que deveria ter sido adequada à nova redação do artigo 1791º do mesmo Código, que eliminou a referência ao cônjuge declarado único ou principal culpado -, deve ser considerado que esta se encontra tacitamente revogada na parte em que faz depender a caducidade da doação da exigência de o divórcio ter ocorrido por culpa do beneficiário da mesma sendo este considerado cônjuge único ou principal culpado.

Deste modo, a interpretação que deve ser feita da alínea c) do nº 1 do artigo 1766º do Código Civil é a de que, a doação entre casados, caduca sempre por efeito do divórcio. Neste sentido, encontramos o parecer nº 44/CC/2014, do Instituto dos Registos e do Notariado, datado de 18 de agosto de 2014. Também no sentido de que se deve fazer uma interpretação revogatória ou ab-rogante da alínea c) do nº 1, do artigo 1766º do Código Civil refere-se, a título de exemplo, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21 de fevereiro de 2017.

Conforme resulta do referido parecer, operando a caducidade por efeito do divórcio, terá que ser feito um novo registo de aquisição, pelo doador, invocando como causa a caducidade da doação, por forma a extinguir o direito na esfera jurídica do beneficiário da doação.

Caducando a doação, o doador pode determinar que esta reverta para os filhos do casamento, conforme previsão do artigo 1791º, nº 2 do Código Civil, com o que se pretende proteger os interesses dos filhos do casamento, fazendo-se reverter a doação a favor destes.

Seguindo de perto o aludido parecer nº 44/CC/2014 neste segmento, resulta que: «o registo a fazer, na sequência da caducidade da doação, deverá ser de aquisição a favor dos filhos do casamento, tendo por base a declaração de vontade do doador destinada a operar em face do divórcio, do efeito patrimonial extintivo em tabela e da existência de filhos comuns do dissolvido casal

As questões que acabámos de referir, apesar de não esgotarem o tema das doações entre casados, são as que, em termos gerais, se apresentam como mais relevantes e que, por isso, cumpre assinalar.